Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Para uns, a maior de todas as artes. Para outros, a mais perigosa.
O sublime, o arrebatamento, o êxtase que pode alcançar, a espiritualidade e transcendência que dela pode emanar, as sensações e sentimentos impessoais, intransmissíveis e insubstituíveis que transporta e transmite, a sua linguagem metafísica e emoções ultra-humanas, a alegria e tristeza que nela existem em simultâneo, a sua harmonia e acesso espiritual nas instâncias superiores da inteligência, fazem da música uma arte maior, a maior de todas as artes, para muitos. Ultrapassa-nos como realidade artística, intelectual e erudita de feição humanista, condizente com as belas artes, com uma cultura de eleição, superior e não determinista, tornando-se inalcançável, quando não incompreensível na sua plenitude, que ao mesmo tempo nos preenche plenamente, compensando-nos e maravilhando-nos objetiva e subjetivamente, dado o seu lado celestial, divino e sublime.
Essa vertente sublime, transcendente, inalcançável e inultrapassável, torna-a incapaz de ser formatada ou delimitada, dada a sua infinitude não controlável, nem palpável, a sua imaterialidade. É uma negação da matéria física, sem peso, não ocupando espaço, em paralelo com o ar que respiramos ou a língua que falamos. Foge às leis entendíveis da razão, estando para além da razão pura, do estritamente racional, criando e inovando pela intuição, pela emoção, pelo sensível. Essa sua caraterística permanente não passível de formatação ou delimitação torna-a, para muitos outros, perigosa, dado o seu indeterminismo e não sujeição às leis racionais da física e da matéria, suscetível de conduzir a situações não controláveis, de indisciplina ou irracionais, podendo ser uma ameaça para o poder instituído. A que acresce a consciência oceânica de certas experiências pessoais, definidas por uma prática em que o indivíduo mergulha numa realidade envolvente, originando um sentimento eufórico do grupo em fusão ou em sentimento oceânico, com uma perda de perspetiva crítica, em que a música e os jovens são tidos como exemplo de marca.
Desta ambivalência e divergência de opiniões se conclui que se na antiguidade tinha o fim sagrado de reverenciar o Ser Supremo e, em tempos mais recentes, e mesmo atuais, elevar a alma humana às alturas das alturas espirituais e do transcendente, de igual modo se banalizou, vulgarizando-se e massificando-se gerando, por vezes, anseios e interesses tidos como instintivamente menores. Razão pela qual diversos géneros de música nos levam a exteriorizar comportamentos mentais e emocionais específicos.
De tudo isto decorre também o poder dessa substância incorpórea e intangível que se exprime pelo som, que o ser humano não domina...
Mesmo que se defenda que toda a arte é boa porque promove as boas ações, o que nos levaria, desde logo, a tentar definir, se possível, o que é a arte e a não arte, não deixa de ser significativo ser tida, com frequência, como um meio para bons estados mentais, sendo estes um fim compensatório em termos emocionais e existenciais, o que também se aplica à música, como arte, com a particularidade de através de uma música de eleição aspirarmos ao infinito, dada a nossa finitude em relação à profundeza infinita da natureza humana.
Tendo a música uma linguagem metafísica universal e abstrata, é transversal a todos os aspetos do ser humano, na sua capacidade inata de expressar e tornar compreensível o que nos pode ser incompreensível, desaconselhável ou proibido manifestar por palavras, rumo a uma alternativa harmoniosa e interdependente, onde utopia e realidade aliem esforços, permitindo exprimir-nos em liberdade e num diálogo contínuo, assim se reforçando o seu poder e a sua louvação como arte.
É como quando uma pessoa tem de subir cinco degraus baixos e outra pessoa apenas um degrau, mas que é tão alto quanto os outros cinco juntos; a primeira pessoa não irá superar os cinco degraus, como ainda mais cem, mais mil, terá levado uma vida longa e muito extenuante, mas nenhum dos degraus que subiu terá tido um tão grande significado como para a segunda pessoa teve o único degrau, o primeiro, enorme, impossível de subir para as suas forças, para o qual não consegue subir e muito menos ultrapassar.
E ainda neste livro afirma Kafka:
Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo (…), chefe, tio, avô. Só que como pai foste forte de mais para mim (…) tive de aguentar o embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso.
Quantas vezes, pergunto-me, a benevolência é descoberta com o pavor de ver um homem ou uma mulher enormes, severos, de supostas palavras meigas e bondosos olhares, e incapazes de um suave dar-a-mão.
De nós querem obediência, independentemente da mágoa que sempre sentiremos, a de que para eles representamos pouco, sempre pouco face ao amor que lhe dedicámos. Falo de seres de corporalidade de sentires abafante no modo de nos quererem. Julgo que esta carta ao pai, que Kafka escreveu, pode ser uma carta a qualquer ser que muito amamos, e, em quem depositamos uma confiança ilimitada nas suas opiniões tiranas, como aquelas que nos dizem «Há-de servir-te de muito!» às quais se segue o breve sorriso benevolente que afinal tudo dita, até a gratidão que sempre devemos sentir por eles, não obstante a dor que em nós provocam.
As absolutas insensibilidades entre pais e filhos, entre maridos e mulheres, entre irmãos, ou entre amigos, surgem sobretudo devido à necessidade que têm certas pessoas de utilizar uns sobre os outros, o vexame complacente, aquele mesmo que nos pode impedir de ter uma ideia clara deste poder que ajuíza o nosso mundo, e desejam-no falhado no interior, falhado para que só exista a espécie de amor deles sobre nós e da qual só eles tenham domínio.
Observar regras, submissões, sentir a percepção total do desamparo e acreditar que só as mães nos darão mão, é máquina oleada e falsificada por esta gente que tanto nos fez chorar sobretudo por dentro. Depois, depois não há reconciliação possível, por estranho que pareça o sentimento de culpa bem manejado por outros, e, permitido por nós, faz carreira de êxito na humilhação que provoca na nossa fraqueza, na incapacidade de soltarmos duvidas, de nos soltarmos deles.
São afinal gente inimiga do amor, são aqueles que nunca libertam sem negócio.
Desconheço se saberão ou souberam que há que ralhar para que se destrincem as flores e os sentidos de justiça e há que amar com a coragem lúcida da humanidade.
Muito triste se nos torna a vida quando de perto estes seres connosco partilham pão ou cama: muito tristes nos tornaram face às nossas incapacidades de reacção, sobretudo dentro do que julgamos ser o sentido da família ou dos amantes indistintos, e, só tardiamente nela descobrimos que os elementos de violência destas gentes, não são, nem foram, inocentes, pois que afinal não queriam que deles escapássemos já que no controlo deles sobre nós residia o único modo de se afirmarem.
Afinal, um dia olhamos para a nossa mão e nela pouco ou nada se tem a voar. Casamento e pais e esposos e mulheres e irmãos foram carreira absoluta à nossa custa. Os filhos, quantas vezes em aproximação longínqua, optam por continuar em lugarzinhos de onde nos magoem aos poucochinhos, bem egoisticamente e sem qualquer comoção.
Afinal, quantas vezes, a nossa espécie de sossego nos chega apenas num jogo de paciências que perverteu grande parte da vida de todos. Aquela mesma vida, a quem, um dia, a morte, não mentirá desavergonhadamente.
Esta “Carta Ao Pai” escrita por Kafka, descreve esferas de influências de sentires onde não faltam provas de que a culpa é um obscuro caminho de mando, que também leva os atingidos a ficarem retraídos, a calar coisas, até difíceis de confessar a si mesmos.