Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Vivemos num tempo que estranhamos, porque não nos lhe encontramos o modo. Para mim, estranhíssimo talvez, pois duvido de que outros entendam essa construção discursiva de "não nos lhe encontrarmos o modo"... Repentinamente, caiu-nos o crepúsculo em cima do que pensávamos ser ainda meio-dia. Falo de nós, ditos europeus. Somos, e vamos sendo, cada vez menos o que gostámos e gostaríamos de ser, acordamos irreflectidamente ocupados por mundos que ocupámos. Almocei e jantei ontem com amigos e familiares nossos, alguns deles morando, ou com estadias recentes, em França ou na Bélgica. Todos, por si ou por familiares seus, não disfarçavam o incómodo, quando não receio, que lhes foi causado pelo comportamento ou atitudes de imigrantes africanos e árabes residentes nas cidades onde se encontram. Falei pouco, ouvi mais, todos temos momentos de maior sensibilidade a surpresas da nossa circunstância, e falha-nos então a serenidade necessária a uma análise partilhada das situações... Mas não pude deixar de apontar coisas, que me parecem ser contradições ou esquecimentos, nesses discursos que por aí vamos ouvindo, sobretudo o que possa revelar alguma falta de firmeza ou verdadeira fé em valores que proclamamos e a que chamamos nossos. Já terás reparado em que cada vez mais se ouve reclamar, em nome da reciprocidade, a proibição, nos nossos países, de práticas cultuais públicas, bem como do uso de vestes e acessórios que sejam apanágio de religiões, etnias e culturas de gentes em cujos países ou áreas religiosas e culturais, não se consente a construção de templos cristãos nem culto público, ou ainda se imponham interditos decorrentes, por exemplo, da charia: «Se nós somos obrigadas a cobrir a cabeça quando estamos na terra deles, porque é que elas não devem ser obrigadas a descobrir a sua na nossa terra?» Para mim, a razão por que não temos o direito de reagir assim está, precisamente, nos nossos princípios, não nos deles, nem no "olho por olho" de qualquer afrontamento. E se procedermos como eles procedem, estaremos a dar-lhes razão e a não cumprir o nosso preceito de reconhecimento da liberdade e dignidade igual para todos. Do mesmo modo, concordo com a proibição da afixação ou manifestação de símbolos religiosos ou políticos no espaço comum das escolas e outros edifícios e instituições públicas. Na verdade, o espaço público é comum a todos, todos o pagam, todos têm direito a usufruí-lo em igualdade de circunstâncias. Mas também defendo que uma freira possa ir às aulas, na sua universidade, envergando o seu hábito religioso, tal como uma muçulmana poderá apresentar-se com o cabelo coberto, ou um monge budista com ele rapado... A franqueza da exposição de cada um não ofende ninguém e, pelo contrário, é sinal de pluralismo democrático. Talvez mesmo nos ajude a conviver melhor. Não me passa pela cabeça pedir, ou simplesmente insinuar , que se proíba ou censure qualquer publicação como o simbólico Charlie Hebdo, mas também não entendo, precisamente pela mesmíssima razão, porque é que poderei entrar com o jornal bem à vista num desses espaços públicos, quando, se for cristão, me for vedado o porte de uma cruz na lapela ou ao pescoço...
Num mundo em que se tornou muito difícil evitarmo-nos, esquecemo-nos de cultivar a proximidade. Não temos, minha Princesa, o gosto de uma cultura da descoberta do outro e da convivência. Preferimos a ignorância e o ensimesmamento ao conhecimento e à abertura. Num espaço geográfico crescentemente ocupado por outros, consentimos que o nosso espírito seja ocupado por visões fantasiadas da História, por sentimentos de superioridade universal da civilização e cultura que chamamos nossas, sem mesmo nos lembrarmos de que também as partilhámos, ou quisemos impor, e, portanto, consentimos na sua adopção e aculturação. O que os outros esperam de nós não é repulsa e condenação de outros modos de ser, mas antes que sejamos fiéis e dignos cumpridores das nossas promessas, isto é, que saibamos construir com eles, neste tempo, o novo modo de conjuntamente estarmos. Pois é, minha Princesa de mim, lembramos, com saudade do que fomos - melhor, de como nos imaginamos no passado - uma história que não é só nossa - uma história que também foi vivida, e pode ser apreciada, por olhares e sentimentos alheios ao nosso autismo. Temos de admitir que possa haver ressentimento de populações árabes e africanas - e muitas outras - contra os ocupantes que fomos, os poderosos que as submeteram a uma ordem socio-económica e política que servia os "nossos" interesses e objectivos, e que, para o efeito, as quis assimilar a uma cultura que lhes era estranha. É natural que tal mágoa sobreviva, tal como compreendo que nos sintamos orgulhosos de antepassados - e mesmo familiares próximos - que, com sacrifício e um certo sentido do dever de "civilizar" e "educar", com muita abnegação e coragem - e até desejo de partilha de valores culturais e religiosos, ou de saberes e técnicas que considerávamos factores de desenvolvimento humano - foram fazendo, em terras longínquas, o seu trabalho. Claro que também houve crueldade e excessos, mas não se reescreve a História. Esta, que é comum a todos os homens, com os inerentes defeitos e qualidades, ganha sempre, e só, quando é partilhada entre as diferentes tradições e pontos de vista, quando o preconceito de cada um se deixa vencer pelo anseio de todos à harmonia, e aceita corrigir e ser corrigido. O que lá vai, lá foi, só o futuro será o que pudermos construir no presente. Anda por aí outra mania nefasta: a da generalização que torna temerários os nossos juízos, das situações, dos actos e comportamentos de muita gente. Assim, os muçulmanos serão todos, salvo raras e quase incompreensíveis excepções, uns tipos maus, violentos ou, pelo menos , perigosos e ameaçadores. O Daech, a Al Qaeda, etc, são frutos naturais e inevitáveis do islão. Olvidamos que os Khmers vermelhos do Camboja, os nazis alemães e europeus, os russos e outros estalinistas, as ditaduras militares, aqui e ali, tinham e têm pecados iguais, cometeram crimes tão grandes e, muitas vezes, maiores...e de muçulmanos nada tinham! A "nossa" Europa, por conta