Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

RaulHestnesFerreira.JPG 

A Ordem e a Ambiguidade: Raúl Hestnes Ferreira e as Duas Habitações Geminadas em Queijas (1968-73)

 

‘Entretanto fui para a Finlândia, antes de acabar o curso. Naquela altura lia o Aalto, lia o Wright. Havia muito a questão do Zevi, da Arquitectura do Zevi. O que para mim tinha mais interesse na revista eram os desenhos dos monumentos antigos e depois a secção do primeiro modernismo com os Mackintosh, os Van de Velde, etc.’, Raúl Hestnes Ferreira

 

Raúl Hestnes Ferreira (1931) trabalha em nome da tradição clássica, vernacular ou modernista. A obra de Hestnes Ferreira é expressão de autenticidade em que influências de diversos autores, de diversas épocas estão assimiladas. A sua posição é pessoal e única. A sua obra reflecte conhecimento adquirido através da tradição secular da arquitectura portuguesa, sendo sensível à individualidade, à monumentalidade, através dos ensinamentos de Louis I. Kahn, na busca pela essência, na lógica construtiva, na utilização expressiva dos materiais, afirmando forma mas também função. Hestnes Ferreira colaborou nos ateliers portugueses de Arménio Losa, Cassiano Barbosa e João Andresen, e também em ateliers internacionais como no de Bacckman em Helsínquia e no de Louis Kahn, em Filadélfia, tendo neste último colaborado no projecto dos Centros Governamentais de Dacca, em Bangladesh.

De Robert Venturi retirou não só a lição de poder olhar para o passado, para a História mas também dar atenção à construção de abóbadas de tijolo alentejanas com as mãos e sem cofragem – como aconteceu na obra da Casa da Cultura da Juventude de Beja (1975-85). Venturi trouxe a arquitectura banal como tema, abriu a possibilidade à arquitectura de continuidade, igual às outras, que não é pura e nem branca e que também pode ser mais expressiva. Hestnes trabalha entre a ordem e o imprevisível, entre a geometria exacta (quadrado, círculo, o hexágono) e os desenhos sujos do carvão (tal como Kahn), entre a escala monumental e a intimista de maneira a aproximar-se do utilizador ou mesmo do cliente. Mas as soluções arquitectónicas finais de Hestnes são sempre claras, firmes, rígidas, delimitadas por contornos grossos e por volumes pesados.

Na casa de Albarraque e nas casas Mimoso e Shrimpton, de inícios dos anos sessenta, Hestnes Ferreira trabalhou segundo uma plasticidade a que não foi alheia a sua estadia na Finlândia, e a influência de Alvar Aalto e o contacto com a arquitectura vernacular, antes de qualquer surto turístico. As casas de Albarraque (1960-61), Mimoso (praia da Luz, 1960) formalizam uma arquitectura branca de coberturas inclinadas, enquanto a casa Shrimpton (também na praia da Luz, 1960) caracteriza-se por uma integração forte no terreno escavado e pelo uso de coberturas mais horizontais.

Hestnes trabalha a partir de diversas premissas volumétricas, espaciais, de inserção no terreno, de relação interior-exterior e de premissas construtivas, cada uma delas podendo caracterizar a casa no seu todo. O seu percurso na concepção do projecto de uma casa reside na relação estabelecida com referências diversificadas, renovadas e reinterpretadas segundo as condições de implantação, de integração no exterior e de utilização de materiais. É a vontade final do cliente que conforma todos estes factores (Ver ‘Arquitectura’, Ano V (4ª Série), n. 152, Maio-Junho 1984.).

Lê-se em ‘Raul Hestnes Ferreira – Projectos, 1959-2002’, de José Manuel das Neves, que final dos anos sessenta, o projecto da Casa de Queijas (1968-73) correspondeu a uma pesquisa em termos espaciais construtivos, determinante para sínteses posteriores. Foi concebida a par de projectos que optavam pela temática das superfícies brancas. E por isso a experiência de Queijas é, já de si, singular.

A dominante vertical foi a solução mais adequada para a inserção no lote, para uma casa destinada a duas famílias com várias gerações. A casa fica próxima de uma rua de trânsito intenso. É compacta e tem uma presença quase maciça. Ocupa uma posição destacada no acesso ao aglomerado. O tijolo aparente representa a opção mais consistente e singular para marcar essa presença. Apesar da singularidade da opção adivinha-se aqui a necessidade de recorrer a uma linguagem resistente e duradoura. E é aqui que se estabelece a ponte com a obra de Louis I. Kahn (com quem Hestnes colaborou entre 1963 e1965), ao fundar a sua casa sobre valores intemporais, através do recurso a uma geometria rigorosa, evidenciando a verdade dos materiais. Hestnes restaura o valor hierárquico e funcional de uma parede, de um pilar, de uma janela ou de uma varanda. As formas estão hierarquizadas e evidenciam a diferença entre espaços, luz e sombra. É evidente o diálogo de formas complementares (da curva e da recta) que dinamiza toda a obra – presente nas janelas, na cobertura, na chaminé, na varanda, e em planta. Cada espaço interno é individual. As fenestrações, de caixilharias ora curvas ora rectas, são todas diferentes esclarecendo a partir do exterior a singularidade de cada espaço. A solução faz igualmente lembrar a expressividade da Escola de Amsterdão, quer pela atenção dada ao desenho da moldura das janelas, das chaminés, das guardas das varandas quer pelo virtuoso uso do tijolo. O uso do tijolo permite a revelação de novas formas em arquitetura através da revelação do material tal como é.

Hestnes também trabalha em Queijas a partir de complexidades e contradições, tal como acontece descrito no livro de Venturi acerca do seu projecto para a casa em Chestnut Hill (1962). O conjunto é simultaneamente fechado (as paredes são grossas e opacas) e aberto (há um terraço na cobertura); grande (o volume exterior é maciço) e pequeno (o interior é compartimentado); assim como diverso (as fenestrações são todas diferentes) e unitário (o tijolo à vista uniformiza o conjunto); simples (a consistência, a geometria, o volume único) e complexo (a quase simetria e os detalhes ornamentais tornam o objecto singular e icónico). (Venturi, 1995)

 

Ana Ruepp