Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Gostava de dizer que é difícil dizer de António Lobo Antunes. Refiro-me a um grande escritor deste Portugal; a um escritor que afirma com modestíssima realidade “tenho uma imensa inveja dos poetas. Na poesia cada palavra tem um peso específico…uma carga.” E com estas poucas palavras, o que parecia definido, aparece como inesgotável no mundo das gentes que escrevem; sobretudo no mundo das que escrevem poesia de um jeito livre em tempo, em espaço, em concretização, em atitude perante o mundo, em princípio de esperança, em universo filosófico, aberto numa totalidade despojada.
Julgo que existe em António Lobo Antunes um saber ler e escutar milenar. Algo com força transgressora e necessariamente sem receios do risco face ao que entendeu dizer e dizer-se. É heróico quem procura ultrapassar o limiar da quietude e do aparente e, assim sendo, António é para mim um afecto tão próximo da explosão de um desconhecido, que abrirei sempre a porta de qualquer um dos seus livros, e sei que não receio qualquer caos naquele seu imaginário, apenas um diferente puzzle de um crescer sem qualquer cristalizar.
Existe hoje, no meu modesto entender, mais do que nunca, uma liberdade muito humana no estar de António Lobo Antunes com a vida e com a escrita. Houve um empurrar propositado, consciencializado, para o resvalar das hierarquias - tenham sido elas as que foram, tenham elas outra designação -, que lhe deu dinâmica nova: um filão de pensamento e de sentir que leva a cabo os dias em consonância com o que não é esquematizável.
António, que te possa dizer eu, que, se já em ti, li, algum efeito de estranhamento, sempre ele se envolveu num perigo por ti assumido, com parcialidade, lugar onde a tua escrita é fascinante e a todos nos envolve num filme de onde o risco é partir.
Os dois últimos concílios católicos - um em cada um dos dois últimos séculos - trataram de modo diferente o "preconceito". O Vaticano I insistiu na reafirmação dogmática de formulações de princípios e juízos de valor, numa atitude de receio e oposição ao modernismo e a um mundo que se ia crescentemente movendo fora dos enquadramentos que antes lhe balizavam o percurso. Repetiu fórmulas, como se elas fossem tão eternas como verdades. O Vaticano II respondeu ao apelo de João XXIII para o aggiornamento, essa abertura do espírito a um mundo plural que desafia a Igreja a pensar e sentir mais em consonância com o palpitar das vidas que a rodeiam. O primeiro pretendia que o mundo regressasse à cerca onde imaginara encerrá-lo, na normalidade assegurada por um comando único, uma língua, as mesmas formulações e ritos, na imobilidade impeditiva de reexames e revisões, na abstracção da pluralidade real das pessoas, grupos e movimentos. O segundo interrogou-se sobre a relação com a diferença como procura da harmonia, como se os homens, com instrumentos, vozes e registos diversos, formassem o coro e orquestra de Deus. Para tanto, olhou para si e seus preconceitos, fez-lhes exame e revisão, lavou-se e arranjou-se para sair e ir ter com os outros. E o papa Francisco não se cansa de chamar a Igreja para o encontro com o mundo plural, e à própria cúria romana lembrou as doenças que a sectarizam, entre as quais mencionou o bloqueamento mental, a indiferença ao mundo exterior, os círculos fechados, a divinização dos chefes... Vai experimentando, na coragem de todos os dias, aquelas reformas que já Paulo VI vira malogradas pelo poder interno de uma "Cúria" que, apesar de, e depois, do Vaticano II, ia procurando assegurar o governo da Igreja à imagem e semelhança dos Estados Pontifícios - essa herança de inspiração constantiniana que se foi desfazendo pela própria história, se cindiu com a Reforma e foi reduzida à mínima expressão territorial durante o risorgimento e, finalmente, pelos acordos de Latrão. Talvez descubramos agora a consciência necessária de que o Reino de Deus não é deste mundo enquanto forma fixa ou