Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CONTOS BREVES

Chat et Oiseau de Govert Camphuysen.JPG
Chat et Oiseau de Govert Camphuysen

 

6. FINÓRIO

 

Nunca tive um gato na vida, mas, já nos meus setenta anos, encontrei-me com o Finório. Vinha de um passeio à beira-mar, a manhã de Verão já avançava e eu pedia sombra. Senti-me tropeçar no que fosse que se enrolara nas minhas pernas, olhei para baixo e vi um gato ainda pequeno, que miou. Apanhei-o, fiz-lhe uma festa e pu-lo outra vez no chão, batendo o pé a dizer-lhe que seguisse o seu caminho... Qual quê! Voltou a encostar-se às minhas canelas, e não consegui desfazer-me dele até chegar a casa. Quis entrar comigo, fechei-lhe a porta das traseiras, deixei-o no jardim. Pelo vidro, vi dois olhos verdes arregalados e interrogadores, fui buscar uma tijela de leite e levei-lha. Bebe e vai-te embora, pensei. Subi ao primeiro andar, tomei um duche, vesti-me à japonesa, com um belo yucatá, fui para o meu gabinete, abri a janela que, sobre as telhas de um alpendre, me oferecia a verdura e flores do jardim. Sentado à secretária, ia lendo e tomando umas notas, quando uma leve sombra se debruçou sobre os papéis à minha frente: era o gatinho que, no vão da janela, parecia aguardar que o chamasse. Sorri, e logo ele saltou para o soalho e daí para o meu colo, com um conforto de velha intimidade. Concluí que deveria levá-lo ao veterinário, e assim fiz: tinha as vacinas todas e já fora esterilizado. Habituou-se depois a habitar um cantinho que lhe arranjei no jardim, e percebeu que o meu colo não era cama. Mas nunca deixou de me vir visitar pela mesma janela e ficar a olhar para mim como pastora para aparição. Não me enganou com a beatice: então lhe chamei Finório. Entretanto chegaram, para férias, os meus netos. O Sebastião, ainda sem dois anos feitos, mexia-se bem e muito, era curioso, falava pouco, mas gostava de frequentar-me o gabinete. Ficava, por vezes, ali sentado, com os irmãos, a ouvir a música clássica que me enchia aquele cantinho de mim, ou a desenhar. Enfim: os irmãos desenhavam, o Sebastião rabiscava. Certo dia, ausentei-me por qualquer razão, estava sozinho, deixei a tal janela aberta e a porta encostada. Quando voltei, o miúdo estava, de joelhos e rabo espetado, em cima da minha secretária, criativamente refazendo, com fúria e lápis de cor, um livro ilustrado intitulado Personnages et Paysages dans la Peinture Hollandaise du XVIIième siècle... Sentado no vão da janela, imóvel e interessado, o Finório seguia, com os olhos verdes, o trabalho artístico do Sebastião...  Talvez Vermeer tivesse gostado de pintar aquela cena.

 

Camilo Martins de Oliveira