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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PORVENTURA VERSOS

27.

Porventura versos 27.JPG


São submissas as palavras, sim

São

Não as leste tu conforme

Teu coração? 

 

São submissas as palavras, são

Senhoras do inteiramente impossível

Com que se dão

À espera do mundo as ler

 

Numa travessia de interpretação

Permitida

A quem ousa ou não

Levá-las

Às travessias

 

A oeste do destino

 

Lá onde o significado do momento

Ou do eterno

Num haver-se realizado por várias formas

Vive num arquipélago a sul do equador

Do amor errante

 

Até ser tempo

 

Para de novo abrir os olhos

E esclarecer-se na esperança

De arder lenha, despedidas e segredos

 

Sonhando e crendo

Não serem submissas

As palavras

Com que ainda hoje te escrevo

 

 Meu cupido não puro

De tão amado

Que nem o céu te quis na expedição

Das inexactidões

 

Aquelas tão inebriantes

De verdades

Aproadas

Conhecidas

Das palavras submissas

 

Ou não fossem caravelas

De dias e anos consentidos

Por correntes que atrás não voltam

Para não naufragarem mais amores

 

Na viagem

 

Naquele périplo

Em que há que tomar uma outra via

Da vida

Mesmo lhe não dando inteiro crédito

 

E volto a dizer-te, vem

Vem sem derrotas

Ler

A terra firme

Das palavras submissas

Indícios de muitas pressas

 

É certo

Mas testemunhas das léguas precisas

Ao título

De um poema

 

M. Teresa Bracinha Vieira

2015

ATORES, ENCENDORES (XXI)


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Carmen Dolores, 1944 (in http://www.theapricity.com)


EVOCAÇÃO DA CARREIRA DE CARMEN DOLORES

Evoco hoje uma atriz referencial no teatro, no cinema e na televisão, Carmen Dolores Com a particularidade de ter iniciado a carreira com 19 anos, não no teatro declamado mas no cinema em “Amor de Perdição” (1943) de António Lopes Ribeiro e, no mesmo ano, “Um Homem às Direitas” de Jorge Brum do Canto. Curiosamente, no “Amor de Perdição”, Carmen faz a personagem Teresa e Eunice Muñoz, na altura usando o nome de Eunice Colbert, faz a personagem Mariana.

Recordamos a carreira teatral de Carmen Dolores.

Em 1945, encontramos Carmen na Companhia dos Comediantes de Lisboa, dirigida por Francisco Ribeiro, com um repertório exigente: “Eletra” de Jean Giraudoux, “Pétrus” de Michel Achard e “O Cadáver Vivo” de Leon Tolstoi. Nada disto era fácil na época: mas em qualquer caso, esta estreia valeu a contratação para a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, então em pleno prestígio e atividade cultural e cénica no Teatro Nacional de D. Maria II.

E sublinhamos o âmbito cultural e a exigência das interpretações, designadamente num repertório clássico: “Frei Luis de Sousa”, “Sonho de uma Noite de Verão, “As Astúcias de Scapin”… Mas também em autores contemporâneos na época pouco conhecidos e pouco representados em Portugal: Marcel Achard, Jean Anouille, Alexandre Casona, Luigi Pirandello e outros mais.

E também autores portugueses contemporâneos designadamente “O Casaco de Fogo” de Romeu Correia, ou “Alguém Terá de Morrer” de Luis Francisco Rebello.

Carmen Dolores voltaria mais tarde ao Teatro D. Maria II, em espetáculos dispersos mas relevantes, com destaque para “O Jardim Zoológico de Vidro” de Tenessee Williams e outros dispersos.

Porem, em 1958, encontramos Carmen no Teatro Avenida, como atriz principal da Companhia do Teatro de Sempre, dirigida por Gino Saviotti, que já referimos nesta série de evocações. Aí, há que destacar sobretudo duas grandes interpretações.

