Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
The past is a foreign country: they do things differently there. Com estas palavras abre Mr L. P. Hartley o seu clássico do pós-guerra The Go-Between. Talvez que como o jovem Leo Colston do romance de 1953 se possam tomar as presentes promessas partidárias como os seus versos, construídos como magic spells para o poupar aos problemas.
O empate técnico nas sondagens e a incerteza sobre quem será o futuro Prime Minister conduz a crescente pirotecnia que nada mais suscita senão o acentuar do desencantamento. — Chérie, ce n’est pas tous les jours fête! A electoral registration encerra hoje com bom lote de newcomers a abdicar do direito a votar. A campanha soa quase apocalíptica nalguns sectores, devido a cenário provável de uma aliança anti austeridade-Cameron-Tories em Westminster. — Hmm. A Scottish tail wagging an English poodle, I suspect. Pela primeira vez na última década, a European Union coloca a emigração na agenda de trabalhos ministeriais. Um naufrágio ao largo do Mediterranean Sea, mais mediatizado, por momentos bate a indiferença moral de Brussels. Children first é o grito de desespero sobre as imagens deste weekend: pessoas em pleno mar, agarradas a destroços, a milhas das costas da civilização humanista.
Cloudy skies and a litlle bit cold at Central London, em dia de fecho na série de exibições dos manifestos partidários à eleição de May 7th. Uma rude ideia fica no ar: The right to buy… votes. Os mais velhos lembrar-se-ão ainda da bandeira de Mrs M envolta nas cores do capitalismo popular e esta é uma política que os Tories retomam agora com amplo espetro, desde a venda de acções do Lloyds Bank a preços de ocasião até à alienação das social houses com desconto. Para quem defende o rigor nas contas públicas, não está mal! Também os Lib Dems propõem medidas simpáticas à bolsa, mas tão residuais estão nas sondagens que apostam no opportunity for all e assim conquistar corações com a old liberal song que no século passado põe RH David Lloyd George em Downing Street. No leilão pontuam igualmente os ukkipers, cujas poupanças no cheque da Brexit dedicam ao pagamento de pensões e medalhas para todos os veteranos, além de investir an extra £12 billion into the NHS & £5.2 billion more into social care. No topo da cornucópia aparece hoje o SNP: cut the cuts; porém, empenhado em caçar votos em todo o UK, com o reforço do welfare state e o fim do Trident a par da ambição de novo referendo capaz de cumprir o seu designio de uma independent Scotland. Admito que, uma semana após lançado em Manchester, examino com outro olhar o Labour’s Manifesto Budget Responsibility e mesmo o ruivo Leader of HM Opposition aparece a erguer-se já como The PM Ed Miliband.
Mas um formidável desafio está constituído nas highlands do United Kingdom: a tigresa celta. Chama-se Nicola F. Sturgeon, tem 44 anos, é a Scottish National Party leader e First Minister. A senhora anunciou há momentos, em Edinburgh, o manifesto dos independentistas sob o lema A strong voice for Scotland at Westminster. Atrás de si tem cheers do eleitorado local que vota Yes à desunião nacional. A fatia garante a esta solicitadora de Glasgow meia centena de lugares na House of Commons e o potencial papel de king-maker no duelo Conservatives vs Labour. Todavia, o seu anti-austerity flavour é capaz de maiores danos. É que, somados a saída da GB e o abandono do programa nuclear na defesa do West, a lady tem a força das convicções e aquele quê de game changer que alavanca sucessivas maiorias de TRH Maggie Thatcher nos 80-90’s com o projeto de better politics and better policies. Já o General Election tracker teima em invariante neck-and-neck. Conservatives – 34,4%; Labour – 33,4%; Ukip – 13%; Liberal Democrats – 8,9%; e Greens – 4,9%. A North, o SNP concentra 48% das intenções de voto. Faltam 16 dias para a polling station.
O literary world vive agitado processo judicial. No centro das atenções está a Random House e Frau Cordula Schacht, filha de um ministro da economia do chanceler Adolph Hitler que reinvindica royalties sobre a biografia de Joseph Goebbels publicada em 2010 pelo historiador Peter Longerich. A descendente de Herr Hjalmar Schacht sustenta que os escritos do mestre da propaganda são parcela da herança paterna enquanto a editora da constelação britânico-germânica Penguin e Bertelsmann argumenta com moral rights, propondo até que qualquer pagamento de direitos sobre a investigação científica do Fellow da University of London se destine a uma Holocaust charity. O caso em trânsito num tribunal de Munich (Ger) é duplamente surpreendente. Tanto por alguém reivindicar copyright sobre os feitos da Nazi elite, quanto ainda pelo que contém de indelével tentativa de controlo sobre a inconveniente história do III Reich. — Well. When candles are away, all cats are grey.
«Moradas do Castelo Interior» permite-nos entender a riqueza espiritual de Santa Teresa de Jesus (1515-1582), uma das grandes escritoras europeias de sempre. Por ocasião do centenário do nascimento da Doutora da Igreja, ocorrido a 28 de março, lembramos Manuel de Lucena, autor, em língua portuguesa, da extraordinária tradução (Assírio e Alvim, 1988) de uma das obras mais complexas e belas da fundadora das Carmelitas descalças.