dela, conseguiu, no período de meio século, travar no seu seio as duas guerras mais mortíferas da História e, mais ainda, levá-las a outros mares e continentes, envolvendo na carnificina outros povos, incluindo os soldados africanos e de outras origens que, originários das nossas colónias, foram obrigados a combater em solo europeu... Talvez por termos finalmente despertado de tal pesadelo (teremos?), sejamos hoje maioritariamente avessos a qualquer prática ou horizonte bélico, ainda por cima confortados pela sombrinha do poderio militar norte-americano. Recentemente, um estudo efectuado em sessenta e cinco países concluía que, por regra e em todos os continentes, mais de 70% dos inquiridos respondia afirmativamente à pergunta "estarias disposto a combater se o teu país entrasse em guerra?", e assim também mais de metade dos norte-americanos, mas apenas 20% dos europeus... Parece-me, por isso, que os europeus sofrem de desilusão e cansaço, mas, em vez de terem a sageza e a fortaleza de se armarem e proclamarem os princípios de dignidade, igualdade e justiça - que tantos séculos, lutas e sacrifícios custaram - como único caminho viável para a paz universal, se encerram num receio subconscientemente alicerçado na convicção da sua superioridade, por paradoxal que tal pareça. Será que chegámos ao ponto de não querermos ser incomodados, de nos acharmos sujeitos só de direitos, sendo dever apenas o adquirido que recebemos e gerimos a capricho? Escrevo-te tudo isto em carta, como desabafo, não pretendo construir teorias, nem defender posições, escolhi-te para contigo partilhar o que pensossinto, e tantas vezes me é difícil explicar. Acredito, minha Princesa, na bondade inata da pessoa humana, à imagem e semelhança de Deus, que a prática da verdade é o amor, esse que omnia vincit. Eis uma convicção íntima, que é sempre um apelo à minha própria conversão interior... Mas Deus quisesse que ela fosse contagiosa, que em todos vencesse todos os medos, porque o medo mata, sim, mata pelo menos tanto ou mais do que a crueldade e a violência (por aqui poderemos também entender melhor a dignidade do direito de legítima defesa). E é por isso, profundamente, que lamento, como tenho lamentado, que, na sequência dos atentados de Paris, ignobilmente perpetrados como tantos outros, antes e depois, com claros obectivos de confusão e desestabilização, se tenha falado mais do direito à liberdade de expressão (tal qual, igualmente, o beatério fala de ofensas ao sagrado coração...) do que no direito à vida, esse que, sim e sem dúvida, pode concitar um acordo universal, posto que nele todos nós nos fundamentamos. Porque nada é tão ilustre como o bom exemplo, termino esta carta com mais uma lembrança do papa Francisco, da sua corajosa presença e das suas palavras na Nápoles dos pobres - pobres em sentido lato: desprovidos, vítimas e mafiosos. Qualquer forma de corrupção, malevolência e violência só poderá ser vencida pela coragem de quem ama. Dou-te a mão e um beijo de esperança.
Jane Jacobs - complexidade, simultaneidade e variedade urbana.
‘Life attracts life.’, Jane Jacobs, The Death and Life of Great American Cities, 1961
‘You can't rely on bringing people downtown, you have to put them there.’, Jane Jacobs, The Death and Life of Great American Cities, 1961
Em 1956, Jane Jacobs (1916-2006) no artigo que escreveu para a revista Fortune, ‘Downtown Is for People’, afirma o seu desagrado pela Cité Radieuse de Corbusier. Ora, o aparecimento da cidade vertical e zonificada pensada por Le Corbusier determinou em grande parte o planeamento urbano do pós-guerra (inclusivamente o planeamento de Nova Iorque, conduzido por Robert Moses).
Para Jane Jacobs, as cidades são e devem ser sim, organismos complexos que criam uma lógica própria. O livro The Death and Life of Great American Cities (1961) de Jacobs apresenta um estudo dos factores que voltam a criar vida e espírito às cidades. Jane Jacobs, defende a grande cidade através de um planeamento que esteja ao serviço da vida urbana, mas também do valor humano e cultural – a favor da complexidade, da simultaneidade e da variedade. E para assegurar a diversidade e o pleno funcionamento da cidade de Jacobs, é necessário uma forte densidade residencial, um tecido urbano cerrado, uma mistura de funções e uma aproximação dos pedestres à vitalidade e à concentração das funções urbanas. Habitação, locais de trabalho, de comércio e de lazer devem estar intimamente integrados uns nos outros e não segregados.
Para Jane Jacobs, existem três factores importantes que determinam a cidade:
A Rua
A rua, para Jacobs, é o elemento mais importante numa cidade não só pela sua capacidade de demarcar claramente o espaço público do espaço privado (que não se devem misturar nem ser ambíguos como acontece em contextos suburbanos), mas sobretudo porque a utilização constante da rua oferece aos utilizadores o mais eficaz meio de segurança, de contacto e de actividade.
Jacobs declara que a rua deve ter olhos – pertencentes aos proprietários da rua. Os edifícios da rua devem estar orientados para a rua e não devem virar o seu tardoz ou apresentar lados cegos. Os passeios devem apresentar utilizadores ininterruptamente – aumentando o número de olhos presentes na rua e dentro dos edifícios que a delimitam: ‘Nobody enjoys sitting on a stoop or looking out a window at an empty street. Almost nobody does such a thing. Large numbers of people entertain themselves, off and on, by watching street activity.’ Jacobs determina que passeios com uma largura entre 6 a 9m são suficientes para acolher qualquer actividade das crianças e dos adultos e incluir árvores para dar sombra. Porém a rua, para ser utilizada tem de oferecer uma grande quantidade de lojas e lugares públicos ao longo dos passeios – alguns destes lugares devem também ficar abertos à noite. Lojas, bares e restaurantes contribuem para dar segurança à rua, pois oferecem aos transeuntes razões concretas para utilizar a rua. Para Jacobs, os habitantes da cidade não buscam a contemplação do vazio, da ordem e da calma. Uma rua viva possui sempre em simultâneo usuários e observadores – numa rua, a confiança estabelece-se através de uma série de numerosos e pequenos contactos.