Em primeiro lugar, a Sofia de “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão. Já rotulei a dramaturgia de Brandão como a proto-história do teatro moderno português (in “História do Teatro Português” 2002): e precisamente, este “Gebo e a Sombra” constitui ainda hoje uma poderosa reflexão sobre a simbiose da pobreza material com uma pobreza espiritual que atinge os personagens e sobretudo descreve como que um destino de frustração que em muito transcende os aspetos materiais. Mas não só: a peça impõe uma profunda reflexão existencial. O Gebo, só tardiamente percebe ou consciencializa que está errado quando julga que “a felicidade, na vida, é não acontecer nada” e degrada-se moralmente – de tal forma que “Tudo foi inútil”, derradeira frase da peça, proferida pela Sofia, interpretada primorosamente por Carmen Dolores.

E Carmen Dolores, na mesma companhia e na mesma temporada, marcaria a carreira e o meio teatral da época com outra interpretação notável, agora no papel da enteada nas “Seis Personagens à Procura de Autor” de Pirandello.

Carmen transitaria, no ano seguinte, para o Teatro Nacional Popular, dirigido no Trindade por Francisco Ribeiro. Aí interpretou a protagonista de “Lucy Crown” texto adaptado por Jean Pierre Aumont de um romamce de Irwin Shaw, e a “aleleuia erótica” assim mesmo designada pelo autor, Lorca, intitulada “Amores de Dom Perlimplim com Belisa no seu Jardim”, texto de uma poética difícil.

De 1961 a 1965, integra o Teatro Moderno de Lisboa, cooperativa de atores a funcionar no Cinema Império. Já aqui referimos (in “Atores e Encenadores” X – 11.02.15) esta inesperada, para a época, incursão num repertório (e num horário, pelas 18 horas!…) bem pouco habitual entre nós: sobretudo, a encenação de “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires constituiu uma abordagem inesperada e plenamente conseguida do teatro moderno português - a da renovação da perspetiva histórico-politica na época habitual.

Em 1969 assinalo em duas produções em teatros diversos: “A Dança da Morte” de Strindberg, onde, dirá Luís Francisco Rebello, “atingirá o ponto mais alto da sua carreira de comediante” (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 249) e a “Forja” de Alves Redol encenada por Jorge Listopad. Miguel Falcão recorda os incidentes que marcaram a estreia desta peça, provocados por uma nota da empresa sobre censura, no mínimo pouco clara, incluída no programa (cfr. Miguel Falcão - “Espelho de Ver por Dentro – O Percurso Teatral de Alves Redol” ed. INCM 2009).

Por essa época, trabalhou na Casa da Comédia soba direção de Jorge Listopad em peças de Srindberg (“Dança da Morte” 1969), Durremmatt (“A Dança da Morte em 12 Assaltos”) e Romain Weingarten (“Alice nos Jardins do Luxemburgo” (ambos em 1972).

E assinala-se, a partir de 1974, uma colaboração regular com João Lourenço, que se prolongaria até pelo menos 2006, com interrupções, uma delas aliás de mais de 7 anos em que Carmen Dolores viveu em Paris: de qualquer modo, no Teatro Aberto e no Novo Grupo de João Lourenço participou numa renovação do repertório, designadamente a partir de diversas peças de Bertold Brecht, antes proibidas: cito “As Espingardas da Mãe Carrar” ou, mais tarde “O Circulo de Giz Caucasiano”. E com João Lourenço trabalhou ainda ao longo dos anos 2000.

Carmen mantem-se assim em cena ou em colaborações de recitais poéticos até aos nossos dias.

E em 1984, Carmen Dolores publicou um livro de memórias, a que chamou “Retrato Inacabado”. Ora, é caso para dizer que, decorridos estes 30 anos, o retrato em boa hora continua inacabado, pois a carreira, decorridos que estão 72 anos desde a estreia, não terminou!

DUARTE IVO CRUZ

 

 

 

LONDON LETTERS

 

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An appeal from the blue mountain, 2015

A sagrada montanha azul no topo do mundo treme e o povo nepalês pede que oremos por ele. O país é atingido por força equivalente a 20 bombas atómicas — a 7.8-magnitude earthquake