UMA TRADUÇÃO EXEMPLAR Manuel de Lucena era uma personalidade multifacetada, para quem as palavras tinham um significado especial, ao exprimirem subtilmente os sentidos e os sentimentos. Como investigador político e social usava da subtileza para poder descobrir algo mais do que era visível numa apreciação simplista. Daí a originalidade das suas investigações e conclusões. Todos nos recordamos da perplexidade com que foram recebidos os seus primeiros textos sobre a evolução do corporativismo. Houve quem pensasse que se tratava quase de uma alucinação. Hoje percebemos que a sua intuição era certa e fundamental, até para compreendermos as fragilidades do Estado democrático, tantas vezes tributário dessa ambiguidade antiga que o sociólogo tão bem entendeu. Mas não é este o nosso tema de hoje. Lucena conta-nos em pormenor como chegou à versão publicada na Assírio e Alvim, depois de mais de vinte anos de gestação, desde que Pedro Tamen, em 1963, na Morais de António Alçada Batista, lhe lançou o desafio para fazer a tradução dessa obra-prima. «Lá no assento etéreo, Santa Teresa, inimiga da vaidade (da qual não ouso murmurar que às vezes me parece filha de Deus) terá rezado mais pela salvação da minha alma do que pelo sucesso dos tratos de polé que me preparava para lhe dar. E dei».
COM AMOR À LITERATURA Sem dar parte fraca, o jovem tradutor empenhou-se intensamente, pelas palavras, pelo amor da literatura. Nada foi fácil. Uma primeira versão ficou pronta em 1964 – e quase lhe pareceu, numa visita a Santa Maria della Vittoria, que a escultura de Bernini (expressão genial de um êxtase) maternalmente lhe sorria: «Fugi tão depressa, com medo de não estar bom da cabeça, que não saberia dizer se era riso de amor ou de comiseração, mas essa foi na altura a minha única dúvida». Pedro Tamen prudentemente guardou a versão numa gaveta. Em 1974 voltou ao tema e em 1980 o desafio regressou. Teresa de Jesus sabia que o seu amigo Manuel iria esmerar-se mais. E teve razão. Envolveram-se o Padre Manuel Antunes, apesar de gravemente doente, mas também M. S. Lourenço, o Padre João Maia, a juntar a vasta bibliografia de primeira qualidade, em especial o livro de Carlos H. do Carmo Silva - «A experiência orante de Santa Teresa de Jesus» (a que se juntou o douto conselho do dito), além de Carlos Romero Muñoz... Mas, diga-se em abono da verdade, que o fundamental foi o trabalho muito sério e persistente de Manuel de Lucena. E se no final, ele julgou que Teresa, quanto «a beatitude» o permitisse, pudesse estar danada com ele – motivo por que tanto se encomendou lá em cima (invocando amigos vários, como Nuno de Bragança, Nuno Cabral Basto, Zé Lavradio, além dos Padres António Magalhães e, naturalmente, Manuel Antunes), a verdade é que só temos a agradecer-lhe pelo resultado alcançado. Ao lermos a obra, sentimos, a um tempo, a força da lição de Teresa de Jesus e o seu talento literário, a que o tradutor procurou (e bem) ser fiel. É verdade que a humildade da carmelita recusou preocupações de estilo, mas o certo é que a clareza que desejou receber do alto, pedindo a Deus que lhe pegasse na pena ou falasse por si – como «já falou noutras coisas que escrevi» - é preocupação maior da Madre e do seu tradutor. Sabendo que o cuidado é a virtude teologal que fica, cultivou-o com especial esmero e deleite (mais do que gosto, como bem demonstra).