O Parque
Para Jacobs, existem quatro regras importantes para desenhar um parque: complexidade (ao estimular uma variedade de usos e utilizadores reincidentes); centralidade (ser cruzamento principal, ponto de pausa, ou auge); acesso à luz solar; e encerramento (através da presença de edifícios e de uma diversidade de ambientes). E se uma cidade for bem sucedida em aceitar a diversidade de usos e de utilizadores nas suas ruas, com mais sucesso casualmente e economicamente a sua população poderá animar e apoiar parques bem localizados que podem dar vida ao bairro, em vez de vacuidade.
O Bairro
O Bairro deve conter uma multiplicidade de edifícios que varia em idade e condição.
Jacobs recomenda, a existência de quatro pilares no planeamento eficaz para um bairro de uma cidade: 1) desenvolvimento de ruas animadas e interessantes; 2) existência de um tecido de ruas em rede contínua e com um tamanho e poder de sub cidade; 3) intensificar a complexidade e multiplicidade de usos, através da presença de parques, praças e edifícios públicos incluídos na rede das ruas; 4) promover uma identidade funcional a nível do bairro.
Na festa de S. Sebastião, como já foi contado, uma multidão de caracóis aplaudiu um menino desse nome e, em coro uníssono cantou-lhe o va pensiero. Talvez - penso eu agora, pois sou avô, e os avós têm de pensar o que podem - para lhe agradecerem, na onomástica efeméride, o seu carinhoso acompanhamento de um deles, que nunca deslocou, nem sequer tocou, apenas foi olhando e vendo, quiçá percebendo no silêncio - no silêncio que é a misteriosa voz das coisas que, por serem muito, falam pouco - como a amizade é, tão simplesmente, o inexplicável sentimento de uma presença, ainda que ausente. Há uns dias, na véspera do equinócio desta primavera, ao correr, ao fim da tarde, o cortinado que nos cobria da luz poente a entrada da casa, vejo, colado ao vidro de uma das janelas da porta, entre esse e o ferro forjado que o protege, um caracol solitário. Pasmei. Olhei-o, vi um gastrópode que era um olhar fixo. Retribuí-lhe o olhar, encostei a orelha ao lado interior do vidro, nada ouvi. Decidi que deveria ser eu a falar primeiro: "O Senhor caracol que vai desejar?" - assim ouvi muitas vezes a fórmula nas esplanadas dos cafés... Silêncio. Insisti. Nada. Antes de me irritar - sou facilmente irritável - achei melhor pergunta: "Estás à procura do Sebastião, caracol querido?" - "Percorri o jardim, subi os degraus de pedra desta entrada e, pela porta acima, aqui cheguei, a passo de caracol. O Sebastião não está? Não veio ver a primavera que chega amanhã e lhe traz, de presente, um eclipse e marés enormes?" - "Va pensiero, caracolito amigo, o Sebastião ainda não chegou, vem só depois da Páscoa, mas eu digo-lhe que vieste procurá-lo..." - "Bem hajas, Avô, cá o espero!" - "Onde, meu lindo? Aí, colado a esse vidro? Não te peço para entrares, porque também não sei tratar de ti e não te quero magoar... Já é milagre grande - e dos maiores - estarmos aqui os dois à conversa... - "Não te preocupes, Avô, vê-se bem que és homem de pouca fé... O teu neto Sebastião, quando voltar, há de saber onde estou, já esta noite me encontrará nos seus sonhos. Sabes? Nós, os caracóis, somos assim: pequeninos e vagarosos, ninguém dá por nós, mas vamos aparecendo. Como a Páscoa na Primavera, e a saudade de Deus no coração dos homens."
Nasce nos E.U.A. em 1809, autor, poeta, crítico literário e conhecido pelas suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, bem como o género a que se prende a ficção policial. Tentou Allan Poe desesperadamente ganhar a vida apenas com a sua escrita, o que lhe tornou os dias num desespero. Mas hoje, hoje apenas refiro um poema seu que sempre me intrigou pela força ingénua que constituiu este amor assim, este amor de tremendo e fatal abismo e a cada noite sempre e sempre revivido.
ANNABEL LEE
Foi há muito e muito tempo
Num reino ao pé do mar, foi aí,
Que viveu uma donzela que deveis conhecer
Pelo nome de Annabel Lee;
E esta donzela vivia sem outro pensamento
Do que amar-me e ser amada por mim
(…) But our love it was stronger by far than the love
E quando nascem as estrelas, logo eu ao vê-las
Os olhos brilhantes de Annabel Lee vou contemplar
In the sepulchre there by the see
In her tomb by the souding sea.
Deveria Annabel ter partido pacífica pela porta da verdade? Aquela verdade tão profunda que é andorinha-do-mar até que cada amante?