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O choque nas gigantes placas tectónicas dos Himalayas está em curso livre desde este weekend. A avalanche de neve, gelo e pedras nas escarpas brancas do Everest já alisou o casco histórico de Kathmandu, mas a contagem crescente das baixas continua em todo o vale até aos picos tibeteanos. — Chérie, les jours se suivent et ne se ressemblent pas! A emergência na cordilheira misteriosa desvia o olhar de outros em estádio de necessidade. A European Union ergue um muro ao largo do Mediterranean Sea para supostamente fazer face às migrações negras dos que fogem à guerra e à fome, em busca de uma vida digna. — Hmm. What must be done need not be said, and what must be said need not be done. A campanha eleitoral entra na última semana com as opções em aberto quanto ao próximo captain no Number 10. The Queen e parada no Cenotaph em Central London marcam o Gallipoli centenary, com uma prece aos céus e aos corações por aqueles que lá cumpriram o último sacrifício. A campanha militar nos Dardanelles Straits afasta o jovem First Lord Winston S Churchill do British Admiralty e custa a vida a 130,000 soldados da Commonwealth.

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A few Winter showers with sunny spells around, em pleno galope para o encerramento na campanha à mais incerta eleição geral na última geração. Quem governará o UK após May 7th? As sondagens não sabem e as lojas de apostas somam libras em dois epílogos: Lab minority govt – 36,4%; Con-Lib Dem coalition – 21,2%. O cenário pós eleitoral complica-se, porém. Ganhe quem ganhe o sufrágio, Conservatives ou Tories terão minorias na House of Commons e resta-lhes o colorido puzzle dos 650 MPs para entrar em Downing St. Ora, as hostilidades na batalha partidária estão a reduzir o leque de hipóteses. O Labour rejeita qualquer acordo com os nacionalistas do SNP devido ao seu designio de fraturar o reino unido. Agora são os Liberal Democrats a declinar o apoio aos trabalhistas para comandarem o No. Ten. Entre uns e outros, a Scot First Minister robustece o estatuto de estrela nas highlands e nas preferências populares da Great Britain. Uma sondagem sobre qual o político mais capaz para liderar a Westminster democracy diz das simpatias pelo progressismo: Nicola Sturgeon – 40%; David Cameron – 26%; Ed Miliband – 11%; Nick Clegg – 1%. Extraordinário é que a senhora nem sequer é candidata.

O Sturgeon factor ameaça todos na caça ao voto, que é aqui sumamente local. Os Tories exploram o St Georges day para apresentar paroquial visão de ‘English votes for English laws,’ a chamada “West Lothian question” que repetirá a South a divisão a North. Temo até que, após Scotland e Europe, a propensão referendária de TRH David Cameron alastre algures a Wales. Por seu turno, após estupendo clash com o azulíssimo Mayor Boris Johnson no BBC’ sofa de Andrew Marr, o Labour Leader expõe na Chatham House as diretrizes da Miliband Doctrine. Europeísta por convicção, o New old Labour defende “an ethical foreign policy” assente em três princípios: “Human rights, climate change and tackling inequality.” No mais, sob “the primacy of multi-lateral institutions,” assume que “there’s a place for intervention, but only if it’s done right – and if post-war planning is adequate.” O General Election tracker mantém o glocal suspense: Labour – 33,6%; Conservatives – 33,4%; Ukip – 13,3%; Liberal Democrats – 8,4%; e Greens – 5,3%. As perspetivas a North atribuem 10% da House of Commons ao SNP. Faltam 9 dias para soar o decision bell.

Nuvens incertas pairam também na frente financeira e na novela helénica pelos eurogabinetes. O governo irlandês revela novo plano económico para enfrentar as próximas eleições gerais. No Spring statement, Dublin afasta a linha austeritária e o Minister for Finance quer inscrever “€1.2 billion and €1.4 billion for tax cuts and spending increases” no seu orçamento outonal. Que as milionárias contas andam inquietas prova-o multa recorde aplicada ao Deutsche Bank pelos reguladores nos USA e no UK. A pena soma £1.66 bn ($2.5bn) por alegada manipulação das taxas de juro. Entretanto, a braços com idênticas atribulações, o Finantial Times informa que o HSBC ameaça deslocar a sua sede da City para amenas, capitalistas e orientais paragens. — Well. A closed mind is like a closed book; just a block of wood.