paradigmática de poderes e instituições : pode revestir-se delas, mas não as pereniza na história, tem outra vocação. O Reino de Deus é profético, está agora e depois, escuta e anuncia, é o clamor da voz dos homens, contra si e consigo mesmos e o Deus connosco até ao cumprimento da história... Nesta perspectiva escatológica, o Reino de Deus vai crescendo em nós e por nós: porque todos somos feitos à imagem divina, somos inerentemente bons, chamados a ser santos como o Pai. São Paulo - que influenciará a teologia de tradição ortodoxa oriental no sentido de não considerar o pecado original, muito menos como estigma transmissível (pecado sendo, então, "apenas" o afastamento da relação com Deus, de que cada um é responsável) - é muito claro sobre esse ponto: Nada é impuro em si, todas as coisas são puras (Romanos 14, 14 e 20) ; Tudo o que Deus criou é bom (I Timóteo 4,4) Diferentemente da tese agostiniana do pecado original - e dois séculos antes dela ser formulada e declarada dogma católico no concílio de Cartago (418) - Santo Ireneu comentava que, em Génesis 3, é a serpente que é maldita, não Adão. Este e Eva apenas são crianças, pelo que muito embora Deus pudesse dar a perfeição ao homem, desde o princípio, o homem teria sido incapaz de a receber logo, porque era ainda criancinha... Não sou, nem por nem contra a ordenação de mulheres: mas desafio a recusa da revisão das normas canónicas que a pretendem negar, como a recusa de uma reflexão sobre os fundamentos teológicos que as suportam; e mais sugiro que abertamente se estudem as análises sérias e bem feitas das origens e progressos da ideologia misógina que, a partir de Fílon de Alexandria, judeu helenístico, influenciou a patrística cristã e determinou a tradição católica de exclusão das mulheres do ministério ordenado... E também pergunto (perguntar não ofende) se fará sentido, para muitos, essa excepção, num tempo do mundo em que mulheres são chefes de Estado e de governo, médicas, militares, polícias, etc.... Não creio que, como por aí se tem dito, a consagração episcopal de mulheres na Igreja Anglicana seja antiecuménica: numa tradição cristã próxima mas exterior à Igreja Católica, ela acontece sem que a comunhão de ambas na fé cristã seja afectada... Se assim não for, mais uma vez estaremos a pôr o secundário acima do essencial. O papa Francisco, em Istambul, pediu ao patriarca ortodoxo Bartolomeu que abençoasse a Igreja de Roma... Eles não são hereges, muito menos infiéis, são cristãos como nós, na sucessão apostólica... Na sua tradição, o celibato dos padres não é exigível, tal como nem sempre o foi na Igreja romana ocidental... É tão preconceituoso, quer defender-se o celibato como a ínclita via da santidade (todos somos chamados a esta), ou como condição indispensável ao exercício de um ministério eclesial, quer, por outro lado, afirmar-se que o voto de castidade é motivo de pedofilia (esta até será mais frequente e secreta em grupos sociais estranhos a estabelecimentos religiosos e, infelizmente, no seio de famílias). Ou ainda, pretender-se que acabar com esse voto ou abrir o sacerdócio a mulheres iria aumentar o número de vocações ministeriais... A questão que se levanta não deve ser tanto a escassez de clérigos, mas bem mais a da decrescência de praticantes e crentes... Aliás, tenho imenso respeito e admiração pelas vidas consagradas, de homens e mulheres que Deus chama a serem, pela pobreza e pela castidade, por via eremítica ou cenobítica, corações proféticos. Mas tais vocações não são necessariamente ministeriais, servem de modos diversos a Igreja. Insistindo-se numa igreja sectária - que, indiferente a dramas familiares, por exemplo, excomunga de facto pessoas divorciadas que refizeram as suas vidas, quando, afinal, noutros casos se reserva o direito de declarar a nulidade de matrimónios que, por vezes, pelos argumentos invocados, nenhum tribunal civil decretaria - será provável que muita gente vá buscar a outra fonte a água da vida...