OS ELEMENTOS INTELECTUAL E VOLITIVO Com que cuidado, sentimos Santa Teresa procurar equilibrar os elementos intelectual e volitivo ou cordial… Se os inspirados conselhos do Padre Antunes se inclinavam para a razão, Carmo Silva talvez tendesse para o elemento cordial, procurando ambos equilibrar os fatores – ora a luz, ora o calor, apesar da luminosidade por ambos realçada no testemunho da Doutora da Igreja… Lucena diz caminhar entre os dois polos: «Mas tenho por vezes a impressão de que é a própria Santa Teresa quem oscila, atravessada pelo confronto das escolas». Vicissitudes múltiplas permitiram que a obra se fosse caldeando e purificando, e o resultado é, de facto, precioso. Assim encontramos Teresa Sánchez de Cepeda Dávila y Ahumada, graças à generosa mediação de Manuel de Lucena e ao seu fantástico trabalho incansável de cerzidura, palavra a palavra, dando-nos uma lição sobre como ser «tradutore», sem ser «traditore»… Seguindo a curadora das palavras sublimes, percorremos as sete moradas do castelo interior, progredindo num abrir sucessivo de novas portas: começando pela disponibilidade interior para o trato divino com a oração vocal; e seguindo na oração mental discursiva e meditativa; na oração da amizade ou afetiva; no recolhimento, em difícil percurso da ascese para a mística; na oração da quietude, em que a vontade se suspende; na oração de união, com as potências despertas mas cativas; a culminar na oração de êxtase, em que a alma «atingiu o seu repouso ou já viu tanto que nada a impressiona». São sete moradas, «mas cada uma contém muitas outras – em baixo e em cima e dos lados – com lindos jardins, fontes e labirintos, coisas tão deleitosas que desejareis desfazer-vos em louvores do grande Deus que criou este castelo à sua imagem e semelhança». Antes, porém, deste castelo interior, S. Boaventura previra três estádios: purificação, iluminação e união; enquanto a espiritualidade «sufi» consagrava quatro momentos: de abid ou servidor, de zahid ou asceta, de arif ou conhecedor e de muhibb ou amante que se une à verdade absoluta… Teresa vai mais além e mais ao fundo. E, para chegar aqui, antes das sete moradas, há quatro momentos de regar o nosso horto interior – ao içar a água de um poço à força de braços; com a ajuda dos alcatruzes da nora; ao tirar a água do rio ou ao aproveitar o efeito da chuva, sem especial esforço… Pressentimos o seu método de trabalho, entre os utensílios da cozinha e a lida do convento. Eis o percurso, mais ou menos longo, que tem de ser feito: do recolhimento ao êxtase… A paixão e a razão encontram-se, completam-se e expandem-se ou limitam-se mutuamente. Por isso, Teresa diz, pondo-se do lado da laboriosa Marta, sem esquecer a atitude de Maria: «Crede-me: para hospedar o Senhor, Marta e Maria têm de andar sempre juntas, fazendo-lhe constantemente companhia e recebendo-o como deve ser, sem lhe faltarem com nada. Ora Maria, sempre a seus pés sentada, como poderia dar-lhe de comer se a irmã não ajudasse?»… Manuel de Lucena compreendeu bem essa tensão, porque lhe coube o pedaço de Marta, sem poder esquecer Maria, a quem traduzia – podendo citar Ciorán quanto ao «desejo abrasador de não sobreviver à emoção»…
Nas CNRS Editions, do Centre National de la Recherche Scientifique, Bertrand Badie publicou, em 2012, um opúsculo intitulado Quand l´Histoire commence, pequeno ensaio sobre o desafio da globalização: E se o fim das relações internacionais clássicas, as dos diplomatas e soldados de antanho, fosse na realidade o princípio de uma nova história? Se então começasse a História, essa já não só dos Estados rivais, mas a verdadeira, a total, a da humanidade inteira e das sociedades compenetradas? Esta ideia de nova História, de uma História que começa, surge em antítese à teoria do "fim da História", tal como o franco-russo Alexandre Kojéve (1902-1968) a desenhou, coroando uma análise do processo histórico europeu que é, afinal, uma leitura hegeliana de Thomas Hobbes. Diz Badie que a tese (de Kojéve) é sobretudo brilhante pela sua pertinência histórica: ela descreve bem e lindamente o modelo de desenvolvimento europeu. Aí encontramos as raízes feudais da guerra e os modos de invenção da alteridade que então se impuseram. Ali descobrimos a sociogénese dos Estados europeus que efectivamente se desenharam opondo-se uns aos outros... ... Ali se adivinha uma história da nação, uma construção social da alteridade, o sentido profundo do estrangeiro que remete, na sua história semântica, para o incompreensível, para o outro que nunca será o próprio, que não poderá nem deverá jamais ser o equivalente de si... Mas em que é que esta lógica e esta história são fatais, marcas forçadas do destino, ao ponto de virem abolir a História se deixarem de ser seguidas? No plano lógico, porque será a política a arte de gerir a confrontação, mais do que a de organizar a coexistência? E porque é que esta visão alternativa, que também tem os seus defensores, e em todas as culturas, não se estenderia a todo o espaço mundial? Assim, ao arrepio dos teóricos do afrontamento - e deste enquanto motor da História, seja na dialéctica hegeliano-marxista do senhor e do escravo, ou em pensadores vários do concerto das nações (incluindo, claro fica, o nazi Carl Schmitt), ou ainda nos arautos do choque das civilizações, para não falarmos em teorias da natural regulação dos mercados pela concorrência - há quem proponha uma nova História, dinamizada pela utopia da organização da inevitável coexistência, pela procura do respeito da diferença e das singularidades, por um lado, e da harmonização de regras universais que sustenham o reconhecimento essencial da prioridade da paz que assenta na justiça... Será certamente muito difícil. Mas será possível. Na sequência do abominável e assassino ataque terrorista ao semanário Charlie e a uma loja cacher, falou-se e escreveu-se muito, levantaram-se