St James, 27th April

Very sincerely yours,

V

A VIDA DOS LIVROS

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De 27 de abril a 3 de maio de 2015

Alberto Vaz da Silva é autor de «O Pó do Espólio», um número especial precioso da revista «Egoísta», de Setembro de 2010, feito a partir do espólio de José Pacheco – no qual, pela Grafologia são analisados os protagonistas da geração de «Orpheu», cujo centenário assinalamos neste momento.

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UMA GERAÇÃO SINGULAR
«Nós os três somos de Paris. E somos. Temos esta elegância, esta devoção, este farol da Fé». É Almada quem escreve a José Pacheko, referindo-se também a Mário de Sá-Carneiro. Sente-se uma pulsão antiga de uma parte da nossa intelectualidade (de Garrett à Geração de Setenta e por aí adiante…) de pôr Portugal ao ritmo do cosmopolitismo europeu. Por isso, a dissidência de 1915 da «Renascença Portuguesa» foi «dos portugueses que escrevem para a Europa»… «O artista e as artes são indicadores dos seus tempos». Na sua diversidade, «Orpheu» representa esse desejo moderno, assente nas afinidades eletivas de uma fecunda convergência de peculiares singularidades. Mas, pouco tempo antes, o autor da «Confissão de Lúcio» dissera a Pacheko: «Tenho tantas saudades da sua Alma – a sua Alma toda em Oiro! Que pena! Que pena! (…) Parece-me que já nem gosto de Paris. Não sei nada, nada, nada. Um grande vazio! Nunca me esqueço da sua Alma, do seu Espírito – de toda a criatura adorável que você é. Tenho tantas saudades da sua companhia». Os sentimentos são contraditórios e há uma força renovadora que se impõe. Se a escrita de Pacheko «é nervosa, convexa, com entrelinhas insuficientes, praticamente sem margens», revelando «o intelectual sensível e requintado que se eleva acima da confusão e da espuma dos dias», o seu amigo Sá-Carneiro tem uma «escrita de grande idealista de verbo inspirado». No entanto, a pouco e pouco, vemos «a instabilidade crescente da bela escrita clara de Sá-Carneiro». Indicia-se a «desnorteação da emotividade; gradualmente a escrita desarticula-se». E, num envelope, há um minúsculo e envergonhado nome de remetente, como «sigla pré-suicida afundada com uma mó ao pescoço». Há um «medo irracional da vida, um pacto entre viver e recusar fazê-lo» E «multiplicam-se as reticências, outras tantas vaguidões e incertezas, e a escrita, anunciando várias espécies de horrores, vai-se dissolvendo como se um ácido corrosivo a atacasse»… Como diz no poema «Dispersão» (que poderia ser súmula de toda a poesia de Sá-Carneiro): «Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto…».

O ANO DE «ORPHEU»
Na semana que passou, na Casa Fernando Pessoa, foi apresentado o volume organizado por Steffen Dix «O Ano do Orpheu, 1915» (Tinta da China), e José Manuel dos Santos recordou, bem a propósito, a passagem emblemática da introdução ao «Livro do Desassossego», na qual Fernando Pessoa fala desse homem que aparentava trinta anos, que ele passou a cumprimentar a partir da cena de pugilato presenciada por baixo da janela… «Falei-lhe da revista “Orpheu”, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em “Orpheu” sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade; e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também». O ano de 1915 foi, no caso português, pode dizer-se, o início do nosso século XX, na aceção do século curto de que fala Hobsbawm. Como se diz na obra de S. Dix, houve vários sinais que precederam «Orpheu» - e o próprio Fernando Pessoa, nas páginas de «A Águia» antecipou a ocorrência do singular fenómeno. Se dúvidas houvesse, basta ver a continuidade e as repercussões, os significados diferentes dos diversos protagonistas e contributos. De facto, «Orpheu» marca uma nova atitude – que tem de ser compreendida no seu carácter plural, complexo e polifónico. E se a revista apenas teve dois números (o primeiro com a capa da autoria de José Pacheco – cuja matriz se encontra no espólio do Centro Nacional de Cultura – e o segundo com a marca inconfundível de um verdadeiro ícone da modernidade portuguesa), a verdade é que a partir deles vamos encontrar inúmeros caminhos (que a «Presença» procurará transformar em «Literatura Viva») e que José Pacheko, na revista «Contemporânea» sintetizará na expressão: «uma revista feita expressamente para gente civilizada e para civilizar gente». É verdade que a arte dos que escreviam em «Orpheu» soía ser para poucos, mas essa circunstância é sempre válida para aqueles que anunciam inesperada e persistentemente caminhos novos. E, sobre influências britânicas, temos a lembrar a revista «Blast», sobre cujo conteúdo Brazska afirmou no sentido «vorticista»: «fomos influenciados por aquilo de que mais gostávamos»: «cada um de acordo com a sua própria individualidade», explicando a riqueza e heterogeneidade das colaborações da revista.


A LETRA DOS INTERLOCUTORES
Alberto Vaz da Silva, no número de «Egoísta», percorre os protagonistas do espólio, sobretudo colaboradores de «Contemporânea». Mário de Saa: «É de um raciocínio espantoso, e duma inteligência assombrosa. Você Mário é um grande monumento» (escreve Pacheko). E a sua letra revela imaginação e inteligência, rescendendo originalidade… O original de «Exortação ao meu Anjo» de José Régio é um monumento grafológico. Quanto a Fernando Pessoa, «a escrita tão inclinada, tão ligada, tão rápida, tão combinada, com finais tão generosas, tão angulosa mas tão aberta e largada diz-me que há uma enorme bondade e nobreza, um sentimento de fraternidade universal no poeta da Mensagem». Amadeu de Sousa Cardoso exprime uma «natureza riquíssima, que sabia utilizar os sentimentos em vez de se deixar invadir por eles». António Botto assume-se «como obra de arte mas não no interior de si próprio…». Santa-Rita Pintor é um «temperamento apaixonado, combatente sem tréguas»… Leonardo Coimbra tem «uma grande escrita generosa de um filósofo que olha para o alto. Tudo é rápido, largo e ligado nesta expressão gráfica de uma inteligência percuciente». E sobre Carlos Queiroz, tão importante para que Fernando Pessoa se tenha tornado referencial aqui e além-fronteiras, temos a alusão à pintura de Eloy em ligação com as escritas do poeta em momentos diferentes: «Mário Eloy captou magistralmente o admirador de Mallarmé, Valéry, Rimbaud e Verlaine, que viveu os seus apenas 42 anos como que através de um espelho, secretamente, o que o fundo da pintura reflete, fechado no coração da para si mágica Lisboa: “ver só com os olhos é fácil e vão / por dentro das coisas / é que as coisas são”»… Em suma, com «Orpheu», a tendência modernista (diz José Carlos Seabra Pereira) ofereceu aos meios literários portugueses a oportunidade, única e quase sempre desaproveitada, para uma receção inovadora de autores remanescentes do decadentismo e do simbolismo (como Luís de Montalvor), já muito contaminados pelo neorromantismo (Augusto Ferreira Gomes) ou prontos a nele se integrarem plenamente uma vez transcorrida a experiência de «Orpheu» (como Armando Côrtes-Rodrigues). E assim se abriram novas perspetivas e movimentos, heterogéneos e paradoxais, que chegam ao nosso tempo.

Guilherme d'Oliveira Martins

SONETOS DE AMOR MORDIDO

S. Bruno, Cartuxa de Miraflores, Burgos

15. ORAÇÃO DE SÃO BRUNO MORIBUNDO

 

          Pudesse ora ficar meu coração

          à sombra do silêncio do teu rosto,

          como se regressasse, pelo sol posto,

          ao resguardo da tua habitação,

 

          e, ao terminar do dia que é a vida,

          repousasse na noite que alumia

          o caminho percorrido. Tornaria

          já real, enfim, a visão perdida...

 

          Calado então diria o nunca dito,

          sequer ao teu segredo, quando, aflito,

          de nada, nem de ti, me socorria...

 

          Foi só de noite todo o meu caminho,

          só esperança sentir o teu carinho,

          só busca o teu amor, que me sentia...

