SONETOS DE AMOR MORDIDO
INTERVALO - IV
O soneto A Jesus - só mais tarde me dei conta - é, afinal, o par anterior do soneto que me digo na Oração de São Bruno moribundo, como se agora me deparasse com dois biombos japoneses que, um no outro, procuram sentido ou sequência. Pela ordem alfabética que lhes impus, começando o primeiro deles por N será o 13º, e o segundo o 15º (começa por P). Entre eles fica o começado por O, o14º, De Fernando Pessoa a Ofélia. Curiosamente - também só agora reparo - em todos eles reina, inspirador, o mistério inefável do amor. Mistério, sim, digo bem. Nunca nenhum de nós saberá, enquanto por cá andar, o que é essencialmente o amor. Talvez nem seja preciso sabê-lo : a interrogação diz tudo. De Tomás de Aquino a Florbela Espanca, de um modo ou de outro, enquanto vivermos, o amor será a íntima procura do além de nós... A Jesus terão rezado muitos homens e mulheres, e quantas mães choraram, quantas noivas ficaram por casar, para que fosses nosso, ó mar! O amor é sempre o sonho da plenitude possível e impossível, não é possível medi-lo . Volto a referir-me a Pessoa (já não ao Mar Salgado da Mensagem, mas a uma ode de Álvaro de Campos, onde, não sei porquê, sempre associei o amor à noite que se chama) :
Vem, e embala-nos,
vem e afaga-nos,
beija-nos silenciosamente na fronte,
tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
senão por uma diferença na alma
e um vago soluço partindo melodiosamente
do antiquíssimo de nós
onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
soleníssima e cheia
de uma oculta vontade de soluçar,
talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
e todos os gestos não saem do nosso corpo
e só alcançamos onde o nosso braço chega,
e só vemos até onde chega o nosso olhar.
Fernando talvez nunca encontrasse Ofélia à sua medida, nem para além do alcance do seu braço, nem como Ricardo Reis, em Saramago, encontra impossivelmente Lídia ou se debruça sobre Marcenda. Mas na solidão sentiu a vocação do amor, esse inexplicável que nasce do antiquíssimo de nós... São Bruno de Colónia, fundador da Ordem da Cartuxa, nasceu por volta de 1030 e morreu a 6 de Outubro de 1101. Apesar de, pela nobreza do nascimento, pelo prestígio intelectual e pelo respeito que lhe granjeava a sabedoria de uma vida exemplar, ter podido subir na hierarquia clerical e social, foi mais tentado pela contemptatio mundi, e escolheu a via do silêncio e do isolamento monástico. Foi na Chartreuse (Grenoble, sul de França) que, com seis companheiros fundou a primeira cartuxa, designação derivada daquele topónimo. Vidas estranhas ao mundo, os amores cartuxos procuram, no silêncio de Deus, o encontro de todos os humanos com o seu Senhor. Traduzo livremente os passos iniciais de uma oração atribuída a São Bruno:
A Ti, que és o meu Senhor,
cuja vontade se prefere à minha,
não me é possível encontrar
palavras a contento
para te dizer minha oração...
Escuta o meu grito de silêncio
suplicante como clamor imenso,
Tu, de quem Tu só me constituis servo.
Rogo-te, peço, insisto:
Que venha a mim o teu favor!
Nenhum bem da terra almejo,
só te suplico o mais que pedir se pode,
só Te peço a Ti...
É sempre difícil falar do silêncio. Doloroso falar com o silêncio de Deus. Mas talvez a noite seja a habitação do amor inexplicável. E ponho na boca calada de São Bruno, estes versos ainda de Álvaro de Campos:
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
mão fresca sobre a testa em febre dos humildes
sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Todos esses versos, incluindo aqueles meus três sonetos, dizem afinal que a nossa humana vocação é o socorro calado do amor. No íntimo do silêncio se abrirão as flores.
Camilo Martins de Oliveira