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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

LONDON LETTERS

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The circus maximus, 2015

The Prime Minister visita The Queen para solicitar a dissolução constitucional do Parliament. O Buckinghm Palace emite o Dissolution and Issue of Writ. O ato régio marca o início oficial de uma campanha eleitoral há muito fora de portas, cujas implicações conduzem à realização de eleições a May 7 e a Sitting of the Houses com State Opening a May 27. — Chérie, la cuisine c'est quand les choses ont le goût de ce qu'elles sont.

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O sistema político britânico produz desde o pós.guerra soluções maioritárias em Westminster, garantes da estabilidade e da coesão do United Kingdom. Porém, as perspectivas para a 2015 General Election são de erosão do centro e de fragmentação regional, que agudizam a dispersão de votos e trarão provável governo pluripartidário. A balança do poder pende aqui para o SNP, com os independentistas a obterem 48% nas sondagens em Scotland. — Hmm. Criticism is easy, art is difficult. A incerteza domina também na ordem internacional. As negociações com o Iran em torno do nuclear ameaçam impasse nas últimas horas definidas para a sua conclusão e há quem cá profetize tambores de guerra no Persian Gulf. Os gregos protagonizam novos episódios em Brussels, enquanto Athens visiona o fundo dos cofres vazios. Já Spectre traz Mr Daniel Craig em aventura de speedboat pelo Thames. 

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Mild weather with gales on coast pelas terras do North Atlantic. A azáfama em Whitehall recrudesce com os MPs a empacotarem os haveres e os partidos políticos a lançarem-se vigorosamente em consensual taugh and brusing electoral campaign. Vários não regressarão aos escritórios junto ao Thames. A manhã dá o tom em Central London, com a luzidia substituição da guarda real na Victoria Fountain e o hastear do estandarte real em Buckingham. Momentos depois, on the doorsteps of 10 Downing Street, o Prime Minister acusa o Labour de preparativos to raise taxes for working families by £3,000. Impróprio!? No fim de semana, durante a Conservative's Spring Conference em Manchester, RH David Cameron personaliza aguçadas setas. Que o seu principal adversário compara mal com anteriores líderes trabalhistas como RHs Clement Attlee, Harold Wilson ou John Smith. Que o Labour não é mais “the party of working people." Em suma, e reatando peculiar indignação face às duas cozinhas existentes na casa do rival: "It's the same old party of hypocrisy, the party of two faces, the party of two Jags and now, yes, the party of two kitchens." Conclui o sucessor de Mrs Margaret Thatcher que os Labourites são "a bunch of hypocritical, holier-than-thou sneering socialists."

A acidez Tory eleva-se após o PM surpreender até o seu partido com inédita declaração eleitoral de se não candidatar a terceiro mandato no Number 10, antes para tal apontando, como putativos herdeiros, ambicioso trio: Mr Geoge Osborne, Mrs Teresa May e Mr Boris Johnson. Mais ocorre. Duas entrevistas separadas mas sucessivas aos líderes dos Conservatives e Labour na Sky News agitam as paixões. Aquém de incisivas perguntas de Mr Jeremy Paxman e Mrs Kay Burley, complementadas por público questionamento em townhall, o desempenho de Sir David Cameron e de RH Ed Miliband obriga a todos interrogarem o porquê da sua recusa de debater face a face com o oponente. Ora, após um primeiro momento dominado pelos spin doctors dar vantagem ao conservador (54% – 46%), o sobressalto vem com a descolagem trabalhista junto do eleitorado. “The first full survey since that television encounter shows Labour moving to a four-point lead”, informa o Sunday Times. E ainda faltam 38 dias para a polling station.

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 Segredos, paisagens nevadas, Rome, Mexico City, o Thames, claro, pela Vauxhall Bridge e o Grand Union Canal até ao MI6 em London, very fast cars andBond, James Bond. As primeiras imagens do novo 007 saem à luz do dia a par do trailer e do seu argumento base: "A cryptic message from Bond's past sends him on a trail to uncover a sinister organisation. While M battles political forces to keep the secret service alive, Bond peels back the layers of deceit to reveal the terrible truth behind SPECTRE." Sob tons intimistas do desconhecido passado do célebre espião, aliás, a equipa do Director Sam Mendes apresenta desde já uma ausência e uma singularidade tecnológica. Dame Judi Dench não é M, mas o usual Aston Martin conduzido por Mr. Daniel Craig é um espantoso protótipo especialmente concebido para the 24th James Bond film produzido nos Lon Pinewood Studios ― o DB10. O carro competirá com um fabuloso Jaguar C-X75 nas margens do Tiber durante a velocíssima aventura que, pelo Outono, revela a infância da personagem criada por Mr Ian Fleming em 1952. — Well. A dry Martini in a deep champagne goblet.


St James, 30th March

Very sincerely yours,

V

A VIDA DOS LIVROS

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De 30 de março a 5 de abril de 2015

 

«O Mundo é uma coisa estranha, afinal» de Jean d’Ormesson (Guerra & Paz, 2015), apesar de vir apresentado como um romance, é um ensaio em que o autor partilha com os seus leitores uma reflexão sobre a vida e a morte. Estamos perante um caminho reflexivo de sentido bem atual num momento em que o «vazio de valores» põe em causa a importância das Humanidades.

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O TEMPO ESSE ESTRANHO PROTAGONISTA
Ao longo da obra de Jean d’Ormesson, o tempo é o grande protagonista. E, naturalmente, Santo Agostinho é lembrado na sua célebre afirmação: «Se não me perguntares em que consiste o tempo sei dizer em que consiste. Mas se mo perguntas, deixo de sabê-lo». Seiscentos anos depois, Stephen Hawking também diz: «É impossível dizer em que consiste o tempo» Por não ocupar espaço, por não possuir nem massa nem temperatura, nem odor, nem sabor, parece ser o paradigma da abstração, que se confunde com tudo e nada… No entanto, é o grande mistério. Esse o seu mistério. Para nós, que vivemos o dia a dia, é fundamental. Os nossos relógios e agendas parecem de uma regularidade exasperante, mas, de facto, tudo isso é muito mais complicado do que parece à primeira vista. Basta olharmos o espaço e percebermos que muitos dos corpos celestes cuja luz vemos, há milhões de anos que se encontram extintos. Há algumas horas, quando entrámos na hora de verão, quase nada tivemos de fazer, pois os nossos telemóveis e computadores se encarregaram de fazer por si as adaptações necessárias. Apenas tivemos de nos preocupar com os ancestrais relógios mecânicos… E o romancista interroga-se sobre os mistérios que nos rodeiam. Não sendo um cientista, procura compreender o inimaginável. Max Planck leva-nos aos primeiros segundos após o «big-bang»: o que virá a tornar-se o nosso universo era então dez milhões de mil milhões de mil milhões de vezes mais pequeno do que um átomo. Não vale a pena tentarmos perceber, porque o tempo de um flash de uma máquina fotográfica é imenso junto desse estranho «muro de Plack», que nos leva a deambular no infinitamente pequeno. Esse ínfimo começo põe-nos a questão de dizer que «aquilo que está atrás do muro de Planck é algo diferente de tudo o que podemos imaginar ou mesmo conceber – talvez uma realidade de outra natureza e de outra ordem, mais ou menos comparável à coisa em si de Kant». Pascal falava-nos do infinito que nos precede e no infinito que nos sucede… E se falamos da teoria quântica que só se aplica ao infinitamente pequeno, temos de chegar à teoria da relatividade geral de Albert Einstein que apenas se aplica ao infinitamente grande…


COMPREENDER O INCOMPREENSÍVEL
«O mundo no qual vivemos não é apenas inesgotável. Com a luz, e com o tempo, mistério dos mistérios, e com essa coisa inaudita que é a vida, e essa mais inaudita ainda que é o pensamento, o mundo é também, e sobretudo, inverosímil». A imaginação de qualquer romancista revela-se infantil ao lado dos grandes mistérios do universo. As leis da ciência e da natureza são necessárias e arbitrárias. Eis a justificação de todos os paradoxos… E a vida é o mais banal dos milagres. Escapa a qualquer definição. Por isso, as descobertas científicas baseia-se tantas vezes num ápice intuitivo… Charles Darwin limitou-se apenas a entreabrir uma pequena fresta no conhecimento em «A Origem das Espécies», contudo hoje chegamos a um antepassado universal e comum de todos os seres vivos: uma célula batizada LUCA (Last Universal Common Ancestor). Einstein segreda-nos: «Aquilo que há de mais incompreensível é o mundo ser compreensível». E inesperadamente Leibniz – o mesmo que pergunta «cur aliquid potius nihil?» («Porque há algo em vez de nada?») – afirma-nos que o mundo é composto por átomos impercetíveis e indestrutíveis – mónadas -, que refletem todo o universo, que está assim presente em cada um dos seus pontos. Assim, Einstein procurou encontrar a conexão entre Universo e pensamento, estabelecida desde o começo… Deste modo, no caminho ao encontro do começo das coisas encontramos três elementos essenciais: a inteligência humana, capaz de descobrir os segredos do Universo; a luz, que nos permite viver sob o Sol e distinguir os seres e as coisas à nossa volta – apesar de viajar lentamente, considerando a imensidão do espaço. «Vemos o Sol tal qual ele era há oito minutos, a galáxia Andrómeda tal como era há dois milhões de anos, o enxame de galáxias Virgem tal como era há quarenta milhões de anos, os quasares nos confins do Universo como eram há uma dezena de milhões de anos»… E o terceiro elemento é o tempo, sobre que já mostrámos a nossa perplexidade e as suas extraordinárias virtualidades… Jean d’Ormesson, o escritor de romances sobre a efemeridade do tempo e das mentalidades, como «Au Plaisir de Dieu», sobre um castelo que conheceu bem durante a infância e sobre os seus fantasmas, põe-se no centro das suas próprias interrogações, entre Espinosa, Pascal, Montaigne e Leibniz – jogando com as perplexidades de Albert Einstein e Max Planck. E refere-nos o golpe de génio do cristianismo, ao assumir o «que o distingue de todas as outras religiões» - a Encarnação.


VIVER É MORRER…
 

«Aquilo que Deus quer não o sabemos. Aquilo que Cristo nos diz é que devemos amar Deus e os homens». O romancista não cai na apologética, até porque se situa numa posição de serena, mas persistente, de dúvida. «O autor é agnóstico. Não sabe. Gostaria muito de saber». E, bem a propósito, cita Charles Péguy: «Os nossos conhecimentos nada são ao pé da realidade cognoscível, e são talvez menos ainda ao pé da realidade incognoscível». Tertuliano disse: «Credo quia absurdum», «Creio apesar de absurdo», e tudo está aqui resumido. Não há provas. E conta-se a anedota sobre Bertrand Russell. Alguém lhe perguntou, apesar de não crente, que diria quando chegasse ao juízo final perante Deus. E ele respondeu: «Nesse caso, dir-Lhe-ia que não havia provas suficientes…». O mundo é um enigma e a realidade um sonho. De Shakespeare a Calderón de la Barca, tudo está dito e redito. «A ciência decifra o sonho e faz também parte dele». Pirandello não diria melhor. E chegado aos limites, d’Ormesson leva-nos até ao mistério da morte, convidando o português Espinosa a partilhar a interrogação fundamental. «A mortalidade não é uma coisa evidente. Um homem ou uma mulher, jovens e de boa saúde, têm antes tendência a sentir-se imortais. Por uma espécie de milagre, que o mais das vezes se deixa passar em silêncio, cada um de nós pensa e age como se não fosse morrer. Espinosa acrescenta: “O homem livre em nada pensa menos que na sua morte, e a sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida»… Afinal, não morreremos um dia, vamos morrendo. Montaigne dizia que a filosofia era essa aprendizagem. E o poeta de «Le Soulier de Satin» pôs na sua campa a seguinte inscrição: «Aqui repousam as cinzas e a semente de Paul Claudel». Jean d’Ormesson, placidamente, faz deste romance-ensaio uma interrogação sobre os limites, a incompreensão, as incertezas e as dúvidas… Depois de nos trazer a loucura de Alcibíades, símbolo da beleza e da sublimidade, conduzindo o sucesso ao desastre, lembra ainda Einstein a mostrar-nos que «a experiência mais bela é a do mistério»… Cada palavra diz-nos o que baila no espírito de cada um…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

OLHAR E VER

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Mustafá Akyol

 

21. BENEVOLÊNCIA E UMBIGO

 

Gosto da palavra benevolência, tanto ela diz: querer bem, querer o bem, bem-querer... A vontade de amar assume a beleza da vida, e dá-lhe mais um esplendor. Menos bem me sabe quando pretende desculpar, dar desconto, por especial favor de alguma magnanimidade. Ou, pior ainda, ao lembrar-me de que, baixando a cabeça, olho para mim...  E, com ela baixa, mirando-me o umbigo, me descubro - e às minha crenças e preconceitos - mais acima e mais adiante dos outros! Vem esta reflexão a talho de outras que, no calor das manifestações "Je Suis Charlie", fiz e enviei a alguns amigos, sem insistir em publicá-las logo, pois que nem era minha intenção irritar fosse quem fosse. Agora, acho que as posso deixar aí mais abaixo, talvez nos ajudem a reflectir. Mustafá Akyol é um escritor muçulmano, de naturalidade turca, que recentemente publicou no New York Times um artigo intitulado Islam´s problem with blasphemy, onde escreve: o Corão disse, aos primeiros Muçulmanos que rotineiramente enfrentavam a troça da sua fé por pagãos, que «Deus vos disse, no Livro, que quando ouvirdes as revelações de Deus desacreditadas e troçadas, não vos senteis com eles até que eles comecem com outra conversa»...  ...Apenas «não vos senteis com eles» -  eis a resposta que o Corão sugere para a troça. Violência, não. Nem sequer censura. Os sensatos líderes religiosos muçulmanos de todo o mundo farão ao Islão um grande favor se pregarem e reiterarem tal atitude, não violenta nem opressora, face aos insultos contra o Islão. Essa instrução também poderia ajudar os seus correligionários mais intolerantes a perceber que a raiva não é sinal de nada mais senão imaturidade. O poder de qualquer fé não provém da sua coacção sobre críticos ou discordantes. Antes vem da integridade moral e da fortaleza intelectual dos seus crentes. O presidente da república do Níger, Yussufu Mamadu, participou, com a intenção de testemunhar a solidariedade do seu povo com o povo francês, na grande manifestação de 11 de Janeiro em Paris. Infelizmente, desencadeou uma onda de protestos violentíssimos, que atingiram cristãos, no seu país, pelo que se viu obrigado a proferir, a 17, um discurso em que apelava à calma: Peço-vos que continuem o exercício da vossa fé na tolerância, isto é, no respeito da dos outros, tal como peço aos outros que respeitem a nossa fé. E foi precisamente nesse espírito que ordenei a proibição da venda e difusão do semanário Charlie Hebdo. Peço-vos que vos mobilizeis em redor do governo e das forças de defesa e segurança contra o terrorismo que desfigura a nossa religião. Antes de reproduzir algumas das minhas anteriores reflexões, acima referidas, quero formular umas perguntas, sugeridas pelas declarações de Mustafá Akyol e Yussufu Mamadu:

 1 - Será que, num mundo global, onde necessariamente se cruzam e encontram  -  com sérios riscos de afrontamento  -  civilizações e culturas diferentes, com diversas regras de comportamento e divergentes critérios de moralidade e convívio, será que, neste universo em conjuntura incerta, é legítimo, ou simplesmente inteligente, alguém pretender  - quiçá com alguma intolerância  -  que o seu modo próprio de olhar e ver deve ser imposto erga omnes?

 2 - Admitindo que sim, isto é, por exemplo, que o nosso princípio de ilimitada liberdade de expressão é, ou deve ser, universalmente aplicável, sem qualquer restrição nem sequer contenção, será acertado pretender-se que apenas a agressão física é ofensa, e de modo nenhum o assalto verbal, gestual ou gráfico a terceiros? Recordo aqui uma capa da revista de que tanto se fala, em que se apresentam "os três pais de Monsenhor Vingt-Trois, arcebispo de Paris: o Pai Eterno, a ser sodomizado por Cristo coroado de espinhos, por sua vez sodomizado pelo Espírito Santo, este representado como símbolo trinitário"... Liberdade de expressão de uma imagem de pai, ou ofensa? E recordo ainda uma declaração de Jean-Christophe Boudet, "historiador e crítico de banda desenhada", que a imprensa vai por aí divulgando, por ocasião da abertura do Festival de Angoulême: Os desenhos humorísticos do Charlie Hebdo troçam de todos os sistemas e estruturas (Como, aliás, foi televisivamente demonstrado pelo Prof. Marcelo Rebelo de Sousa...). São imagens de imagens e, por isso, incompreensíveis para quem olha para uma imagem apenas como representação. Ora, se assim for, temos de admitir que haja quem não as compreenda, do mesmo modo que temos basicamente exigido que outros tirem admirativamente o chapéu aos produtores de imagens que eles não entendem.

