CONTOS BREVES
5. AS ANDORINHAS NÃO PARTEM
No alpendre da porta da nossa casa, na Quinta da Várzea da Pedra, está uma cabeça de mulher, de cabelos anelados e misterioso sorriso, esculpida em pedra que nunca identifiquei. Ou terá sido moldada, feita de cimento e pó de rocha? Não sei. Colocámo-la ali, vigilante e com o número 32 em algarismos metálicos, salientes e bem visíveis, a marcar a entrada com a lembrança da clínica do Dr. Monjardino, na avenida da República, nº 32, em Lisboa, onde tinham nascido as nossas duas filhas. Quando este edifício foi demolido, fomos lá buscar essa guardiã para a pôr nesta casa sem número de porta. Depois, pela primavera, todos os anos vieram andorinhas construir os seus ninhos nesse alpendre, mesmo por cima daquela cabeça de mulher, cujo olhar esfíngico foi vendo crescer filhos de gente e de andorinhas, e netos ainda... Gente vagabunda, diga-se, que pelo mundo andámos todos, muitos anos. E andorinhas fiéis, que mesmo na nossa ausência ali voltavam, a repetir gerações. Como se tivéssemos firmado um acordo secreto, um pacto familiar. Ou misteriosamente nos pertencêssemos e andássemos de asas e mãos dadas, como anjos no céu que não vemos. Mas neste nosso céu, este que o nosso olhar enxerga, na transparência claramente azul da Primavera, as andorinhas iam bailando e trabalhando, fazendo casas e famílias, como quem diz que estávamos sempre, nós e elas, na mesma pátria do ar que o coração habita. Esperavam pela nossa chegada, para férias de Verão, perfilavam-se nos fios do telefone e da electricidade, para que as pudéssemos contar e ver que nunca faltariam, nem frustrariam os nossos pequenos, filhos e netos que, de nariz no ar e olhos luzindo de encanto, lhes acompanhavam o voo, ou se sentavam à espreita da mãe que vinha dar de comer aos passarinhos. Certo dia, a Inês perguntou : «Avô, o Avô sabe quantas andorinhas tem cá em casa? ». Esta nossa neta foi sempre muito matemática e apaixonada por pormenores. Eu não sabia, imaginem-me, sem rir, por favor, a contar andorinhas... Ó Inês, eu só as conto, a contar mesmo, quando as apanho empoleiradas ali nos fios! «O Avô apanha-as? Então porque é que não as põe numa gaiola?» Diz o Tomás: «Ó Avô, ela não sabe que, se pusermos as andorinhas numa gaiola, elas morrem, pois é? » Fugi à transcendente questão : as andorinhas não se prendem nem se largam, chamam-se. E elas vêm sempre, voltam todos os anos, nunca partem. «E como é que o Avô as chama?» Pelo nome. Olhem: aquela chama-se Teresa, aquela Ana, e aquela ali António e esta Camilo. «Como é que o Avô sabe?» São os nomes dos meus avós.
Camilo Martins de Oliveira