publicamente manifestações e protestos vários. Reparei que, mais do que a profunda mágoa humana, de cada um e de todos nós, com que nos fere a destruição violenta de uma vida - que, pela sua natureza e pela nossa condição comum, é também a nossa vida - se considerou o crime contra a liberdade de expressão. Esqueceu-se muitas vezes, em tantos discursos, que crime bem maior é atentar contra a vida humana. Sobre este, todos podem sentir da mesma maneira, pelo que denunciá-lo, chorá-lo e puni-lo, nos reunirá num valor comungado. E era sobre este ponto de encontro que se deveria ter mais chamado a atenção e o coração de todos. Mas preferiu-se, quase sempre, insistir na revolta contra a violação de um direito de expressão que, para nós, é universal e deve ser ilimitado, mas para outros (e são muitos) não pode nem deve ser ofensivo. Bem sei que, pelo seu lado subjectivo - a ofensa sente-se - é praticamente e juridicamente impossível definir-lhe limites ou contornos universalmente aceitáveis: o que magoa uns, é motivo de risota para outros, e a verdade de uns pode ser razão de contestação para outros. Por isso mesmo, a cada um de nós deve ser reconhecido o direito inalienável de se exprimir sem restrições externas. Isto dito, reafirmo que não me parece sensato, e muito menos de boa política, ter-se continuado a impor à atenção universal a nossa firme condenação daqueles assassinatos por considerá-los atentados contra a liberdade de expressão, mais insistentemente do que a nossa repugnância face a tão sórdida violação do mais fundamental de todos os direitos, do qual aliás decorre o necessário respeito pela dignidade igual de todos: o direito à vida. Essoutra mensagem nossa teria vindo em apoio aos milhões e milhões de muçulmanos - e tantos, nesta circunstância, voltaram a manifestar-se - que veem no Corão a revelação do amor misericordioso de Deus, e incansavelmente vão pondo em causa a tradição, sobretudo sunita, dos ditos do Profeta (hadith), que tantos ulemas ou teólogos islâmicos foram, durante séculos, preferindo ao ensino do próprio texto do livro revelado, inicialmente, aliás, sob comando de califas da expansão omíada e abássida. E teria dado a muitos outros - que vivem e trabalham (até nas forças de defesa e segurança, como nos serviços de saúde) nos nossos países, e são nossos concidadãos, como tantos que conheci na Guiné, leais servidores de Portugal - mais necessária confiança nos valores da nossa cultura e na sua contribuição para a construção de um mundo que seja, para todos igualmente, mais justo e mais pacífico.
A Ordem e a Ambiguidade: Raúl Hestnes Ferreira e as Duas Habitações Geminadas em Queijas (1968-73)
‘Entretanto fui para a Finlândia, antes de acabar o curso. Naquela altura lia o Aalto, lia o Wright. Havia muito a questão do Zevi, da Arquitectura do Zevi. O que para mim tinha mais interesse na revista eram os desenhos dos monumentos antigos e depois a secção do primeiro modernismo com os Mackintosh, os Van de Velde, etc.’, Raúl Hestnes Ferreira
Raúl Hestnes Ferreira (1931) trabalha em nome da tradição clássica, vernacular ou modernista. A obra de Hestnes Ferreira é expressão de autenticidade em que influências de diversos autores, de diversas épocas estão assimiladas. A sua posição é pessoal e única. A sua obra reflecte conhecimento adquirido através da tradição secular da arquitectura portuguesa, sendo sensível à individualidade, à monumentalidade, através dos ensinamentos de Louis I. Kahn, na busca pela essência, na lógica construtiva, na utilização expressiva dos materiais, afirmando forma mas também função. Hestnes Ferreira colaborou nos ateliers portugueses de Arménio Losa, Cassiano Barbosa e João Andresen, e também em ateliers internacionais como no de Bacckman em Helsínquia e no de Louis Kahn, em Filadélfia, tendo neste último colaborado no projecto dos Centros Governamentais de Dacca, em Bangladesh.
De Robert Venturi retirou não só a lição de poder olhar para o passado, para a História mas também dar atenção à construção de abóbadas de tijolo alentejanas com as mãos e sem cofragem – como aconteceu na obra da Casa da Cultura da Juventude de Beja (1975-85). Venturi trouxe a arquitectura banal como tema, abriu a possibilidade à arquitectura de continuidade, igual às outras, que não é pura e nem branca e que também pode ser mais expressiva. Hestnes trabalha entre a ordem e o imprevisível, entre a geometria exacta (quadrado, círculo, o hexágono) e os desenhos sujos do carvão (tal como Kahn), entre a escala monumental e a intimista de maneira a aproximar-se do utilizador ou mesmo do cliente. Mas as soluções arquitectónicas finais de Hestnes são sempre claras, firmes, rígidas, delimitadas por contornos grossos e por volumes pesados.
Na casa de Albarraque e nas casas Mimoso e Shrimpton, de inícios dos anos sessenta, Hestnes Ferreira trabalhou segundo uma plasticidade a que não foi alheia a sua estadia na Finlândia, e a influência de Alvar Aalto e o contacto com a arquitectura vernacular, antes de qualquer surto turístico. As casas de Albarraque (1960-61), Mimoso (praia da Luz, 1960) formalizam uma arquitectura branca de coberturas inclinadas, enquanto a casa Shrimpton (também na praia da Luz, 1960) caracteriza-se por uma integração forte no terreno escavado e pelo uso de coberturas mais horizontais.
Hestnes trabalha a partir de diversas premissas volumétricas, espaciais, de inserção no terreno, de relação interior-exterior e de premissas construtivas, cada uma delas podendo caracterizar a casa no seu todo. O seu percurso na concepção do projecto de uma casa reside na relação estabelecida com referências diversificadas, renovadas e reinterpretadas segundo as condições de implantação, de integração no exterior e de utilização de materiais. É a vontade final do cliente que conforma todos estes factores (Ver ‘Arquitectura’, Ano V (4ª Série), n. 152, Maio-Junho 1984.).