 O que considero gravíssimo, nesta história trágica - que um massacre repugnante trouxe à ribalta - é ,antes e primeiro do que tudo mais, a barbárie do acto terrorista, inadmissível, condenável e punível. Mas ainda, a leviandade política e mediática com que se transformou o assassínio de pessoas humanas (e não esqueçamos os pacíficos judeus que faziam as suas compras...) num simples atentado contra outro maomé que dá pelo conceito de liberdade de expressão. Pessoalmente, penso que a liberdade de expressão tem um limite, sim: o da consciência de cada um, enquanto pessoa responsável, também, pela necessária harmonia do convívio humano. Não temos de estar todos de acordo, muito menos temos de pensar o mesmo; temos de saber aceitar a discordância, e de aprender a rir até da troça que possam fazer de nós... Mas nada nos dispensa de esquecer o nosso umbigo e usarmos de benevolência mútua. Sugiro que meditemos e apliquemos para nós os conselhos que os dois muçulmanos que acima citei deram aos seus irmãos na fé islâmica : não temos de pensar como os outros, nem pretender que pensem como nós, mas o respeito que a nós mesmos devemos passa também pelo respeito dos outros, isto é, quando os desrespeitamos faltamo-nos ao respeito. E aqui ficam três passos das mensagens que anteriormente enviei a amigos:

 Quem me conhece melhor sabe que, tal como não leio, nem sequer na sala de espera do dentista, jornais ou revistas de coscuvilhice social - essas publicações de efemérides das vidas de gente política, principesca, televisível ou jet-sética, também ignoro jornais pretensamente satíricos, sobretudo aqueles que se arrogam o direito de se pronunciarem sobre seja o que ou quem for, pelo simples gosto de gozar os outros, sem qualquer contenção própria, isto é, sem sequer considerarem se podem ser ofensivos de sentimentos ou crenças humanas e legítimas de terceiros, até de alguns cujo desamparo humano e moral, no exílio e na pobreza, talvez nem sequer lhes surja no horizonte engraçadinho e raivoso ... Isto dito  -  e deixando claro que esses não me incomodam nem incomodarão -  não reclamo para eles qualquer castigo nem vindicta. Muito pelo contrário, reconheço-lhes o direito de se exprimirem como melhor entenderem e sobre as questões que escolherem. Mas também me reconheço o direito  de me interrogar - e a eles também, e a outros - sobre se aquilo que dizem, escrevem ou desenham - e que, sinceramente, vezes demais me parece ser desrespeito de outrem, provocação, embirração ou, mesmo, ódio destilado, será um exercício lúcido e construtivo do direito à livre expressão. Na verdade, penso que este é uma grande conquista da nossa cultura, precisamente em razão do reconhecimento da dignidade humana e da igualdade essencial de todos os dialogantes. Assim, a todos e cada um de nós, caberá reflectir, sem preconceito algum, muito menos de superioridade civilizacional, na enorme responsabilidade do exercício dessa liberdade, bem como, neste caso concreto, se a desenfreada propaganda do Charlie Hebdo será o modo melhor de despertarmos , em clima de liberdade e benevolência, o respeito mútuo e o diálogo. Vivemos num tempo em que o umbigo satisfeito não tem o menor direito de recusar a mão estendida para o diálogo.

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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A nova concepção espacial no movimento moderno – Le Corbusier.

 

‘Os nossos olhos são feitos para ver as formas sob a luz. As formas primárias são as formas belas porque se lêem claramente.’, Le Corbusier, ‘Por uma arquitetura’ (2004)

 

Para Argan em ‘Arte Moderna’, Le Corbusier concebia ‘no dever de fornecer à sociedade uma condição natural e ao mesmo tempo racional de existência, mas sem deter o desenvolvimento tecnológico.

Segundo Alan Colquhoun em ‘Modern Architecture’ (2005), Le Corbusier (1887-1965), logo após a Grande Guerra (1914-18), invoca o espirito do classicismo e da geometria. A grande impressão causada pelo Pártenon (antes da Guerra, Le Corbusier viajou pelos Balcãs, Istambul, Atenas e Roma), combinada com os ensinamentos que adquiriu com Auguste Perret e Peter Berrhens, converteram Le Corbusier ao classicismo, e assim cedo renunciou à tradição do Jugendstil de inspiração medieval da sua educação.

Em 1917, Jeanneret instalou-se permanentemente em Paris, montou um atelier através do seu amigo, o engenheiro e empresário Max Dubois e também iniciou a pintura a óleo, incentivado por Amédée Ozenfant. A base do seu trabalho, tanto em arquitetura como em pintura, é a concepção espacial de interpenetração do espaço interior e exterior. Depois de Jeanneret e Ozenfant se autodenominarem puristas, fundaram juntamente com o poeta Paul Dermée a revista L’Esprit Nouveau, em 1920. O tema principal de L’Esprit Nouveau era a relação problemática entre a arte e sociedade industrial. Compartilhava com De Stijl a ideia de que o mundo industrial moderno trazia consigo a transformação do individualismo em colectivismo, e, também acreditava que a arte e a ciência não são opostos e que a sua união poderia sim gerar uma nova estética. Porém, L’Esprit Nouveau anuncia uma nova estética clássica em seu espírito – e esta ideia apresentava-se por uma constante justaposição de artigos acerca do velho e do novo. No ensaio ‘O purismo’, presente no número 4 de L’Esprit Nouveau, Jeanneret e Ozenfant introduzem a ideia de objet-type. Neste texto, os autores por um lado louvavam o cubismo pela abolição da narrativa, pela simplificação das formas, pela compressão da profundidade pictórica e pelo método de selecção de determinados objectos como símbolos da vida moderna; mas, por outro lado, condenavam o cubismo pela deformação e fragmentação superficiais do objecto e exigiam o restabelecimento desse mesmo objecto, através então da criação do objet-type. O pavilhão de L’Esprit Nouveau, construído para a Exposição Internacional de Artes Decorativas de Paris, em 1925, foi desenhado por Le Corbusier com o objectivo de se dirigir a um homem banal, que vivia numa economia de pós-guerra dominada pelo consumo massivo e a produção em série:

‘My intention was to illustrate how, by virtue of the selective principle (standardization applied to mass-production), industry creates pure forms; and to stress the intrinsic value of this pure form of art that is the result of it. Secondly to show the radical transformations and structural liberties reinforced concrete and steel allow us to envisage in urban housing - in other words that a dwelling tan be standardized to meet the needs of men whose lives are standardized. And thirdly to demonstrate that these comfortable and elegant units of habitation, these practical machines for living in, could be agglomerated in long, lofty blocks of villa-flats.’, Le Corbusier

Foi através de Auguste Perret (1874-1954) que Le Corbusier aprendeu a considerar o betão armado como o material estrutural moderno por excelência. E Corbusier entendia o betão como um meio para glorificar a industrialização do processo construtivo. A sua primeira encarnação desta ideia foi a estrutura Dom-ino (1914), desenhada com a ajuda de Max Dubois. Os pilares e as vigas constituíam-se num sistema pré-fabricado, independente das paredes exteriores e interiores, e sobretudo independente de qualquer organização espacial. Segundo Colquhoun, foi a partir da casa Citrohan (Weissenhof Siedlung, Estugarda,1920) que as obras de Le Corbusier se converteram em prismas abstractos. As paredes exteriores ao serem superfícies planas, uniformes e homogéneas, possibilitavam a desmaterialização da memória tectónica do objecto construído. Na casa Citrohan, o esqueleto estrutural torna-se oculto e invisível, as janelas abrem-se independentes da posição dos pilares que estão recuados em relação ao plano da fachada e, assim, um só volume cúbico e uma massa límpida se afirma – ao contrário, por exemplo do que acontece na obra de Mallet-Stevens ou Van Doesburg em que vários volumes cúbicos se sobrepõem e formam um objecto maciço. Ora, foi durante a concepção da casa Citrohan, que Corbusier publicou os ‘cinco pontos de uma arquitetura nova’: o uso de pilotis, a planta livre, a janela corrida, a fachada livre e a cobertura ajardinada. A propósito da Villa Stein e da materialização dos cinco pontos, Le Corbusier dizia que o exterior deveria afirmar uma vontade arquitectónica e embora o interior devesse satisfazer todas as necessidades funcionais, deveria sobretudo converter-se num campo de improvisação plástica desencadeada pelas condicionalidades da vida doméstica e dando assim origem à promenade architecturale – porque como se lê em ‘Por uma Arquitetura’, ‘A planta traz em si a essência da sensação.’.

A oposição/tensão então verificada entre o conceito de interior livre e o exterior límpido na obra de Le Corbusier, durante a década de 1920, alcançou o seu ponto culminante com o projecto da Villa Savoye em Poissy (1929-1931). Dentro de uma pureza geométrica branca e de um prisma que flutua sobre finos pilotis, o interior é livre e assimétrico e obedece a uma lógica dinâmica própria. Verifica-se assim o movimento das paredes da cobertura, o vazio do jardim suspenso interno, as obliquidades das rampas e a cavidade em sombra dos espaços vazios sobre o terreno. Segundo Argan, Le Corbusier pousou ‘a Villa Savoye na relva como um objecto, sem perturbar coisa alguma’. O espaço é contínuo – a natureza aberta que envolve o bloco hermético entra dentro da casa. E a sua concepção contínua de espaço, do volume erguido sobre pilotis, plástico, praticável, que absorve diversas direcções e dimensões, inseparável das coisas que o envolvem, deriva da sua pintura purista. E permite essa múltipla penetração da casa-objecto-espaço e a eterna comunicabilidade entre o interior e o exterior.

 

