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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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De 13 a 19 de abril de 2015


O Embaixador José Calvet de Magalhães (1915-2004), autor de «Diplomacia Pura» (Bertrand, 1995), foi na diplomacia portuguesa (desde que entrou na carreira em 1941) um pioneiro nas questões económicas, tendo tido um papel fundamental no contributo para o fim do protecionismo e do regime de autarcia – quer no âmbito da OECE e do Plano Marshall, quer da adesão de Portugal à EFTA e ao GATT.

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JUSTA HOMENAGEM
Em boa hora, a Universidade de Coimbra entendeu assinalar na semana que entra o centenário do nascimento do Embaixador José Tomás Calvet de Magalhães com uma justa homenagem, que consiste no estudo e reflexão sobre o seu contributo para a diplomacia portuguesa e para a cultura da nossa língua. Começo por salientar uma nota pessoal. A amizade e admiração pelo Embaixador tendo-se iniciado pela convergência de interesses e de afinidades eletivas, aprofundou-se pelas nossas raízes familiares. Dois dos avós de Calvet de Magalhães foram os maiores amigos, desde a infância, do meu tio-bisavô, o historiador Oliveira Martins. A família Calvet era muito chegada à Mãe do escritor e José Tomás de Sousa Martins, ilustre professor da Escola Médica, foi, desde os bancos do Liceu do Carmo, amigo fraterno de meu tio, tendo participado com outros escritores e jornalistas na célebre tertúlia da Farmácia Ultramarina, situada na Rua da Boavista, a caminho do Conde Barão, propriedade de um familiar de Sousa Martins. Acresce que o irmão mais novo de Oliveira Martins, cursaria também Medicina e seria lente da Escola onde pontuava Sousa Martins. O nome de batismo do Embaixador foi homenagem ao Professor de Medicina, e tantas vezes ele me exprimiu a sua estupefação pelo culto espírita (evidente na estátua do Campo de Santana e em Alhandra), que estava muito fora do pensamento e da atitude do académico. Até ao fim da vida, em que o visitei já no Hospital, o Embaixador Calvet de Magalhães fez questão de lembrar esta nossa ligação familiar e fraterna.

 

PIONEIRO EUROPEÍSTA
Há dias, quando nos deixou José da Silva Lopes, tive oportunidade de recordar o momento decisivo em que na segunda metade dos anos cinquenta, Portugal foi o convidado inesperado para aderir à Associação Europeia de Comércio Livre (AELE-EFTA) e ao acordo tarifário GATT (que antecedeu a Organização Mundial do Comércio). Não tendo o Reino Unido entrado nas Comunidades Europeias, havia que criar uma Zona de Comércio Livre (ZCL) com os Estados que ficavam de fora. Portugal não foi convidado inicialmente, mas graças à determinação de um escol de diplomatas e de técnicos, aderiu à EFTA para surpresa de muitos em condições extremamente favoráveis. Foram decisivos o futuro ministro José Gonçalo Correia de Oliveira (cuja biografia acaba de ser publicada na importante obra póstuma de Manuel de Lucena «Os Lugar-Tenentes de Salazar» - Aletheia, 2015) bem como o Embaixador Ruy Teixeira Guerra, diretor-geral dos Assuntos Económicos e Consulares do MNE, além de Calvet de Magalhães e de José da Silva Lopes, jovem e prometedor técnico a que Correia de Oliveira recorreu. Calvet era delegado português junto da OECE em 1956 e teve um papel importante na negociação jurídica da abertura de fronteiras e do acordo de comércio livre, sucedendo-lhe, para o complexo clausulado, Isabel Maria Magalhães Collaço, cujo prestígio internacional foi então decisivamente alcançado. Apesar de naturais resistências políticas no governo, Correia de Oliveira e A.M. Pinto Barbosa articularam-se no essencial para a defesa de que um país como Portugal teria de se afirmar na exportação, necessitando de entrar numa ZCL – incentivando a indústria e a modernização da agricultura.


HUMANISMO TRANQUILO
Devo recordar a homenagem que o Centro Nacional de Cultura prestou em 2003 ao então decano dos embaixadores portugueses – com a presença do ex-chanceler brasileiro Celso Lafer. Aí se lançou o livro «José Calvet de Magalhães – Humanismo Tranquilo», onde José da Silva Lopes recordou as complexas negociações da ZCL. Também Nicolau Andresen Leitão fez uma análise desse processo, demonstrando a articulação perfeita entre a diplomacia e a componente económica. José Gregório de Faria recordou a importância do embaixador nas relações com os Estados Unidos da América, Celso Lafer falou das relações com o Brasil e o Mercosul, Álvaro de Vasconcelos sobre uma diplomacia de valores e Fernando de Castro Brandão sobre o exemplar percurso do grande diplomata. E se recordámos a negociação europeia (primeiro EFTA e depois acordo com as Comunidades Europeias), podemos dizer que a intervenção de José Tomás Calvet de Magalhães é a ilustração do que ensinou os seus pares, em Portugal e no mundo, sobre o que deveria ser a «Diplomacia Pura»: instrumento de política externa para o estabelecimento de contactos pacíficos entre os governos dos diversos Estados, pelo emprego de intermediários – mutuamente reconhecidos pelas respetivas partes. Ora, sendo delegado português às negociações em Estocolmo, em março de 1959, ao lado de Ruy Teixeira Guerra e de Silva Lopes, consegue sob a orientação do Ministro J. G. Correia de Oliveira um fundamental resultado político – incentivo à indústria portuguesa, com salvaguarda dos interesses próprios previstos no anexo G e reforço da cooperação no âmbito do que viria a ser a OCDE. Em termos gerais um país como Portugal viu nas negociações da ZCL uma oportunidade para beneficiar da ajuda financeira dos países desenvolvidos. E Nicolau Andresen Leitão fala de quatro motivos de sucesso para este resultado inesperado: obstinação, fortuna, perícia e flexibilidade. Sem a vontade, a sorte, o conhecimento técnico e o pragmatismo, nada teria sido possível. De facto, Portugal jogou o seu prestígio internacional e conseguiu um resultado positivo, que facilitaria a transição democrática. E, seguindo os ensinamentos de «Diplomacia Pura», a técnica diplomática foi apuradíssima: para atingir os objetivos finais, houve que começar pela determinação política, não colocando no princípio as dificuldades e os eventuais obstáculos. Só no fim foram negociados os temas mais difíceis, com a flexibilidade necessária. E foi possível jogar com a pequena dimensão do comércio externo português…


A LIÇÃO DA HISTÓRIA
Grande conhecedor da História, não apenas diplomática, mas também da cultura, José Tomás Calvet de Magalhães fez do seu percurso uma constante lição – Washington, Cantão, Paris, Vaticano… Os seus textos literários são exemplos de nitidez e de clareza. A leitura de «Diplomacia Pura» é um deleite, mas o mesmo se diga de «Diplomacia Doce e Amarga» e do próprio «Manual Diplomático» ou da «Breve História Diplomática Portuguesa». Mas o Embaixador adentrou-se ainda, com sucesso, nas biografias dos maiores escritores portugueses: «Eça de Queiroz – a Vida Privada», «A Vida Angustiada de um Poeta – Antero de Quental» e «Almeida Garrett – A Vida Ardente de um Romântico»… Tive o gosto de falar longamente com o Embaixador sobre esta extraordinária vertente – e tive oportunidade de lhe dizer que só um fino psicólogo poderia dar, como deu, um tão grande diplomata.

 

Guilherme d'Oliveira Martins