Lê-se em ‘Raul Hestnes Ferreira – Projectos, 1959-2002’, de José Manuel das Neves, que final dos anos sessenta, o projecto da Casa de Queijas (1968-73) correspondeu a uma pesquisa em termos espaciais construtivos, determinante para sínteses posteriores. Foi concebida a par de projectos que optavam pela temática das superfícies brancas. E por isso a experiência de Queijas é, já de si, singular.
A dominante vertical foi a solução mais adequada para a inserção no lote, para uma casa destinada a duas famílias com várias gerações. A casa fica próxima de uma rua de trânsito intenso. É compacta e tem uma presença quase maciça. Ocupa uma posição destacada no acesso ao aglomerado. O tijolo aparente representa a opção mais consistente e singular para marcar essa presença. Apesar da singularidade da opção adivinha-se aqui a necessidade de recorrer a uma linguagem resistente e duradoura. E é aqui que se estabelece a ponte com a obra de Louis I. Kahn (com quem Hestnes colaborou entre 1963 e1965), ao fundar a sua casa sobre valores intemporais, através do recurso a uma geometria rigorosa, evidenciando a verdade dos materiais. Hestnes restaura o valor hierárquico e funcional de uma parede, de um pilar, de uma janela ou de uma varanda. As formas estão hierarquizadas e evidenciam a diferença entre espaços, luz e sombra. É evidente o diálogo de formas complementares (da curva e da recta) que dinamiza toda a obra – presente nas janelas, na cobertura, na chaminé, na varanda, e em planta. Cada espaço interno é individual. As fenestrações, de caixilharias ora curvas ora rectas, são todas diferentes esclarecendo a partir do exterior a singularidade de cada espaço. A solução faz igualmente lembrar a expressividade da Escola de Amsterdão, quer pela atenção dada ao desenho da moldura das janelas, das chaminés, das guardas das varandas quer pelo virtuoso uso do tijolo. O uso do tijolo permite a revelação de novas formas em arquitetura através da revelação do material tal como é.
Hestnes também trabalha em Queijas a partir de complexidades e contradições, tal como acontece descrito no livro de Venturi acerca do seu projecto para a casa em Chestnut Hill (1962). O conjunto é simultaneamente fechado (as paredes são grossas e opacas) e aberto (há um terraço na cobertura); grande (o volume exterior é maciço) e pequeno (o interior é compartimentado); assim como diverso (as fenestrações são todas diferentes) e unitário (o tijolo à vista uniformiza o conjunto); simples (a consistência, a geometria, o volume único) e complexo (a quase simetria e os detalhes ornamentais tornam o objecto singular e icónico). (Venturi, 1995)
O meu soneto A Antero de Quental vai à condição bipolar do pensador e poeta açoriano, que se suicidou em 1891, num banco talvez voltado para o mar. Mas dialoga sobretudo com um soneto do mesmo Antero, composto em Maio de 1885, e considerado o último do último período dos Sonetos Completos (1880-84), prefaciados e publicados por Oliveira Martins em 1886. Foi o mesmo, aliás, dedicado à Exma. Sr.ª Dona Vitória de Oliveira Martins. Em carta de Vila do Conde, onde passava tempos mais aliviados, quando o enviou a um amigo, escrevia Antero: O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da natureza... Reza assim esse soneto:
Na mão de Deus, na sua mão direita,
descansou a final meu coração.
Do palácio encantado da ilusão
desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
a ignorância infantil, despojo vão,
depus do Ideal e da Paixão
a forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
que a mãe leva no colo agasalhada
e atravessa, sorrindo vagamente,
selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
dorme na mão de Deus eternamente!
António Sérgio, na edição dos Sonetos, que organiza em 1956 (Couto Martins, Lisboa), comenta, numa das suas anotações: O sentimento pessimista vai sempre unido, como é natural, ao anelo de nos evadirmos para além do que existe, de nos foragirmos das condições que nos causam mágoa. Esse além-da-realidade para que se anseia abalar, aparece-nos nos Sonetos… Também no meu soneto "De Pedro a Inês", que compus concomitantemente ao meu "A Antero de Quental", surge o impulso dessa ânsia de evasão, que pode ir até à morte. Só que, nesse caso de Pedro e Inês, o rei já regressa do além da morte dela, da morte que, por vontade dele, infligirá outras mortes que a memorizem. Procura, precisamente, o contrário do esquecimento, quer eternizar a dor. Lendo este passo de uma carta de Antero a António de Azevedo Castelo Branco, perceberemos melhor como a inflição e a aflição da morte podem também ser o seu contrário: Por último, termino pedindo-te que não tomes estas palavras senão pelo que elas valem, isto é, a expressão de um desejo, nunca uma manifestação de força. Eu sou o pó da terra. A ti e aos meus amigos peço me desculpem os ares de forte e altivo combatente que me tenho mais de uma vez dado - em palavras. Mas eu era sincero. Tenho caído hoje na conta dos meus enganos. Ponhamos as coisas no seu lugar. Tenho sido vítima da ilusão do doente que toma pela saúde o grande desejo que tem dela. Numa só coisa mostro energia: é em não querer nem poder abdicar desse desejo. Mas isto é apenas o instinto de conservação, revelando-se no mundo moral. Há loucura, e há loucuras e loucuras. E há o que, nem nós, nem qualquer louco saberá muito bem o que é: a consciência, quiçá muito ténue, da própria loucura. Posso dar em louco porque não alcanço e não sou capaz - e, simplesmente quedar-me comigo só, no meu desespero. Ou pretender que não desesperei, mas outros, sim, me desesperaram. Estarão neste grupo, sempre, aqueles que mais esperaram, com mais ou menos razão, talvez, com mais carência do que nós, sempre, ser amados e reconhecidos. No primeiro grupo, ficam os que sentem o amor como "contentamento descontente"... Todos nós, afinal, nos perseguimos. E, todavia, só numa nova dimensão do amor nos encontraríamos. O meu terceiro soneto desta série intercalar, debruça-se sobre Dona Leonor de Lencastre, rainha e regente de Portugal, bisneta, sobrinha, prima, mulher e irmã de reis... E tia, ainda, de Isabel a Católica. E depois? Dom João II era seu primo direito e marido mas, por razões políticas, mandou matar e matou (dizem) os duques de Bragança e Viseu, irmãos dela. Mas aceitou como seu sucessor D. Manuel, o irmão mais novo, em vez de D. Jorge, seu filho bastardo, que a rainha acolhera, mas nunca mais quis ver, desde a morte de D. Afonso, filho único dela e Dom João II, até ao reconhecimento de D. Manuel I. A queda de cavalo que o matou, deu-se, diz-se, por ele ter anuído à insistência do pai em que fossem galopar, sem ter ele podido escolher corcel seguro... Por outro prisma ainda, olhamos a relação amor-paixão-morte. Na nossa estranheza de outros tempos, outros modos... E, neste fim de tarde tão cinzenta, invernosa e fria, peço a Deus que me estenda a mão, e me deixe nela repousar meu coração. E que, ao sol da manhã que vier, ele se abra, como flor colorida, a cheirar bem.
1. As línguas, à semelhança dos organismos vivos, nascem, crescem, vivem, morrem, expandem-se e definham, adoecem e reconvalescem, procriam e esterilecem. Podem ser vistas como um organismo que se alimenta por via de um processo de expansão dos seus falantes, combinado com o seu desenvolvimento económico, cultural, científico e tecnológico, em que o primeiro elemento protege os falantes nativos, potenciando o segundo o aparecimento de falantes não nativos. Como organização internacional e plurinacional com maior responsabilidade mundial quanto ao regulamento e futuro de todas as línguas, a UNESCO traçou oficialmente uma linha no sentido de que todos os idiomas, no fundamental, têm a mesma dignidade, mérito e valor, em termos factuais e jurídicos, dado que cada língua é um mundo muito especial do pensamento humano, sendo a extinção, de qualquer delas, uma perda insubstituível. É, porém, tido como um dado adquirido, seja a nível interno de um Estado, de uma organização de Estados, ou a qualquer outro, que a distribuição desigual de força e poder entre as línguas, enquanto meios de comunicação, é prescrição segura para um sentimento de insegurança permanente, denunciado pelos falantes das línguas mais débeis ou habilitadas a finar-se. A língua portuguesa, em particular, associa diferentes comportamentos e horizontes em cada um dos dois grandes espaços geopolíticos e geoestratégicos em que se integra: a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a União Europeia (UE). 2. Na CPLP é o eixo, a força e o motor, a causa primeira e essencial, o movimento que dá o impulso, o combustível, o lubrificante, a estrada, o condutor e o próprio veículo, a luz que alumia e ilumina. Sobressai nela a componente linguística, como língua comum, dominante e de vanguarda, nas suas vertentes identitária e matricial cultural, correspondendo à sua imagem de marca, por confronto com a económica e política (ver vários considerandos da Declaração Constitutiva e artigo 3.º, alínea c) dos Estatutos da CPLP). O próprio nome, no seu sentido literal, o reforça, ao assumir-se como uma comunidade e organização internacional de países de língua portuguesa. Na UE predomina a componente económica e monetária, em que o problema linguístico tem sido secundarizado, como de retaguarda, em contraste com uma hipervalorizada componente economicista e monetarista. Apesar do regime linguístico vigente ser de um pluralismo linguístico geral e de não-discriminação, baseado no princípio da igualdade consagrando, em termos normativos, a igualdade linguística de direito, na prática tem-se caminhado para a vigência de um clube trilingue restrito de línguas, sustentado no inglês, francês e alemão, primando cada vez mais a solução da unidade sem diversidade. Fala-se em línguas dominantes e dominadas, estando a nossa entre as últimas, ao mesmo nível do checo, esloveno ou luxemburguês, apesar de a terceira mais falada do ocidente, quinta ou sexta à escala mundial e a mais falada do hemisfério sul. 3. Tendo o fator económico peso preponderante na globalização, com a consequente preponderância das línguas aí dominantes, que veiculam poder e dominam o mercado, pode defender-se que a sobrevivência e futuro do nosso idioma se aposta mais na UE, que no mundo lusófono, em especial na CPLP, dado a UE ser a organização multi-estadual mais avançada do mundo, ter maior poder, atração e visibilidade. Entendo que não. Penso, em primeiro lugar, que a CPLP deve positivar a lusofonia no seu todo, isto é, abrir-se a todas as comunidades de gentes de língua portuguesa disseminadas pelo mundo, criando formas de relacionamento não reservadas exclusivamente a Estados, aspirando a abranger todos os Estados, Povos e Comunidades Lusófonas abarcando, na sua área identitária, o que é parte integrante desse todo mais amplo que se lhe antepõe e determina, que dá pelo nome de Lusofonia ou Mundo Lusófono. Por que não falar em Comunidade de Povos ou Falantes de Língua Portuguesa? É um imperativo que se lhe antecede, dado que uma comunidade é mais que uma comunidade de estados e de países, sendo primeiro uma comunidade de referências e afetos, havendo que ter vontade em ultrapassar uma visão restrita ou predominantemente nacionalista, coletivista ou tecnocrática, ganhando cada vez mais relevo a interiorização do cultural, com a correspondente visão que o ser humano faz de si próprio, da sociedade e do mundo exterior, tendo a cultura como um pilar de soberania e do maior consenso. Ao mesmo tempo, a lusofonia e a CPLP podem ser o contrapeso a esse clubismo linguístico dominante na UE, pois embora o português não seja dos idiomas mais falados na Europa, o mesmo não sucede tomando como referência o critério objetivo das línguas mais faladas mundialmente, à frente de idiomas essencialmente europeus como o alemão, italiano, polaco e russo, ou não exclusivamente europeus, como o francês, lutando para que a UE deixe de ter como núcleo central o seu umbigo. Sem esquecer que o Brasil e Angola são potências emergentes a nível global e regional, com reflexos na Europa e demais continentes. Também nada exclui a coexistência, em termos estratégicos e de médio ou longo prazo, de um alargamento preferencial e intercontinental, a vários níveis, desde logo ao cultural, a países e povos mais próximos de raízes europeias, como no caso de ex-colónias que comungam caraterísticas comuns, como já se propôs, entre nós, em relação a Cabo Verde (Adriano Moreira). Por último, cada português, como tal e como cidadão europeu, deve interiorizar a sua identidade europeia e assumir nesta a sua identidade portuguesa, parte integrante dela, a começar pela língua e, desde logo com esta, a sua identidade lusófona, incentivando as instâncias políticas da União, com a CPLP e demais lusófonos, a não subestimarem, na prática, as línguas europeias globais, tanto mais que o Parlamento Europeu já declarou ser o português a terceira língua europeia de comunicação universal. Há que vencer um certo conformismo, derrotismo e passividade latente entre nós, em comunhão e conjugação de esforços com os restantes condóminos lusófonos, combatendo situações em que os seus próprios falantes têm a sua língua em baixa estima, dando um tiro no próprio pé.
31 de março de 2015 Joaquim Miguel De Morgado Patrício
Maria Barroso e Augusto de Figueiredo em "Benilde ou a Virgem Mãe" de José Régio (in site da C.M. de Vila do Conde)
REFERÊNCIAS A MANOEL DE OLIVEIRA, JOSÉ RÉGIO, MARIA BARROSO
Fazemos aqui uma abordagem global a três nomes exponenciais da cena portuguesa – e cada um deles, a seu modo e na biografia respetiva, em muito transcendeu a abordagem específica da arte do espetáculo. Referimos Manoel de Oliveira, na sequência do post anterior, mas também, pelas razões que adiante se explicam, José Régio e Maria Barroso.
Como bem sabemos, cada um transcendeu em muito a expressão dramática, aliás, também cada um deles, assumindo-a num nível de qualidade excecional. Mas é o teatro e o espetáculo que aqui os relaciona – e a partir da peça “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça escrita por José Régio em 1947, estreada no Teatro Nacional de D. Maria II em 1947-1948 com Maria Barroso na protagonista, e filmada por Manoel de Oliveira em 1975 com Maria Barroso no papel de Genoveva.
Maria Barroso termina o curso de teatro do então Conservatório Nacional em 1943 e no ano seguinte ingressa na Companhia do TMDM II dirigida, como se sabe, por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Prossegue estudos na Faculdade de Letras de Lisboa, enquanto assume diversos papéis de protagonista no Nacional, com destaque para a Maria de Noronha do “Frei Luís de Sousa” em 1946. No ano seguinte estreia-se no cinema com “Aqui Portugal” de Armando Miranda: mas mais importante do que isso, nessa mesma temporada de 47-48, fará a protagonista da “Benilde” no D. Maria, com Augusto de Figueiredo no papel de Eduardo.
António Braz Teixeira assinala que «tal como o rei de “Jacob e o Anjo”, também a protagonista de “Benilde”, porque foi escolhida por Deus, só na morte serenamente aceite ou desejada (…) alcança a verdadeira liberdade redentora» (in “Teatro I” ed. INCM-2005 pag. 22). E o próprio Régio destacará esta interpretação, quase a última que Maria Barroso assume no Teatro Nacional antes de ser afastada em 1948. A crítica da época é aliás unânime em reconhecer a notável interpretação de Maria Barroso. “É o reconhecimento do seu talento. É a consagração do seu nome. É o ponto iluminado do seu palco” escreverá, meio século decorrido, Leonor Xavier, que reproduz um conjunto relevante de críticas da época. (in “Maria Barroso – Um Olhar Sobre a Vida”, ed. Difusão Cultural - 1995 pag. 98).
Maria Barroso afasta-se dos palcos. Mas em 1965, retoma a carreira em duas interpretações notáveis que marcaram o início de atividade do Teatro Villaret: “O Segredo” de Henry James e a “Antígona” de Jean Anouille, que já evocamos nesta série de artigos.
Ora bem: em 1975 estreia em Lisboa o filme de Manoel de Oliveira precisamente denominado “Benilde ou Virgem-Mãe”. Aqui, a protagonista é Maria Antónia Mata, e Maria Barroso assume o papel de Genoveva “velha criada da casa”. O texto teatral articula-se na expressão cinematográfica: diz João Bénard da Costa que “é o cinema que invade o teatro, num jogo de alçapões e sótãos, como se sob a profundidade do primeiro se escondesse o espaço do segundo”… (in “Histórias do Cinema” ed. Europália e INCM 1991 pag. 153).
E Eduardo Prado Coelho: «Em primeiro lugar, o filme nunca pretende figurar, melhor ou pior, uma realidade, mas sim registar uma peça de teatro. Quer dizer que, com ”Benilde”, Manoel de Oliveira avança sim pouco mais na sua conceção sobre a passividade do cinema. Em segundo lugar, opera-se, neste movimento de câmara, uma passagem para um espaço deliberadamente fechado, onde o exterior adquire uma força simbólica desmesurada (…). Em terceiro lugar, este espaço fechado é o espaço maldito que, na sua velha clausura, assistiu ao enlouquecimento da mãe de Benilde, ao bizarro comportamento do pai, e serve agora como explicação para o mistério que envolve o estado de Benilde”. (in “Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982” ed. ICLP pag. 58).
Entretanto, quero aqui frisar a expressão dramática e a qualidade do texto em si, e a sua “adaptabilidade” digamos assim, a formas de espetáculo em si mesmas distintas: o que em rigor se deve ao extraordinário talento de José Régio, que como sabemos não esteve, ao longo da vida, especialmente ligado aos meios teatrais e/ou cinematográficos…
Maria Barroso faria pequenas intervenções em dois filmes de Manoel de Oliveira: “Amor de Perdição” (1977) e “Le Soulier de Satin” (1984).
E seja-me permitido terminar com uma citação de texto de minha autoria, a propósito da “Benilde” - peça:
“Luta Benilde pela sua verdade. E só a morte evidente mostra a verdade essencial e subjetiva das suas vozes. (…) Teatro e grande teatro é a tensão doseada e progressiva de «Benilde ou a Virgem-Mãe», o seu remate inesperado, a dúvida que sempre subsiste”… (in “História do Teatro Português”- Verbo ed. 2001, pag.296).
Dos desafios não teve medo, vestiu o seu universo cumprindo na saliência dos penhascos a palavra que poucos diriam. No pós-guerra alemão nunca se cansou de satirizar a motivação que levou à reconstrução dos países beligerantes na terra que se houvera feito palco de sangue de irrecuperáveis vidas. Não sei explicar de outro modo, mas julgo que G. Grass se habituou a zonas ermas. Este Nobel da Literatura em 1999, não partiu esta segunda-feira sem que escrevesse um poema à Grécia actual recordando que fora ela que “concebera” a Europa. O poema, intitulado, em português “A Vergonha da Europa” foi escrito em 2012. Carlos Leite deu-lhe esta tradução:
À beira do caos porque fora da razão dos mercados, Tu estás longe da terra que te serviu de berço.
O que buscou a Tua alma e encontrou rejeita-lo Tu agora, vale menos do que sucata.
Nua como o devedor no pelourinho sofre aquela terra a quem dizer que devias era para Ti tão natural como falar.
À pobreza condenada a terra da sofisticação e do requinte que adornam os museus: espólio que está à Tua cura.
Os que com a força das armas arrasaram o país de ilhas abençoado levavam com a farda Hölderlin na mochila.
País a custo tolerado cujos coronéis toleraste outrora na Tua Aliança.
Terra sem direitos a quem o poder do dogma aperta o cinto mais e mais.
Trajada de negro, Antígona desafia-te e no país inteiro o povo cujo hóspede foste veste-se de luto.
Faleceu no Uruguai este escritor para quem a realidade eram as zonas invisíveis. O mundo são histórias e não hiatos, dizia. “Veias Abertas da América Latina” será um livro de geração? Eduardo Galeano odiava espelhos pois multiplicavam as pessoas e, no entanto, teremos sempre o espelho que começa com Adão e Eva e vem até aos dias de hoje, nos 600 relatos breves em releituras que Eduardo faz da história. Partem no mesmo dia dois escritores diferentes, mas para ambos o chão foi sempre abruto e irregular, lá até à extrema terra de onde nos disseram adeus.