Ana Ruepp

CONTOS BREVES

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Câmara Municipal de Cascais


4. A MORTE E O DIA

Já lá irão uns dez anos, não conto bem, cheguei a esta idade em que cada década nos parece um ano apenas. Mas lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ao tempo, pelo Verão, saía de casa muito cedo, com dois netos pela mão - uma à direita, o outro à esquerda: a Inês, a chegar aos seis anos, o Tomás com quatro e meio. Descíamos o Monte Estoril até ao mar, procurávamos, na maré baixa, uma mancha de rochas onde pudéssemos descobrir caranguejos minúsculos, burriés e conchas várias... Os pequenos, descalços e de cócoras - como eu, tal qual - encantavam-se com aquele movimento de águas e vidas, respirando a transparência da manhã, acolhendo o sol ainda tímido. Contava-lhes então como, sessenta anos antes, quando ainda não havia o paredão por onde tínhamos caminhado, com outros garotos eu andava por ali, pela costa rochosa, e apanhávamos lapas e mexilhões e os comíamos crus. Ficavam os meus netos com ganas de provar um burrié, e eu levava - os então ao mercado de Cascais, a comprar uns mariscos vários, que os três preparávamos para o almoço. Creio que também assim aprendiam a comunhão do mundo, ou como todos pertencemos à natureza que Deus criou e nos dá vida. E a tira, individualmente: mas nada se perde, tudo se transforma...  De regresso a casa, atravessávamos o Jardim dos Passarinhos, onde em certa manhã fotografei os netos em cenários quase iguais aos de retratos meus aos três anos. E quando lhes mostrava os mesmos, eles miravam-me com sorrisos que, nos olhos deles, diziam incredulidade e amor. Logo me reconheciam naquelas fotografias, porque me conheciam e sempre me tinham visto em tamanho maior e com barbas... O coração não lhes mentia. A manhã, entretanto, já se fizera dia claro, meridiano, criador. Parámos junto ao tanque em que nadavam uma tartaruguitas e outras se enxugavam ao sol. Uma delas, maior, parecia mais velha, talvez doente. A Inês puxa-me o braço direito e pergunta: - «Avô, aquela está velha, doente! Vai morrer?» Respondi-lhe que não sabia se morreria agora, mas qualquer dia haveria de morrer... «Porquê, Avô?» Porque tudo o que nasce, vive e morre. «Nós também!» Também. Puxam-me então pela mão esquerda. É o Tomás. Baixo para ele os olhos e dou com os dele, escuros e luminosos, sérios e firmes. Diz-me: «Avô, o Tomás não nasceu!». Tinha razão: somos todos eternos no coração de Deus.

 

Camilo Martins de Oliveira

ATORES, ENCENADORES (XVI)

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Jacinto Ramos nos “Comediantes do Porto”

 

JACINTO RAMOS E O TEATRO DO NOSSO TEMPO - TNT

 

Já aqui fiz referência ao teatro Villaret, iniciativa de Raul Solnado que o dirigiu desde o espetáculo inicial em 1964, até 1968. Solnado realizou, como diretor e como ator, uma ação relevante no ponto de vista de repertório e sobretudo no ponto de vista de espetáculos e de elencos, com o devido destaque as suas próprias  encenações e interpretações. Mas ao mesmo tempo, abriu o teatro a iniciativas diversas da maior qualidade e repercussão: citei já, no artigo anterior, o célebre ZIPZIP feito  para a RTP.

Mas a partir de 1965, faz agora exatos 50 anos, o Teatro Villaret como que se desdobra e acolhe uma iniciativa especificamente dramática, com risco calculado e muito bem sucedido – o que é notável – de simultaneidade de espetáculos. A chamada Companhia do Teatro do Nosso Tempo – TNT (não confundir com o TNP - Teatro Nacional Popular de Francisco Ribeiro, anos antes no Trindade) fazia espetáculos no Villaret, em sessões de fim de tarde ou alternando com os espetáculos da companhia de Raul Solnado. O sistema era arriscado mas funcionou… o que se deve à qualidade dos  repertórios e dos elencos de ambas as companhias.

O TNT era dirigido por Jacinto Ramos (1917-2004), o qual desde 1945 marcava posição como ator em grupos profissionais e experimentais, com destaque para a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, onde ingressa em 1950, numa colaboração intermitente mas de dezenas de anos. Esteve entretanto ligado a outras colaborações, mas destacando sempre uma qualidade e exigência de repertório e de interpretação que duraria até final da carreira.

Em centenas de peças e de autores, cite-se designadamente entre os dramaturgos portugueses, desde Gil Vicente a Garrett, Eça de Queiroz (adaptação de Os Mais por Bruno Carreiro no Teatro Nacional) mas também, designadamente, Raul Brandão, António Patrício, Alfredo Cortez, Júlio Dantas, Romeu Correia, Alves Redol, Luis Sttau Monteiro, Bernardo Santareno, José Cardoso Pires...

Acrescente-se a participação na televisão e em cerca de 10 filmes, com destaque para o Chaimite de Jorge Brum do Canto.

Ora bem: como vimos, em 1965, Jacinto Ramos cria e dirige, no Teatro Villaret, a companhia do Teatro do Nosso Tempo, com um  elenco de grande qualidade e  um repertório de atualidade.

E nesse aspeto, salienta-se o repertório contemporâneo, desde logo com peças iniciais  da atividade da companhia: por exemplo O Segredo de Michael Redgrave a partir de um conto de Henry James, ou especialmente a Antígona de Annouilh, este um belíssimo espetáculo pela qualidade do texto e pela interpretação, com destaque para  Maria Barroso na protagonista,  no que viria a ser, cremos, o seu último grande papel  como atriz.

Recordo o comentário que na altura escrevi acerca do espetáculo de estreia da companhia, com O Segredo: “é uma peça bem construída de desenvolvimento certo e que enquadra com a maior segurança o conteúdo denso, cheio de implicações. O ritmo lento marca com clareza a intemporalidade ambiental, a repetição genérica de movimentos, de vidas e de psicologias.” E a análise crítica prosseguia com referências específicas ao encenador Paulo Renato, que poderemos um dia evocar nesta série de artigos.

 

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

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The election weather man, 2015

A economia conquista progressivamente conversas e debates em plena contagem decrescente para as eleições gerais de 2015 May 7. The Chancellor of the Exchequer apresenta na House of CommonsThe election weather man 2.JPG o último e o mais político The Budget da presente legislatura. Iluminando êxitos e obscurecendo insucessos, qual fabuloso eclipse solar que nestes dias assombra o North Atlantic, RH George Osborne é o perfeito weather man ao introduzir clássico orçamento de cash-for-voters. — Chérie, chat échaudé craint l'eau froide. O ex Scotland First Minister Alex Salmond enuncia na BBC os termos em que o SNP quer ditar novo programa económico por apoio a eventual governo minoritário do Labour. RH Ed Milliband diz que tal não acontecerá neste milénio. Os ânimos aquecem em torno do líder do UKIP durante um almoço familiar de MEP Nigel Farage num pub em Downe (Kent). — Hmm. It's the exception that proves the rule. O US President Barack Obama recebe no Oval Office HRH Charles of Wales. Singapore decreta luto nacional de uma semana no passamento do founding father Mr Lee Kuan Yew, o Premier da cidade-estado nos seus gloriosos 30 anos. A Leicester Cathedral recebe as ossadas do King Richard III, caído na Bosworth Battle em 1485. Também Madrid anuncia o achamento do esqueleto do Signor Miguel de Cervantes. The Wee smoked white tea de Perthshire é classificado como the finest in the world.

The election weather man 3.JPGApprehensive sunny skies and light winds em Central London. Por momentos o sol confirma-se a grande estrela da galáxia. The Parliament esperava um amistoso orçamento em ano eleitoral, mas o documento quase é obnubilado pelo otimismo retórico de RH George Gideon Osborne. Tory austerity!? A tentação eleitoralista é irresístível no Number 11. So sorry, but here we are dancing by the old music. O leque de medidas contém goodies para este, aquele e mesmo aqueloutro segmento votante. Com um horizonte pautado por crescimento cifrado nos 2.5% em 2015 e 2.3% em 2016, a par de desemprego na casa dos 5% equiparado à taxa do défice, obscurece-se a manutenção da monumental Government debt: £1.48 trillion (80.4% do GDP) em 2014/15, sob perspetiva de descida real para £1.63 trillion (71.6%) em 2019/20. O insólito do debate orçamental em curso é lateral, pois. Ao “economic plan” dos conservadores contrapõem os trabalhistas “a better plan” e os liberais esgrimem agora “a better alternative.” The Treasury Secretary Danny Alexander discursa nos Commons com uma Lib Dem yellow box para diferenciar o parceiro da Coalition da Conservative red box, evento sectário que lhe vale a admoestação do RH Speaker John Bercow sobre regras e institucionalismo.

O formato e a data para a realização dos Election TV debates entre os partidos estão finalmente decidos, após prolongado jogo de taticismo protagonizado por Downing Street. A ITV recebe a April 2 um full debate entre o Prime Minister e o Opposition Leader mais os Party leaders do Ukip, Greens, SNP e Plaid Cymru (os dois últimos de natureza regional, por Scotland e Wales). No 2015 General Election tracker mantem-se penoso impasse numérico: Labour – 34.02%; Conservatives – 33.16%; Ukip – 14.9%; Lib Democrats – 7.9%; e Greens – 4.73%. Faltam 44 dias para o ballot day.

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Mrs Kristin Scott Thomas recebe a sua Damehood no Buckingham Palace das mãos de Elisabeth II “for service to drama.” A ilustre nativa de Cornwall junta-se assim a restrita galeria onde avultam as notabilíssimas Judi Dench e Maggie Smith. A atriz (de 54 anos) ultima os preparativos para levar a personagem da monarca (de 88 anos) aos palcos, corporizando um papel até agora interpretada por Dame Helen Mirren em The Audience. Quando ainda está na retina The English Patient, do novo projeto diz a própria living royal person: “Quite a challenge.” A peça de Peter Morgan (da película The Queen) estreia em London's West End no próximo mês e retrata as reuniões privadas semanais entre Her Majesty e os UK Prime Ministers ao longo das seis décadas de reinado, aliás, uma série iniciada com sir Winston Churchill. — By me princes rule, and nobles, all who judge rightly.

 

St James, 23rd March

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 23 a 29 de março de 2015

 

Em ano de diversas celebrações, não esquecemos o centenário de dois dos fundadores dos «Cadernos de Poesia», Ruy Cinatti e Tomaz Kim, enquanto o centenário de José Blanc de Portugal passou em 2014. Para os promotores dos «Cadernos», «a Poesia é uma só» e o poeta é um "homem destinado a nele se definir a humanidade. Um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro", através de uma "atitude de lucidez, compreensão e independência". Hoje voltamos a recordar Cinatti, um «cavaleiro de aventuras», retratado por Ruben A.

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QUE CAVALEIRO DE AVENTURAS?...
«A Torre da Barbela» de Ruben A. é um dos romances portugueses mais entusiasmantes do século XX. Só um escritor dotado, a um tempo, de imaginação prodigiosa e de um belíssimo conhecimento da nossa história e cultura, poderia escrever uma narrativa onde, sem sombra de anacronismo, usufruímos um diálogo rocambolesco entre personagens vindos de oito séculos de existência portuguesa. O historiador experimentado associa-se ao romancista culto para nos dar, num registo aparentemente leve, um exemplo de criação moderna de primeiríssima exigência. Ruben A. é na cultura portuguesa contemporânea um caso – desde as suas memórias («O Mundo à Minha Procura») até à investigação histórica sobre o primeiro homem moderno que houve em Portugal – D. Pedro V –, passando pela capacidade de imaginar e sonhar, encontramos a preocupação de ultrapassar a mediania e de fazer da cultura algo que valha a pena e que permita sermos melhores. Foi, assim, um lutador contra a indiferença, a irrelevância e a mediocridade – e por isso arcou com intrigas, incompreensões, invejas e as mais diversas safadezas. Lembro o romance e o seu autor, a propósito de um seu amigo, cujo centenário passou há dias – Ruy Cinatti. Foi ele que inspirou a figura mais complexa e inusitada do enredo romanesco, o Cavaleiro da Barbela, protagonista do amor fantástico pela «prima das franças», Madeleine, que levou Eduardo Lourenço, com a sua proverbial perspicácia, a dizer: «o romance de Ruben A. (…) é o relato dos nossos oito séculos de santa felicidade absurda, do nosso repouso provinciano, perturbado pela presença da nossa longínqua e desenvolta prima francesa, Madeleine. Para Ruben A., a história do amor louco do Cavaleiro da Barbela pela sua prima Madeleine é a história do nosso imaginário erótico, cultural e literário» («Nós e a Europa ou as duas razões», tradução nossa do francês). «Ah, como nós precisamos de ir lá fora aprender essas coisas! Sabe, estamos para aqui a cozinhar bacalhau e a ver navios na barra de Viana. Exportamos enguias e trutas assalmonadas – o resto é esperar por morrer sem ter tomado parte na vida. Passa-nos ao lado».

 

NÃO SOMOS DESTE MUNDO
Não foi por acaso que Ruben escolheu o seu amigo Ruy Cinatti para inspirar o Cavaleiro da Barbela, no retrato do «drama lírico das nossas deficiências, corrosivas, o tacanho de nossa convivência, radiografia que deixa a nu a falta de progresso em oito séculos de procriação, o monólogo de diálogo que não existe e a beleza de uma paisagem que existe»… No romance o cavaleiro percorre os montes com o garrano da Ribeira Lima, Vilancete, seguido por Abelardo, o falcão imprescindível na caça. É o mais lendário do mundo triangular da misteriosa torre, sintetizando «um sem número de atributos» com permanência «flutuante a um grau acima da maré cheia do equinócio». O encontro com Madeleine é surpreendente, saindo o cavaleiro do seu sono letárgico, com referências que estão a anos-luz das da francesa – o sonho, a aventura, o idealismo, a liberdade e a natureza. Mas essa aproximação constitui a chave da intuição que Ruben A. a propósito da pergunta sobre quem somos. Só um poeta idealista, empenhado em procurar horizontes novos, poderia corporizar o que o romancista queria nesta obra pela qual se sentiu apaixonado. Ruy Cinatti é o contemporâneo que Ruben considera ser uma espécie de alter-ego de si próprio, também dividido entre o respeito das raízes seculares e a necessidade da sua transformação; entre a tradição e o impulso fortíssimo para abalar os fundamentos. Ruben e Cinatti sentem dentro de si essa contradição e a exigência do inconformismo. E, no caso do Cavaleiro, estamos diante de um Quixote à nossa medida, misturado com o «pobre de mim» de Fernão Mendes Pinto. O amor louco que o Cavaleiro protagoniza com Madeleine (e o inesperado rapto por esta) contrasta com o fechamento e a acomodação dos mortos-vivos, que são os Barbelas e que representam Portugal. Contudo, o romancista, por um lado, e o poeta seu modelo, por outro, recusam o fatalismo da irrelevância. Por isso, o Cavaleiro é uma referência singular e única. «Ali, lado a lado, Madeleine e o Cavaleiro digladiavam-se na procura da felicidade que cada um trazia dentro de si. Dois mundos que se mediam animados pelo fogo de uma chama intransmissível».


EM PROL DA CONDIÇÃO HUMANA
Há dias, a convite de um amigo, o escritor timorense Luís Cardoso, participei na celebração do centenário do nascimento de Ruy Cinatti (1915-1986). Foi a generosidade e a determinação desse «Cavaleiro de aventuras» que lembrámos, como poeta maior da nossa língua e como timorense do coração. «Dizia o que pensava – sua magnânima qualidade». Ele nos ensinou que o mundo da língua portuguesa é um condomínio e que o humanismo universalista nos leva à confluência entre uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas. E em Timor, Cinatti não apenas procurou colocar-se ao serviço do povo que tão intimamente amava, mas também usar a sua experiência de agrónomo e antropólogo em defesa de uma natureza luxuriante ameaçada. Foi uma personalidade complexa e fascinante, o amor fraterno atraía-o, o sonho era o seu ambiente natural, a descoberta das diferenças a sua paixão, a ciência e o espírito andavam sempre consigo, numa ligação fecunda. Poeta dos «Cadernos de Poesia» (1940), com José Blanc de Portugal e Tomaz Kim, bem como da causa de Timor, sobre ele Peter Stilwell escreveu «A Condição Humana em Ruy Cinatti» (Presença, 1995), obra imprescindível para compreendermos não só a qualidade poética do autor de «Nós Não Somos deste Mundo», mas para entendermos a importância da sua capacidade criadora e da sua espiritualidade.


UMA AURA INULTRAPASSÁVEL
Francisco de Sousa Tavares falou do poeta seu amigo como possuidor de uma «aura inultrapassável»: «era necessário que a rara magia da sua personalidade única ficasse presente na nossa consciência como um traço de uma raça superior em que não havia ódio nem ambição desmedida e a relação dos homens fosse regida por uma lei primária – a lei da generosidade e do amor». É difícil dizer melhor sobre quem foi figura única, que sonhava com a verdade e a justiça, que muito dificilmente encontrava em fugaz vislumbre. «E eu – pobre de mim! – tão grande calma / Faz-me sofrer por não saber dar mais. / Oxalá que alguém viesse ensinar-me / O silêncio que, a sós, vai purificar-me: / Senhor! Porque não vens, porque me atrais?!». Eis o paradoxo e a dualidade. Sempre que estive em Timor-Leste recordei a lição de Ruy Cinatti. Foi das pessoas que levantaram o véu sobre essa terra e esse povo, vivendo intensamente o drama da distância e da proximidade: «O sol enche de luz um espaço meu / Maromak-Oan / (macho-fêmea). / Bandeira em pleno! / Timor em festa! / Timor tão longe que não vejo / passos meus andando praias / - Suai-Tíbar! / Ó Lulik acorda os homens. / Ergue-os ao ápice arbóreo! / (…) Timor surgindo / Mar indomável!...».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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