1. O conceito de lusofonia só em tempo recente estabilizou no léxico. Prova-o o facto de só na década de noventa, do século passado, aparecer como vocábulo nos dicionários de língua portuguesa. No seu percurso de afirmação, tem substituído expressões tidas como ultrapassadas. É o caso de lusista, lusismo, lusitanismo, lusitano, lusitanidade, lusocultura, bem como de adjetivos hifenizados, como luso-galaico, luso-brasileiro, luso-africano, luso-americano, luso-angolano, em desuso, em benefício dos vocábulos lusofonia e lusófono. O termo lusofonia diferencia-se de outros que lhe são próximos e seus concorrentes, como lusofilia (amor pelas coisas portuguesas), lusotopia (lugares onde efetivamente se fala português), lusografia (dá relevo ao uso da língua escrita, cujo uso não é totalmente coincidente com o da língua falada). Apesar de, para alguns, a língua portuguesa, etimológica e mitologicamente, como a língua do luso, encontre na palavra lusofonia o seu sentido mais nobre, sendo o uso da expressão luso, em vez de português, uma forma de superar o nacionalismo e entrar na área do mítico e do simbólico; para outros, o termo lusofonia não faz sentido, pois a língua portuguesa não é propriedade dos lusos, mas domínio próprio de cada um dos seus falantes. Não se discutindo, neste texto, a legitimidade ou a propriedade do uso do termo lusofonia, não deixaremos de referir que, concorde-se ou não, é algo que existe enquanto realidade com potencialidades próprias, sendo evidente que não é por se utilizar tal conceito que necessariamente se está a negar que o nosso idioma não é pertença dos outros povos que o falam. Perspetivar a lusofonia em termos redutores de ideologias radicais ou de neocolonialismo, é um testemunho de imaturidade política e saudosismos nostálgicos, excluindo uma causa de união internacional, em favor de interesses alheios, também eles fundados num mesmo conceito linguístico e estratégico. Para quem entenda que no sentido etimológico de lusofonia predominam ecos neocolonialistas, parecem-nos muito mais visíveis em expressões concorrentes, como francofonia, anglofonia e hispanofonia, dado o seu sentido mais literal e imediato da mensagem que lhe está subjacente. Também não é de ter como aceitável a divisão entre fonias boas e más, defender o mito das línguas ricas e desenvolvidas e das pobres e subdesenvolvidas, tendo como absurdo que um país pobre ou subdesenvolvido não fale uma língua de um país rico, quando é sabido que a maioria dos países africanos (e vários asiáticos) têm o francês e o inglês como idioma oficial e nenhum deles integra os países desenvolvidos e ricos, sem prejuízo da perigosa subalternidade a que ficariam sujeitos os falantes de línguas não tidas como de eleição. 2. Independentemente das críticas, emoções ou paixões que a questão provoque, é um dado adquirido que o termo lusofonia está consagrado na bibliografia internacional especializada, sendo tida, no essencial, como o conjunto de pessoas ou a comunidade de povos e países que têm o português como língua materna e oficial (Dicionário da Academia de Ciências de Lisboa e Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Sobressai, de imediato, em ambos os casos ser, prioritariamente, uma comunhão de língua. No seu significado literal e mais extensivo, integra o conjunto dos que falam português como idioma materno ou não, nele se incluindo os países que têm a língua portuguesa como oficial ou dominante, como Portugal, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, englobando também cidadãos de outros Estados que se expressam em geral em português, ou, ainda, que o têm como língua materna, como sucede com alguns goeses, cidadãos da União Indiana, ou com certos macaenses, cidadãos da República Popular da China, sem esquecer as variedades faladas por parte da população dos antigos territórios do Estado Português da Índia (Goa, Damão, Diu e os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli), do papiá cristã de Malaca, ilha das Flores (Indonésia), comunidades de emigrantes portugueses e dos demais países lusófonos e seus descendentes, espalhados pelo mundo (lusófonos e lusófono-descendentes). Assume uma nova dimensão com a assunção dos novos estados soberanos de língua oficial portuguesa, passando a sua operacionalidade por várias fases, desde o relacionamento privilegiado com o Brasil, à política de cooperação bilateral com os países africanos (PALOP) e à participação na ajuda multilateral para o desenvolvimento. Partiu-se de uma perspetiva lusíada e chegámos, em determinado momento, a uma perspetiva lusófona. Sem esquecer que o conceito de lusofonia está hoje formalmente instituído na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que é, de momento, o seu quadro institucional de referência, se bem que aquela nele se não esgote e se lhe antecipe, dada a sua maior amplitude. Embora tal conceito linguístico seja o que agarra mais de perto, por agora, o que normalmente designamos por lusofonia, tende a ser, com a globalização, cada vez mais abrangente, indo para além do núcleo duro da CPLP, ao abranger outras línguas e culturas desses países e demais regiões lusófonas em contacto entre si e com a língua unitária e comum, assim como pessoas, grupos e instituições de outras proveniências que se interessem pelos lusófonos, mantendo com a língua portuguesa e culturas lusófonas um relacionamento de especial interesse e empatia. A lusofonia não deve servir para que Portugal e restante mundo lusófono se sintam orgulhosamente sós, mas para que possam dialogar com os outros espaços do mundo contemporâneo, numa perspetiva de saudável confluência e de ecumenismo universal.
Temos alternado, nesta série, textos obedecendo a critérios distintos mas obviamente complementares: por um lado referências a atores e encenadores “profissionais” no sentido do exercício constante e dominante da atividade; por outro lado, referências a personalidades destacadas do meio artístico, literária e até politico, que marcaram também, na obra e no talento, a vida cultural-teatral e do espetáculo.
David Mourão-Ferreira é ainda hoje, quase 20 anos decorridos sobre a sua morte, um exemplo flagrante deste grupo escolhido de talentos multiformes. Escritor inconfundível e ímpar na obra, em extensão, variedade e qualidade, deixou escritos memoriais onde evoca a sua participação direta, como ator e como dirigente de iniciativas que marcaram a renovação cultural do teatro-espetáculo ao longo dos anos 50-60. Isto, conciliado, no que respeita ao teatro, com a escrita e a produção de algumas peças de notabilíssima qualidade, no ponto de vista poético-literário e no ponto de vista técnico-dramatúrgico.
Cito, nessa área específica da criação teatral, “Isolda”, estreado em 1948 no Teatro Estúdio do Salitre, grupo percursor da renovação modernizante do teatro português, como já aqui vimos, peça nunca publicada, mas à qual se seguiu “Contrabando”, (1956) e “O Irmão”, esta escrita originalmente em 1955 e sucessivamente ampliada e alterada, com sucessivos nomes, até à versão e edição definitiva em 1988.
E nesta dramaturgia breve conciliam-se aspetos estruturais da obra vasta e variada de David, no teatro, na poesia, na ficção e no ensaio e docência: designadamente, nos contextos dramáticos contemporâneos, uma referência permanente a padrões e paráfrases que percorrem desde a tragédia grega ao realismo social dos dias de hoje. Tudo isto num termo de modernidade e qualidade ímpar da escrita: e não por acaso a vida e a obra surgem diretamente ligadas a versões cinematográficas da sua ficção – e uma vez pelo menos até como interveniente direto.
Mas voltemos ao teatro. Em 1997, a revista Colóquio/ Letras da FCG (nº145/146, Julho - Dezembro de 1997, dir. Joana Morais Varela) publicou um vasto memorial sobre David Mourão-Ferreira, em que tive o gosto de colaborar, e que abre com uma extensa entrevista de vida e obra concedida por David à escritora Graziana Somai. A edição inclui em destaque a reprodução fac-similada do manuscrito não datado mas claramente dos primeiros anos do autor David Ferreira, de uma pequena peça intitulada “O Intrujão - peça em dois atos” (8 páginas) com a seguinte anotação: “esta peça é dedicada à Exma. Srª Professora D. Carmen”.
E justamente: este escritor de obra imensa e variada, mas limitada no teatro a quatro textos, sendo um esquecido (“O Irmão)”, outro nunca publicado (“Isolda”) os outros publicados mas profundamente e sucessivamente alterados até às versões finais, foi ator no Teatro Estúdio de Lisboa, companhia referencial como já aqui lembramos, da renovação do teatro português – e foi ainda ator esporádico em outas produções e em outros espetáculos.
Ouçamos a esse respeito as suas recordações na entrevista citada:
“Comecei por participar num grupo de teatro da própria faculdade (…) Depois, em 1948, tinha vinte e um anos, comecei a representar (…) num grupo de teatro que teve grande importância nesses anos em Portugal, e que tem muito a ver com a Itália porque tinha a sede no Instituto Italiano de Cultura. Tratava-se do Teatro-Estúdio do Salitre dirigido por Gino Saviotti, também diretor do Instituto e que era uma figura muito interessante (…). O repertório de peças que nós representávamos era basicamente italiano e português mas levaram-se à cena autores portugueses que nunca tinham sido representados, alguns muito jovens como era o meu caso; representaram-se duas pequeninas peças minhas (…) Isolda e Contrabando. Entrei como ator em peças da Comedia dell Arte e dum autor do século XVII. (…) No começo dos anos 50 ainda tive uma certa atividade como ator”…(ob. cit,).
Em artigo que publiquei na revista Colóquio citada identifiquei pelo menos duas intervenções de David Mourão-Ferreira no TES: “Florina” de Angelo Beolco, e “O Rei Veado” de Carlo Gozzi.
E mais uma nota pessoal: em conversas com David Mourão-Ferreira, a propósito de estudos que publiquei sobre o seu teatro, David referiu-me a intenção e escrever uma peça inspirada na vida e obra de Garrett . Ora, bem podemos dizer que há afinidades entre estas duas grandes figuras da cultura portuguesa – cada um na sua época, no seu estilo, na sua biografia pública, literária e até política – ambos integraram governos, ambos marcaram a cultura e a sociedade – há realmente paralelismos e convergências.
Mas sobretudo ambos foram profundamente renovadores da época respetiva, e como tal continuam ambos profundamente modernos. (cfr. “Infinito Pessoal – Homenagem a David Mourão-Ferreira “in ”, Colóquio Letras” cit.)
E aqui vamos nós… again. The Right Honourable David Cameron inicia a maratona europeia destinada a culminar num referendo sobre a Brexit imediatamente após The Queen’s speech em Westminster, enquanto o Chancellor of the Exchequer George Osborne simplesmente ordena à administração pública que proceda a novos cortes nos gastos em Whitehall.
Se no continente o objetivo da renegociação dos tratados soa hoje a utopia política, a meta de £13 bn em poupanças no reino assemelha-se a uma miragem financeira. — Chérie. Revenons à nos moutons! O mistério de May 7th mora no microscópio. A mais recente descoberta revela que as minorias étnicas votaram Conservatives. As peregrinações do Prime Minister aos templos budistas com um barrete laranja conquistaram faixas amiúde partidárias do Labour, mas por desvendar está o mix das palavras: negra para os emigrantes e rósea face à aspiração de mobilidade social. — Hmm. Things are not always as they look like. Master William Shakespeare regressa à cena sob tese de a sua imagem figurar no frontespício da magnus opus do botânico John Gerarde. HRH Prince Charles of Wales faz uma visita histórica a Mullaghmore (Ireland). A bandeira negra do Isis flutua em Palmyra. O Professor John Nash despede-se em New York.
Lovely weather around. A condizer com a agradável atmosfera está o animado debate em torno do amado Master Will. Afinal, why didst thou promise such a beauteous day? A proposta floral vem na última edição da Country Life (May 20), na qual o historiador Mark Griffiths defende a tese de o bardo figurar no rosto do John Gerarde’s The Herball, de 1587. Ora, como diziam já os itálicos na era de Elizabeth I, se non è vero, è ben trovato. O argumento é um tanto rocambolesco e assenta numa cifra ao estilo do Da Vinci Code, mas as conexões estão corretas e são apelativas a qualquer leitor acidental. O autor da Generall Historie of Plants é o herbalista Tudor por excelência, nascido em 1545 e sagrando a expertise em vida do poeta como superintendente dos jardins no Lincolnshire de William Cecil, Lord High Treasurer e 1st Baron Burghley, conselheiro da Queen Bessie. Sabida é também a paixão shakespereana pelas plantas, dadas as usuais referências à jardinagem e às ervas nas suas obras. Das suaves em Antony and Cleopatra (“As sweet as Balm, as soft as air, as gentle”) ou King Henry the Fourth (“For though the chamomile, the more it is trodden on, the faster it grows, yet youth, the more it is wasted, the sooner it wears”) às vigorosas em Winter’s Tale (“Hot lavender, mints, savory, marjoram, / The marigold, that goes to bed wi’ th’ sun / And with him rises weeping. These are flowers / Of middle summer, and I think they are given / To men of middle age”), sem alhear a ironia doméstica das praticalities em A Midsummer Night’s Dream ("And, most dear actors, eat no onions nor garlic, / For we are to utter sweet breath”) ou ainda a magnificência em Romeo and Juliet (“What's in a name? that which we call a rose: By any other name would smell as sweet”) e em Hamlet (“Look at my flowers. There’s rosemary, that’s for remembering. Please remember, love. And there are pansies, they’re for thoughts”). Se sua é a figura no clássico entre os clássicos das ervanárias, não sei aferir, mas as ideias valem também pelo que em nós invocam. Em paisagens belíssimas esteve Charles of Wales por estes dias em que parte a beautiful mind. Aos 86 anos falece o genial matemático John Nash, com a esposa Alicia, deixando os trabalhos que lhe outorgaram o Nobel Prize for Economics em 1994 e a inspiração para o memorável filme de 2001 protagonizado por Mr Russell Crowe. Já a visita oficial a Ireland cedo demais é cunhada como um marco pastoril no processo de reconciliação nas ilhas britânicas. Durante quatro dias, o Prince da House of Windsor fez coisas inimagináveis há bem pouco. A um tempo ruma a Mullaghmore, a vila pesqueira na costa oeste aonde há 36 anos Lord Mountbatten e familiares perdem a vida num atentado do IRA. A outro tempo, o próximo rei aperta as mãos com Mr Gerry Adams e observa o olhar do líder dos contrários. O passo real não é por todos bem-vindo. Que as divisões persistem aquém do mar em Co Sligo, tal qual além Channel, ilustra-o as rijas opiniões de Mr Peter Hitchens no Mail on Sunday: "How strange to live in a country where the heir to the throne would rather publicly clasp the hand of a Republican apologist for political murder than privately meet a loyal patriot and monarchist. But there it is. Nothing is but what is not. We must learn to live our lives backwards, sideways, every way but straightforwardly." — Well. He who knows the danger may with care pursue his journey. And… Fairwell, Professor Nash.
Quando Eduardo Lourenço celebra mais um aniversário, o Centro Nacional de Cultura renova o seu «sítio» oficial na internet (www.eduardolourenco.com) de modo a tornar a obra e a reflexão do ensaísta acessível para todos (como ponto de encontro de estudiosos e leitores). E aí se apresenta uma visão global da vida, obra e pensamento.
PORTUGAL COMO DESTINO Na sua análise de Portugal como Destino, Eduardo Lourenço afirma que Garrett e Herculano refundaram a pátria porque, «pela primeira vez e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o país esteve em sérios riscos de perecer». E a verdade é que aparte a revolução liberal de 1834 não houve outra em Portugal. «Inconscientemente» levámos séculos a afastar-nos da “fatalidade” europeia e do seu jogo de forças, mas tivemos de assumir-nos na balança da Europa. De facto, «o tráfico africano, o comércio do Oriente, o açúcar e depois, miraculosamente, o ouro do Brasil» permitiram-nos ter o nosso caminho, enquanto a Espanha esteve a braços com os seus “deveres de potência europeia”. Precisámos, porém, da Europa (França e Inglaterra) para preservar a independência, mas pudemos separar as águas. No entanto, foram faltando as riquezas perenes. Não por acaso, Lourenço fala de fanatismo, e da sua presença entre nós. Recorda a expulsão dos judeus, a sua conversão forçada e a longa presença da Inquisição – contudo acrescenta: «o povo português não é o único a merecer o ápodo de ‘fanático’, se essas generalizações são aceitáveis. Como o bom senso cartesiano, o fanatismo é a coisa mais bem partilhada do mundo». Todavia, não é certo que uma religião se possa definir pela intolerância e pela exclusão, até porque, em todo o caso, «não é essa a essência do cristianismo. Religião, por excelência da não etnicidade, exclui por definição, toda a incitação ao fanatismo». Alimentámos no nosso interior dois Portugais – o Portugal velho e o Portugal novo -, numa divisão menos dramática do que a das duas Espanhas. Na busca de uma síntese, Eduardo Lourenço não esquece que fomos, durante muitos séculos, nação-cruzada, mas, apesar disso mesmo, pudemos sabiamente ter uma vivência religiosa flexível, que Oliveira Martins liga ao «imanente paganismo» e Jaime Cortesão ao naturalismo, bem evidente na plasticidade franciscana.
OS DOIS PORTUGAIS Se fizemos tudo «coletivamente» até aos Descobrimentos, a verdade é que o Romantismo pôs a tónica no indivíduo. Se João de Barros, Camões ou Vieira inscreveram Portugal numa esfera de conteúdo transcendente, Herculano pôs a ênfase na liberdade - «um Portugal que, de armas na mão, se conquistou com liberdade. E é o passado dessa liberdade – quando na sua perspetiva mereceu esse nome – que ele exuma e exalta». E assim o historiador compreendeu o elo entre os dois Portugais, procurando conciliar liberalismo com cristianismo. E fê-lo «não por oportunismo, como a cultura oficial do constitucionalismo o fará, mas porque tal era a sua visão da história e a exigência do seu individualismo ético». E Garrett completa esta perspetiva ao pôr Camões no centro da «nova mitologia pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria de canto, de cultura, sem as quais a memória deles não existe». Mas não há «qualquer profecia com garantia providencial», o que existe, sim, é vontade e capacidade de regressar ao passado como se fosse presente, relendo os acontecimentos de glórias e viajando na nossa terra, de modo a projetar o futuro. Em vez de D. Sebastião,surge Camões, com os seus sentidos lírico e épico.
CONSCIÊNCIA DE NÓS MESMOS A tomada de consciência da decadência deve-se ao facto, detetado por E. Lourenço, de: «em todos os domínios, o regresso à casa lusitana, o confronto connosco próprios, que só por mediação alheia íamos tendo, era vivido sem meio-termo, com deceção ou regeneradora descoberta do nacional, do castiço. Decididamente, a Europa do último quartel do século (XIX), essa Europa de onde esperávamos o messias, em vez de nos estimular, melancolizava-nos ou humilhava-nos simbolicamente». Ora, a Geração de 70 personificou dramaticamente este desafio, e fê-lo com sentido profético como Quental assumiu na conferência de 1871 sobre «As Causas da Decadência» a condição de nosso primeiro pensador não nacionalista, falando em termos europeus e universais. O ensaísta de «O Labirinto da Saudade», parte da herança de Herculano e de Garrett, centrando-se na exigência emancipatória da Geração de 70, vista não como um qualquer «vencidismo», mas como o culto determinado da crítica enquanto fator de liberdade e progresso. Daí a necessidade de compreensão dos mitos – que permitem ir da vontade à evolução. Para Eduardo Lourenço, a Geração de 70 buscou um sentimento universal, notado em Fradique Mendes e depois na galáxia de Fernando Pessoa & Companhia e no modernismo. E é nesta ligação que Eduardo Lourenço assume uma grande originalidade, ao articular as Conferências Democráticas e o Orpheu, os séculos XIX e XX. «A história e o destino de Portugal nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que a vida é. Também não o são agora».
O meu neto Sebastião nasceu sete anos depois da sua irmã Inês. Foi sempre muito desembaraçado e, com dois irmãos mais crescidos, também foi despertando asinha... Só que, quanto a falar, procurava imitar os outros dois, pelo que, com a pressa, lhe saía a articulação atropelada, como se se exprimisse numa língua que eu desconhecia. Obrigava-me, muitas vezes, a recorrer aos maternais cuidados da Inês, que concentradamente me ia traduzindo os impagáveis discursos. Mas quando estávamos só os dois, acontecia que - depois de escuta atenta e esforçada - eu lhe dissesse "Sebastião, não percebi nada do que estiveste para aí a dizer!" Ele olhava-me interrogadoramente ("O meu Avô será pouco esperto ou estará a gozar comigo?"), trepava para o meu colo (tinha três anitos) afirmava "N´fá mal!" abraçava-me o pescoço e dava-me um beijinho: "Ai! Pica!" - "A barba do Avô pica?" - "Sim!" Daí a pouco, vindo a correr, Deus sabe donde, lá se chegava outra vez a mim... "Dás-me um beijinho?", pedia eu. "Pica!", respondia, e punha-se a milhas. Para não deixar por mãos alheias os meus créditos e direitos, bem se vê que este Avô não perdia qualquer oportunidade de picar o miúdo. O mariola levava então as mãozitas à cara, sacudia a picadela, lançava-me um olhar de cumplicidade marota, e punha-se ao fresco. Até que, aos cinco anos, num dia em que regressavam, para férias na nossa casa, Sebastião - que já ia falando inteligivelmente - me veio abraçar e me beijou a barba branca. "Então, Sebastião, já não pica?" - "Pica sim, Avô, mas eu não me importo". E sorriu-me, como quem diz: "Vê lá se aprendes com esta!" Hoje, quando o vejo, aos sete anos, tornado bom tenista e surfista, falando português, francês e inglês, como quem salta a corda, muito independente e despachado, não me surpreende a inefável ternura com que sempre vem ter comigo. Muitas coisas mudam connosco e em nós. Mas algo, muito de nós, é sempre. Tantas vezes penso como o carinho entre as gerações, precisamente porque o tempo e o modo de cada uma delas é diferente na circunstância, na percepção do mundo e nas condições de vida, é um sinal claro de que o amor não deve ser visto como poço de contradições e afrontamentos, mas enquanto permanente desafio. Teria o Sebastião quatro anos e, numa salita, onde tínhamos jogos vários e uma televisão, ele entretinha-se a desligar e ligar as tomadas de aparelhos e candeeiros, encantando-se com o acender e apagar das luzes, a mando dele, claro. Deixei-o entreter-se, mas quando entendi que para aprendizagem - até do poder dos nossos gestos - já bastava, mandei-o parar. Digo mandei, porque devo ter usado de um modo autoritário, de que ele não gostou. Deu um berro, ameaçou continuar. "Mau, mau, olha que o Avô zanga-se!", disse-lhe. Reparei em que reprimiu lágrimas que me diriam mágoa, e logo se empertigou. Cruzou os bracitos, levantou o queixo, mudou o olhar de mágoa para desafio teimoso à minha autoridade zangada. Nem estremeci, não abri a boca. Deixei-me estar, e assim ficámos, olhando fixamente um para o outro. Bem hajam os olhares que não mentem e dizem tudo. Esgotada a raivinha, sorriam-nos os olhos e as bocas. "Goto muito de ti, Avô!" - "E eu sou muito teu amigo!" Talvez por ser o benjamim - ou por não querer obedecer à Mãe (que anda sempre a dizer-lhe que não se diz tu ao Avô) - o Sebastião é o único neto que me trata por tu. A mim, que não desisto de escrever Avô com A.
Solução Paradoxal: Manuel Tainha e a Casa Martins dos Santos (1971-75)
‘Eu sinto-me protagonista desta geração por aplicar os princípios à realidade, à história, à cultura, à natureza, à paisagem, à idiossincrasia do povo português. Não é uma contestação frontal como os grandes da arquitectura moderna. Foi a aplicação dos princípios da realidade concreta dos seus países da sua história. As pessoas são iguais mas também diferentes.’ (entrevista a Manuel Tainha em 11.07.08)
Manuel Tainha (1922-2012), tal como Fernando Távora e Nuno Teotónio Pereira, faz parte do grupo de arquitectos que, a partir dos anos cinquenta do séc. XX, mais se envolveu na crítica da experiência reducionista dos CIAM. Na defesa dos valores locais e regionais como molde para superar a crise do funcionalismo. Postura inspirada pela figura de Francisco Keil do Amaral com quem colaborou nas iniciativas do Sindicato Nacional dos Arquitectos e na revista Arquitectura.
Manuel Tainha foi pioneiro em anunciar o questionamento dos princípios do Estilo Internacional, adoptados dogmaticamente no Congresso de 1948. No final da década de cinquenta era generalizada já uma nova posição atenta à necessidade de uma diferente adequação social e histórica, que correspondeu a um momento de revisão. Este momento, em Portugal foi materializado pelo Inquérito à Arquitectura Popular. Manuel Tainha participou nesta acção, assim como na posterior publicação do livro Arquitectura Popular em Portugal (1961).
Tainha acreditava que o processo de criação arquitectónica nem sempre é compatível com a estrita racionalidade objectivada pelas correntes mais radicais do Movimento Moderno, porque a intuição tem também de ser considerada. A escala colectiva esquece a complexidade humana. E Tainha acreditava que é necessário o reconhecimento da ‘arquitectura sem vanguarda’ e nessa medida a não valorização do trabalho de autor; a defesa das virtudes da arquitectura enquanto ofício artístico, baseado num saber de séculos que liga teoria à prática, não se sobrepondo à procura de uma nova linguagem como objectivo final.
Manuel Tainha desenvolveu também actividade no campo da escrita, do ensino e da organização profissional dos arquitectos. Colaborou na revista Arquitectura – importante órgão de comunicação e compreensão da arquitectura até aos anos setenta. E revelou, na década de cinquenta, Alvar Aalto através da publicação e tradução das suas reflexões escritas. A leitura de Alvar Aalto revelou-lhe os vários caminhos do realismo na constatação da falência das posições mais radicais das vanguardas do Movimento Moderno. Tome-se como exemplo o projecto da Pousada de Santa Bárbara, em Oliveira do Hospital (1955-58 / 1968-71), que evoca esse princípio orgânico de Aalto, ao ir à descoberta de um
funcionalismo dentro da autêntica cultura popular portuguesa. Para Tainha ‘o homem é mais humano quando sente do que quando pensa’ (Manuel Tainha acerca da Escola de Regentes Agrícolas.).
A década de sessenta é, para Manuel Tainha, marcada não só pelo projecto da Pousada, mas também pela Escola Agro-Industrial de Grândola (1959-1963) e pela Escola de Regentes Agrícolas de Évora (1960-1966), que explora já o tema do pátio, tão importante para a Casa Martins dos Santos.
A arquitectura vem, assim para Tainha por meio do desenho. Este método permite uma aproximação, uma apropriação do real e uma representação de posições no espaço, porque o traço contém todo o saber.
‘As casas são sempre pequenas por fora mas são grandes por dentro. Têm espaços, têm grandeza, têm perspectiva.’ , Manuel Tainha, 2008
Na Casa Martins dos Santos, Manuel Tainha aborda a agressividade do sítio com a brutalidade da forma, virando o edifício do avesso, preferindo virar tudo para dentro, para o lugar da vida. Esta foi a resposta formal encontrada depois de meditar e reflectir sobre o sítio que considerava desolador. E assim que surge um problema humano surge a poesia, porque nos projectos de habitação de Tainha é sempre o homem que está em questão.
Manuel Tainha cria, o centro de interesse da casa, ao meio, no jardim para onde tudo converge. Como alternativa dava à família a oportunidade de, ao subirem ao terraço, poderem ver a paisagem mais longínqua que de outra maneira nunca veriam – como a Baía de Cascais, o mar e a Serra de Sintra (que hoje em dia já não se vê). O corpo de betão aparente que emerge do terraço, como se de uma torre se tratasse, serve também para se ver a paisagem por cima das outras casas, da envolvente.
No livro ‘Manuel Tainha, Projectos 1954-2002’, de José Manuel das Neves (Edições ASA, Porto, 2002) lê-se que para a Casa Martins dos Santos, Tainha desenvolve uma acção de projecto segundo uma regra e três paradoxos.
A regra:
Ver por cima dos telhados vizinhos, desenvolvendo um corpo mais alto (a que chama torre) que dá acesso ao terraço, cobertura da casa a partir de uma zona de aposentos onde se pode estar. É o único sítio de onde se desfruta o distante. Abaixo dele só o próximo, muito próximo.
‘Foi interessante precisamente porque se tratou de uma meditação crítica acerca do valor da torre, que é qualquer coisa, que pelo menos até aqui motivou muito a arquitectura de muita gente. Não sei se é pós- modernista, se não é. Mas que hoje parece, mas que interessava a muita gente.’, Manuel Tainha, 2008
Paradoxos:
Do pequeno fazer grande. Sendo pequena em termos reais de área, a casa pretende ser maior pela diversidade e variedade de espaços e ambientes, por dentro e por fora. O espaço exterior do jardim não é espaço restante, é espaço integrante da casa. A casa ocupa toda a área possível do lote. Através da plantação de árvores e de arbustos, propõe-se uma leitura fragmentada da casa de maneira a introduzir o factor de ambiguidade, na leitura do seu tamanho real. A unidade da casa consegue-se exteriormente pelo uso do betão, porque em vez de paredes desmaterializadas e translúcidas sob a luz (como na Escola Agrícola da Herdade da Mitra) encontra-se uma matéria unitária, forte e singular, por negação do que se situa à volta. O volume exterior é maciço e quase cego, as paredes parecem grossas, como se o único modo de sobreviver ao sítio fosse pela protecção, pelo alheamento. A casa vai-se abrindo, a cor torna-se branca em direcção ao jardim.
O que a casa procura no exterior encontra no interior. A paisagem que rodeia o lote é a confusão. Por isso Tainha constrói uma paisagem interior à sua escala e à sua medida. (Neves: 2002)
O buraco do terreno é ponto é a poesia, a harmonia e a vida da casa. Devidamente tratado como jardim, o buraco é uma solução que surge a partir da importância que Tainha dá ao corte como método de projecto. Ora, a utilização do método do corte permite o controlo de continuidades, apurando o encaixe ideal do objecto ao terreno, a posição ideal do edifício em relação à sua envolvente. É a partir do buraco que se regula a composição do lote. As salas, no piso térreo abrem-se e continuam-se pelo jardim, como que aceitando mesmo o muro fronteiro (limite da propriedade) como a sua quarta parede. (Neves: 2002)
‘O que eu faço não é indiferente ao que já fiz, ao que outros fizeram e ao que eu aprendi com o que os outro fizeram. O nosso traço é o que vem de outros traços.’, Manuel Tainha, 2008