 

         

Camilo Martins de Oliveira

 

CARTA A LÍDIA JORGE


Por Teresa Bracinha Vieira

carta a Lídia Jorge.JPG

 

Singular Lídia:

Hoje quis tanto voltar para os braços da minha mãe. Quis tanto que o Camané e o Pedro levassem esta vontade a ser possível, e todos tivessem quentes mimos, podendo chorar na ternura dos xailes, como quem sabe que assim deve ser, para expurgar o joio, pois que que a partir de hoje, o mundo, seria todo ele um único seio. Todo ele uma humanidade sem freio. Todo ele uma viagem de amparo dado pela força do amor.

Hoje quis tanto voltar para os meus braços, aqueles que já foram ilhas tempo de mais, e que agora tanto querem descer para sul, aquele sul, há tanto sem ninguém, mas onde surgirá uma carta atirada do avião de Exupéry e no selo, o desenho de uma passagem, abafada, mas passagem, mas saída, com um coração em eco soberano. E não é utopia o que lhe digo ou o sol não queimasse e a chuva não desagregasse; é vento envolto numa entrega, dançando no local onde a vida faz frente à morte: é muito disto que lhe falo. É deste igualar que sobrevive o morto amor. A viva guerra, essa deve ser levada à fundura de uma campa, e que a liberdade lhe pese fortemente, não tempo demais, pois ela, a liberdade, deve ser sopro que adeja a cada um no ar das estações futuras. E é do presente que é futuro que lhe falo também num choro forte como a mudança que desejo do fundo da alma. Os que abandonaram a vida que se vão e levem as ruínas. Eu só quero o mar a ondular nuns braços onde tudo vacile em tranquilo equilíbrio. E se da minha trémula estadia nesta vida, eu puder texturar de seda, o rochedo que me esbarra os dias, assim já ganharei o direito a chorar nos braços da minha mãe e nos meus. E se for escurecer, Lídia, direi Abril. Direi agora. Direi sem rédea. Direi, parti, e estou à porta. Direi outros sítios lá no alto das asas sussurrantes, essas mesmas que de atentas fazem os arados brilhar, e abrir os sulcos dos meus sonhos para darem aos homens novas terras, e as suas mãos-farol, infinitas a abrirem-se nas boas-vindas ao mundo.

 

Beijo no abraço desta nossa forte Amizade de sempre

Teresa

22.04.15

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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O Plano de Cerdá e a expansão urbana infinita.

 

O Plano de Cerdá desenvolve-se sobre a cidade de Barcelona em1859 e associa a forma urbana à funcionalidade – o planeamento urbano é um equilíbrio entre a forma, o funcionamento e o tempo. O plano não é o único na cidade de Barcelona, mas é o mais determinantemente identificável.

 

‘Uma cidade! É a afirmação do homem sobre a natureza. É um acto humano contra a natureza, um organismo humano de protecção e trabalho. É uma criação. A poesia é obra humana – uma série de relações estabelecidas entre imagens perceptíveis.’, Le Corbusier, 1925

 

A ‘ensanche’ que Ildefonso Cerdá (1815-1876) propõe para Barcelona, convive e afirma-se ao lado de outras formas urbanas pré-existentes – o castrum romano, o burgo medieval, a cidadela e o estabelecimento militar. Cada tecido é perfeitamente reconhecível. Cada tecido representa um tempo. E a especificidade dos tecidos pré-existentes integra-se na nova espacialidade do Plano de Cerdá. Ildefonso Cerdá estende Barcelona para além dos seus limites, segundo uma malha rigorosamente ortogonal, de parcelas e dimensões uniformes (o quarteirão quadrado pretendia-se ocupado só em dois dos seus quatro lados, definindo áreas verdes e pedonais). Traça-se a cidade densa, através de um sistema viário claro – desenham-se, inclusivamente, diagonais não interrompendo a mecânica repetitiva do sistema, inserindo até novos pontos de vista.

Barcelona era de reduzida dimensão, compacta e expressa numa zona muralhada. Cerdá propôs uma extensão muito maior – o projecto foi muito inovador e polémico pela abertura da cidade. Cerdá insistiu numa análise aprofundada e fundamentada do contexto e de diversas formas urbanas associadas a sistemas regulares e só, então, formulou o seu próprio discurso, formulou uma síntese. Desejava fazer uma cidade total e igual, para que todos tivessem as mesmas oportunidades – acesso a ruas de dimensões semelhantes, espaço, luz, ar e a um meio de transporte eléctrico.

