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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTA A LÍDIA JORGE


Por Teresa Bracinha Vieira

carta a Lídia Jorge.JPG

 

Singular Lídia:

Hoje quis tanto voltar para os braços da minha mãe. Quis tanto que o Camané e o Pedro levassem esta vontade a ser possível, e todos tivessem quentes mimos, podendo chorar na ternura dos xailes, como quem sabe que assim deve ser, para expurgar o joio, pois que que a partir de hoje, o mundo, seria todo ele um único seio. Todo ele uma humanidade sem freio. Todo ele uma viagem de amparo dado pela força do amor.

Hoje quis tanto voltar para os meus braços, aqueles que já foram ilhas tempo de mais, e que agora tanto querem descer para sul, aquele sul, há tanto sem ninguém, mas onde surgirá uma carta atirada do avião de Exupéry e no selo, o desenho de uma passagem, abafada, mas passagem, mas saída, com um coração em eco soberano. E não é utopia o que lhe digo ou o sol não queimasse e a chuva não desagregasse; é vento envolto numa entrega, dançando no local onde a vida faz frente à morte: é muito disto que lhe falo. É deste igualar que sobrevive o morto amor. A viva guerra, essa deve ser levada à fundura de uma campa, e que a liberdade lhe pese fortemente, não tempo demais, pois ela, a liberdade, deve ser sopro que adeja a cada um no ar das estações futuras. E é do presente que é futuro que lhe falo também num choro forte como a mudança que desejo do fundo da alma. Os que abandonaram a vida que se vão e levem as ruínas. Eu só quero o mar a ondular nuns braços onde tudo vacile em tranquilo equilíbrio. E se da minha trémula estadia nesta vida, eu puder texturar de seda, o rochedo que me esbarra os dias, assim já ganharei o direito a chorar nos braços da minha mãe e nos meus. E se for escurecer, Lídia, direi Abril. Direi agora. Direi sem rédea. Direi, parti, e estou à porta. Direi outros sítios lá no alto das asas sussurrantes, essas mesmas que de atentas fazem os arados brilhar, e abrir os sulcos dos meus sonhos para darem aos homens novas terras, e as suas mãos-farol, infinitas a abrirem-se nas boas-vindas ao mundo.

 

Beijo no abraço desta nossa forte Amizade de sempre

Teresa

22.04.15

A FORÇA DO ATO CRIADOR

PlanoCerda.JPG

O Plano de Cerdá e a expansão urbana infinita.

 

O Plano de Cerdá desenvolve-se sobre a cidade de Barcelona em1859 e associa a forma urbana à funcionalidade – o planeamento urbano é um equilíbrio entre a forma, o funcionamento e o tempo. O plano não é o único na cidade de Barcelona, mas é o mais determinantemente identificável.

 

‘Uma cidade! É a afirmação do homem sobre a natureza. É um acto humano contra a natureza, um organismo humano de protecção e trabalho. É uma criação. A poesia é obra humana – uma série de relações estabelecidas entre imagens perceptíveis.’, Le Corbusier, 1925

 

A ‘ensanche’ que Ildefonso Cerdá (1815-1876) propõe para Barcelona, convive e afirma-se ao lado de outras formas urbanas pré-existentes – o castrum romano, o burgo medieval, a cidadela e o estabelecimento militar. Cada tecido é perfeitamente reconhecível. Cada tecido representa um tempo. E a especificidade dos tecidos pré-existentes integra-se na nova espacialidade do Plano de Cerdá. Ildefonso Cerdá estende Barcelona para além dos seus limites, segundo uma malha rigorosamente ortogonal, de parcelas e dimensões uniformes (o quarteirão quadrado pretendia-se ocupado só em dois dos seus quatro lados, definindo áreas verdes e pedonais). Traça-se a cidade densa, através de um sistema viário claro – desenham-se, inclusivamente, diagonais não interrompendo a mecânica repetitiva do sistema, inserindo até novos pontos de vista.

Barcelona era de reduzida dimensão, compacta e expressa numa zona muralhada. Cerdá propôs uma extensão muito maior – o projecto foi muito inovador e polémico pela abertura da cidade. Cerdá insistiu numa análise aprofundada e fundamentada do contexto e de diversas formas urbanas associadas a sistemas regulares e só, então, formulou o seu próprio discurso, formulou uma síntese. Desejava fazer uma cidade total e igual, para que todos tivessem as mesmas oportunidades – acesso a ruas de dimensões semelhantes, espaço, luz, ar e a um meio de transporte eléctrico.

 A urbanização proposta apresenta-se inovadoramente utópica. É com a publicação de ‘Teoria Geral da Urbanização’ (1867), que Cerdá introduz e justifica a ideia de que a intervenção urbana deve basear-se num conteúdo científico. Estabelece-se, aqui, o conceito de urbanização – disciplina normativa de formação da cidade (conjunto de construções relacionadas entre si, que permitem o encontro, a entreajuda e a defesa humanas). O seu plano de ‘ensanche’ objectiva-se em garantir o crescimento controlado da cidade por um tempo infinito. Traça sete quilómetros de quadrícula, para 800 000 habitantes. A grelha reflecte o sentido social da proposta, ao impor iguais oportunidades aos proprietários. Afirma-se um policentrismo, assegurando a oferta homogénea (em função da quantidade de residência) de equipamentos, espaços verdes e serviços e garantindo cargas correctas sobre a infra-estrutura e condições de higiene para os habitantes.

O quarteirão de Cerdá não se pretende fechado. Porém, a crítica à rua-corredor da cidade tradicional e do quarteirão fechado, não é forte o suficiente, de maneira a tornar a disposição dos edifícios totalmente independente das vias. A solução de Cerdá concretiza-se sim, na formação de bandas em L ou =, nunca perdendo a referência da retícula. A não ocupação total do perímetro do quarteirão, representa, no plano, a possibilidade da inserção de espaços-corredor e espaços-largos verdes. Na prática, os quarteirões acabaram por se fechar, transformando o seu espaço interior num espaço privado e até alguns espaços destinados a equipamentos foram ocupados. Porém, a ‘ensanche’ resiste, incessantemente, à lógica do zonamento funcional.

A matriz regular é, em Barcelona, excepcional pelo chanfro de 20m nos gavetos de cada cruzamento. Supera-se, assim o simplismo viário, pela quadrícula quase octogonal e pelo traçado de grandes diagonais que relacionam a nova cidade com os aglomerados pré-existentes. Cerdá, ao associar-se às fracções progressistas da burguesia liberal, traça, sem dúvida, a maior expansão planeada das capitais europeias.

 

Ana Ruepp