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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SONETOS DE AMOR MORDIDO

O principe perfeito 1.jpg

«O Príncipe Perfeito» de Oliveira Martins

 

INTERVALO - III
 

O meu soneto A Antero de Quental  vai à condição bipolar do pensador e poeta açoriano, que se suicidou em 1891, num banco talvez voltado para o mar. Mas dialoga sobretudo com um soneto do  mesmo Antero, composto em Maio de 1885, e considerado o último do último período dos Sonetos Completos (1880-84), prefaciados e publicados por Oliveira Martins em 1886. Foi o mesmo, aliás, dedicado à Exma. Sr.ª Dona Vitória de Oliveira Martins. Em carta de Vila do Conde, onde passava tempos mais aliviados, quando o enviou a um amigo, escrevia Antero: O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da natureza... Reza assim esse soneto:

 

          Na mão de Deus, na sua mão direita,

          descansou a final meu coração.

          Do palácio encantado da ilusão

          desci a passo e passo a escada estreita.

 

          Como as flores mortais, com que se enfeita

          a ignorância infantil, despojo vão,

          depus do Ideal e da Paixão

          a forma transitória e imperfeita.

 

          Como criança, em lôbrega jornada,

          que a mãe leva no colo agasalhada

          e atravessa, sorrindo vagamente,

 

          selvas, mares, areias do deserto...

          Dorme o teu sono, coração liberto,

          dorme na mão de Deus eternamente!

 

António Sérgio, na edição dos Sonetos, que organiza em 1956 (Couto Martins, Lisboa), comenta, numa das suas anotações: O sentimento pessimista vai sempre unido, como é natural, ao anelo de nos evadirmos para além do que existe, de nos foragirmos das condições que nos causam mágoa. Esse além-da-realidade para que se anseia abalar, aparece-nos nos Sonetos… Também no meu soneto "De Pedro a Inês", que compus concomitantemente ao meu "A Antero de Quental", surge o impulso dessa ânsia de evasão, que pode ir até à morte. Só que, nesse caso de Pedro e Inês, o rei já regressa do além da morte dela, da morte que, por vontade dele, infligirá outras mortes que a memorizem. Procura, precisamente, o contrário do esquecimento, quer eternizar a dor. Lendo este passo de uma carta de Antero a António de Azevedo Castelo Branco, perceberemos melhor como a inflição e a aflição da morte podem também ser o seu contrário: Por último, termino pedindo-te que não tomes estas palavras senão pelo que elas valem, isto é, a expressão de um desejo, nunca uma manifestação de força. Eu sou o pó da terra. A ti e aos meus amigos peço me desculpem os ares de forte e altivo combatente que me tenho mais de uma vez dado - em palavras. Mas eu era sincero. Tenho caído hoje na conta dos meus enganos. Ponhamos as coisas no seu lugar. Tenho sido vítima da ilusão do doente que toma pela saúde o grande desejo que tem dela. Numa só coisa mostro energia: é em não querer nem poder abdicar desse desejo. Mas isto é apenas o instinto de conservação, revelando-se no mundo moral. Há loucura, e há loucuras e loucuras. E há o que, nem nós, nem qualquer louco saberá muito bem o que é: a consciência, quiçá muito ténue, da própria loucura. Posso dar em louco porque não alcanço e não sou capaz - e, simplesmente quedar-me comigo só, no meu desespero. Ou pretender que não desesperei, mas outros, sim, me desesperaram. Estarão neste grupo, sempre, aqueles que mais esperaram, com mais ou menos razão, talvez, com mais carência do que nós, sempre, ser amados e reconhecidos. No primeiro grupo, ficam os que sentem o amor como "contentamento descontente"... Todos nós, afinal, nos perseguimos. E, todavia, só numa nova dimensão do amor nos encontraríamos. O meu terceiro soneto desta série intercalar, debruça-se sobre Dona Leonor de Lencastre, rainha e regente de Portugal, bisneta, sobrinha, prima, mulher e irmã de reis... E tia, ainda, de Isabel a Católica. E depois? Dom João II era seu primo direito e marido mas, por razões políticas, mandou matar e matou (dizem) os duques de Bragança e Viseu, irmãos dela. Mas aceitou como seu sucessor D. Manuel, o irmão mais novo, em vez de D. Jorge, seu filho bastardo, que a rainha acolhera, mas nunca mais quis ver, desde a morte de D. Afonso, filho único dela e Dom João II, até ao reconhecimento de D. Manuel I. A queda de cavalo que o matou, deu-se, diz-se, por ele ter anuído à insistência do pai em que fossem galopar, sem ter ele podido escolher corcel seguro... Por outro prisma ainda, olhamos a relação amor-paixão-morte. Na nossa estranheza de outros tempos, outros modos...  E, neste fim de tarde tão cinzenta, invernosa e fria, peço a Deus que me estenda a mão, e me deixe nela repousar meu coração. E que, ao sol da manhã que vier, ele se abra, como flor colorida, a cheirar bem.


Camilo Martins de Oliveira