 A urbanização proposta apresenta-se inovadoramente utópica. É com a publicação de ‘Teoria Geral da Urbanização’ (1867), que Cerdá introduz e justifica a ideia de que a intervenção urbana deve basear-se num conteúdo científico. Estabelece-se, aqui, o conceito de urbanização – disciplina normativa de formação da cidade (conjunto de construções relacionadas entre si, que permitem o encontro, a entreajuda e a defesa humanas). O seu plano de ‘ensanche’ objectiva-se em garantir o crescimento controlado da cidade por um tempo infinito. Traça sete quilómetros de quadrícula, para 800 000 habitantes. A grelha reflecte o sentido social da proposta, ao impor iguais oportunidades aos proprietários. Afirma-se um policentrismo, assegurando a oferta homogénea (em função da quantidade de residência) de equipamentos, espaços verdes e serviços e garantindo cargas correctas sobre a infra-estrutura e condições de higiene para os habitantes.

O quarteirão de Cerdá não se pretende fechado. Porém, a crítica à rua-corredor da cidade tradicional e do quarteirão fechado, não é forte o suficiente, de maneira a tornar a disposição dos edifícios totalmente independente das vias. A solução de Cerdá concretiza-se sim, na formação de bandas em L ou =, nunca perdendo a referência da retícula. A não ocupação total do perímetro do quarteirão, representa, no plano, a possibilidade da inserção de espaços-corredor e espaços-largos verdes. Na prática, os quarteirões acabaram por se fechar, transformando o seu espaço interior num espaço privado e até alguns espaços destinados a equipamentos foram ocupados. Porém, a ‘ensanche’ resiste, incessantemente, à lógica do zonamento funcional.

A matriz regular é, em Barcelona, excepcional pelo chanfro de 20m nos gavetos de cada cruzamento. Supera-se, assim o simplismo viário, pela quadrícula quase octogonal e pelo traçado de grandes diagonais que relacionam a nova cidade com os aglomerados pré-existentes. Cerdá, ao associar-se às fracções progressistas da burguesia liberal, traça, sem dúvida, a maior expansão planeada das capitais europeias.

 

Ana Ruepp

SONETOS DE AMOR MORDIDO

      Ofélia Queirós

14. DE FERNANDO PESSOA A OFÉLIA

 

         Ouve, meu bem: nesta noite adormeço

          mágoas muitas, as tuas e as minhas,

          e as que não ouves e sempre adivinhas,

          e as que sei tuas e não reconheço...

 

          E assim, é nosso amor frustrado feito

          de ditas e desditas, de perdões,

          de talvez sim, ou nunca, de ilusões, 

          de feridas perdidas cá no peito...

 

          Por muito sentir-te, já eu me sinto

          tão perdido em mim, que não sei se minto

          ao te escrever, Ofélia, que te quero...

 

          Apenas sei que sou poeta e estranho,

          que tudo em mim é pequeno e tamanho,

          mas implacável, fingidor e fero...


PS. Este é o nº 14 - visto que o O é a 14ª letra do nosso alfabeto. O nº 13 já "saiu", como estarão lembrados os leitores, há uns tempos atrás: era A JESUS.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

PORVENTURA VERSOS

26.

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Acendeste a fé no centro

Do teu próprio lar onde vivias

Tua pátria, tua arma singular de protecção

 

Deixando aberta a janela

Por onde só eu te via

E o beijo abraçado se estendia

Escada

Até aos teus braços

Nos meus

 

Quais prémios de iguais dons

Excelentes no esclarecer-se e no oferecer-se

E assim acesos

A escuridão calava algo sagrado

 

Pois que não fora culpa tua eu não ser princesa

Nem tu príncipe sem parte, par ou reino

 

Ainda que resolvido

No propósito e firme efeito

Que tão pouco

Era possível

 

Na base deste erro colossal

Na base do contra nós pelejarmos

 

Em fúria extrema e magoada

Jeito de cerco que não consente ser sujeito

Quando o prazo

O prazo

 

É só troco

De um olhar inacabado

 

Longo canto

 

M. Teresa Bracinha Vieira

2015

ATORES, ENCENADORES (XX)

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Raul Solnado no Centro Nacional de Cultura em 2002

 

BREVE EVOCAÇÃO DE RAUL SOLNADO NO TEATRO, NO CINEMA, NA ÓPERA

 

Evocamos aqui Raul Solnado na perspetiva e na circunstância do cinquentenário do Teatro Villaret, por ele fundado em 1964 e onde estreou em 1965, há exatos 50 anos, com “O Impostor Geral”, adaptação do clássico “Inspetor Geral” de Gogol, “transformado” num espetáculo musical de excelente qualidade. O registo cómico que dominou grande parte da carreira de Solnado não excluiu obviamente a dramaticidade direta ou implícita de uma longa atividade de ator - encenador, e ainda menos, a expressão direta da excecional comunicabilidade com o público em papéis cómicos como em papéis trágicos, no teatro de revista como no teatro declamado, na rádio, no cinema e na televisão.

E vem a propósito evocar também o programa ZIP ZIP, realizado semanalmente no Teatro Villaret a partir de 1969 para a RTP, numa produção conjunta com Fialho Gouveia e Carlos Cruz. Foi de facto um grande momento do espetáculo em Portugal, na simbiose de produção artística direta e de jornalismo televisivo.  

E já referi o desdobramento que o Teatro Villaret efetuou, precisamente em 1965, com a companhia do Teatro do Nosso Tempo, dirigida por Jacinto Ramos, com Maria Barroso na protagonista da “Antígona” de Jean Annouil.

Ora bem: no conjunto de uma carreira de dezenas de anos, repartida em Portugal e no Brasil, pela revista, pelo teatro musicado e declamado – e não só comédia, longe disso – e pela televisão, só poderemos aqui descrever alguns momentos de especificidade, todos eles marcados pela excecional qualidade das interpretações de Solnado, fosse ou não protagonista – e acabava sempre por o ser, independentemente da estrutura das peças e dos personagens desempenhados…

E começo por referir os monólogos, originais ou adaptados, que interpretou numa expressão cénica de contacto direto com o público. Cito designadamente “A História da Ida à Guerra de 1908” de Miguel Gila, devidamente adaptado, na revista “Bate o Pé”, em cena no Teatro Maria Vitória (1961/62). E outros se seguiram.

Há que citar intervenções destacadas num repertório heterogéneo que aliás veio das primeiras colaborações cénicas, designadamente mas não só na Sociedade Guilherme Cossoul - Gil Vicente, “O Fidalgo Aprendiz” de D. Francisco Manoel de Melo (no TMDMII), “O Avarento” de Molière, Tchekcov, Eduardo Schewalbach, o “Baton” de Alfredo Cortez, a “Maria Emília” de Alves Redol, o “Schewik na Segunda Guerra Mundial” de Brecht, muitos autores contemporâneos traduzidos  e também  a revelação de peças portuguesas contemporâneas  como “As Fúrias” de Agustina Bessa-Luis  ou  “O Magnifico Reitor” de Diogo Freitas do Amaral (no Teatro da Trindade). Isto é, uma clara transposição da vivência e problemática da sociedade e da política portuguesa e internacional.

Raul Solnado participou, a partir de 1956/1957 (“Ar Água e Luz” de Ricardo Malheiro, “O Noivo das Caldas” de Artur Duarte, “Perdeu-se um Marido” de Henrique de Campos e “Sangue Toureiro” de Augusto Fraga), em mais de uma dúzia de filmes em Portugal e no Brasil, com destaque para “As Pupilas de Senhor Reitor” (1961) de Perdigão Queiroga, “Dom Roberto” (1962) de José Ernesto de Sousa, este premiado no Festival de Cannes, aquele premiado em Portugal, e ainda, entre outros mais, em “A Balada da Praia dos Cães” de José Fonseca e Costa a partir do romance de José Cardoso Pires.

E finalmente: teve uma intervenção em 1992 na ópera de Johaness Strauss “O Morcego”, no Teatro Nacional de São Carlos.

Esta versatilidade em muito ultrapassa o registo, aliás notável em si mesmo, de ator cómico. Raul Solnado era de facto um artista global.

 

DUARTE IVO CRUZ

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