EVOLUÇÕES LINGUÍSTICAS EM GERAL E DA LÍNGUA PORTUGUESA
Fernando Pessoa por Almada Negreiros
1. A retórica da língua como simples marca de identidade, pode potenciar um discurso mitificador, mistificador e sacralizador, tendo conteúdos essencialmente conservadores, associados às origens, patriotismos, raízes, terra. Embora seja relevante expressar-se a língua como signo de identidade, é redutor e simplista mitificá-la, mistificá-la e sacralizá-la, só ou preferencialmente, em redor de ideias ou teorias conservacionistas, onde predomina a defesa do existente. A língua apenas como símbolo, signo e marca de identidade, pode ser um elemento dissuasivo para a sua aprendizagem e disseminação, podendo levar ao culto da sua confidencialidade, transportando um sentimento de posse, inverso à regra de que a língua pertence a quem a fala, sem posse certificada ou direitos de autor. Daí, ao afirmar-se: “se és português, fala português”, pode querer dizer-se “se o não és, não faz falta que o aprendas”.
Também a teoria da língua materna, defensora de que as línguas se transmitem por via biológica, de pais para filhos, apela a valores tradicionais, entre eles a identidade linguística, a linguagem oral, a ascendência (jus sanguinis), o território de origem (jus solis) e a cidadania originária. Mas enquanto a linguagem oral é um fenómeno natural e um produto da evolução biológica, em paralelo com a teoria materna da língua, já a identidade linguística é mais que um fenómeno natural (palavra falada), dado ser também um fenómeno cultural (palavra escrita). O caráter mais fácil e natural da língua falada e a natureza cultural e de maior dificuldade em aprender da língua escrita, leva a concluir, na esteira de Pessoa, que o ser humano pode viver sem ler nem escrever, ao invés de um ser civilizado. E apesar da cultura, produto do pensamento, gerar a escrita, e a literatura, como linguagem trabalhada, com a gramática e a filologia, fixarem a ortografia, tudo isso é insuficiente para uma língua ser de estratégia ou de vanguarda, dado não chegar, para assegurar a sua perenidade, ser dona de uma grande arte literária, o que é um benefício positivo, mas não efetivo, salvando-a da morte, mas não avalizando a sua ascensão ao longo da vida, como sucede com o grego e latim. Para Fernando Pessoa são necessárias três condições para a permanência futura de qualquer língua: a sua difusão natural, a facilidade com que é aprendida e a sua flexibilidade, opinando só haver três línguas com um futuro popular, o inglês, o espanhol e o português, predominantemente intercontinentais, ao invés do alemão, francês e italiano, que só poderão ser europeias, negando-lhes poder imperial: “Enquanto a Europa foi o mundo, estas dominaram, e triunfaram mesmo sobre as outras três, pois o inglês era insular e o espanhol e o português encontravam-se num dos extremos. Mas quando o mundo passou a ser o globo terrestre este cenário alterou-se”, pelo que “Será, portanto, numa destas três línguas que o futuro do futuro assentará” (Língua Portuguesa, Assírio & Alvim, 1997, pp. 149/50). Na perspetiva pessoana, atualizando-a, carecem, por exemplo, de poder imperial o chinês e o japonês, dada a sua ausência de intercontinentalidade, o que não se compadece com os tempos atuais, nomeadamente em relação à língua chinesa, além de o francês não ser apenas um idioma europeu.
Numa interpretação atualista da lição pessoana, sendo o nosso idioma de estratégia ou de vanguarda, com caraterísticas emergentes e tendentes à universalidade, tendo como sujeito falante um grande país, o Brasil conclui-se, numa primeira abordagem, ter sido capaz de atravessar vários espaços geográficos, não contíguos e deslocalizados territorialmente, via descontinuidade linguística, partilhando culturas que o democratizaram e modelaram como língua absorvida, apropriada, atuante, enriquecida, miscigenada e viva. De uma língua identitária, baseada numa conceção lusíada, lusista, nacionalista, imperialista e patrimonialista, transitou-se para uma língua de estratégia ou de vanguarda, fundada numa conceção lusófona, partilhada, transnacional, intercontinental, transoceânica, onde o idioma comum também gera, em termos linguísticos, uma identidade linguística comum, passando-se da conceção “a língua é nossa” para a de “a língua também é nossa e não apenas nossa”.
2. Afastados argumentos como o da perfeição intrínseca da língua, de línguas mais coerentes, perfeitas e superiores, baseadas na superioridade de um povo, de uma raça, de uma religião, ou de línguas cadentes, imperfeitas ou em extinção, que cedem pelo mero contacto com línguas tidas como superiores, é cada vez mais consensual que de uma teoria materna e nativa se tem transitado para uma teoria da função comunicativa da língua, como meio de comunicação, funcionalidade, utilidade, aceite, aprendida, desejada, querida e não herdada, uma espécie de cidadania derivada ou de segundo grau, por confronto com a originária ou de primeiro grau.
Nesta sequência, por referência à língua portuguesa, sem nunca esquecer que ela é o primeiro ou um dos primeiros elementos distintivos da nossa identidade cultural, há que ter presente que além de língua materna, oficial e lusófona dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, importa que seja significativamente usada por falantes de outras línguas, como segunda, terceira ou quarta, como de aprendizagem, escolhida e querida como língua estrangeira, pois se servir apenas os falantes nativos não será um idioma internacional ou de comunicação global, mas um idioma regional do ponto de vista global. As grandes línguas, com poder efetivo e real, não são essencialmente grandes por serem línguas maternas, mas por serem úteis para quem as não herdou, por serem línguas aprendidas, mesmo que segundas línguas para quem as aprende, com potencial comunicativo, em que o novo falante as aprende e usa porque lhe são necessárias e úteis. A necessidade e utilidade de as aprender e falar é superior ao esforço da aprendizagem, dado que a língua veicula poder, sendo o ânimo dos que a aprendem diretamente proporcional ao benefício, poder e imprescindibilidade que dela têm. São línguas que crescem por um processo de substituição, em que há uma valoração prévia da sua necessidade pelo novo falante, aumentando a sua expansão através de outros falantes que não os maternos, cujo aumento pode ser promovido pelo crescimento económico, científico e cultural dos falantes nativos mentores desse desenvolvimento, assim como das relações de intercâmbios recíprocos daí provenientes. Exemplifica-o o inglês, uma vez que o número de falantes como língua não materna e não herdada é claramente superior aos seus falantes naturais e indígenas.
A evolução do português como língua internacional de um bloco linguístico para língua internacional de comunicação global, depende do poder associado aos recursos naturais e humanos, à credibilidade das instituições e ao grau de desenvolvimento económico, cultural, científico e tecnológico dos países lusófonos e, sobretudo agora, da emergência do Brasil como potência mundial (com impulso relevante quando tiver assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, com a subsequente oficialização do nosso idioma), em conjugação com a sua capacidade como língua informatizada, internauta e de exportação, mediando a comunicação entre línguas e servindo como meio de uso útil a falantes originariamente não maternos que mantêm com as culturas e língua lusófona uma pluralidade de interesses. E embora seja uma língua com futuro e habilitada a não desaparecer, desde logo pelo número significativo e crescente de falantes, não é menos verdade que é vítima de uma assinalável baixa consideração social por parte dos seus próprios falantes, a começar pelos portugueses. Expurgando extremos, há que encontrar um equilíbrio, acarinhando, atualizando, preservando e promovendo este primeiro elemento distintivo da nossa identidade cultural e projeção internacional, sem teorias místicas e messiânicas, nem subserviências acríticas e exógenas.
22 de março de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício