OLHAR E VER
Anna Netrebko e Piotr Bekzala em «Iolanta» de Tchaikovsky no Met.
23. IOLANTA
Numa destas tardes, colhido por algum cansaço da vista ou do cérebro, pousei o "meu" Le Monde, para cerrar os olhos e escutar a transmissão, directamente do MET, da Iolanta, do Tchaikovsky. Já conhecia o libreto, fui seguindo cegamente o enredo musical - não somente a música, quiçá por me lembrar de, em dia já remoto, ter achado graça a que um compositor russo do séc. XIX (mais ainda, autor das óperas Eugénio Oneguin, e, valha-nos Deus!, Dama de Espadas) se tenha metido com essa história da filha do bom René, rei de Anjou, que, penso, só terá o mesmo nome e título de quem liquidou, por conta de Luís XI, os sonhos e a pessoa de Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, filho de Isabel de Lencastre e Portugal e de seu marido Filipe, o Bom... Em resumo, Iolanta, a ópera, conta esta história: a princesa, cega de nascença, ignora o mal de que padece, sendo, portanto uma invisual feliz e contente. Ibn-Hakia, médico mouro, observa-a e diz a el-rei seu pai que a poderá curar, desde que ela ganhe consciência da sua condição e deseje curar-se: " é insensato considerar o mundo da carne à parte do mundo do espírito, e Iolanta só poderá ver se o seu espírito tiver a ideia de luz e preparar os seus olhos para a receberem..." René recusa-se a revelar à filha o que poderá ser causa de perturbação e dor, mas um nobre visitante cai inesperadamente apaixonado por Iolanta, fala-lhe de flores que esta não vê... E ela deseja tanto vê-las que se cura. O artigo que eu lia em Le Monde intitulava-se Les vertiges du transhumanisme. A expressão trans-humanismo foi criada por Julian Huxley, biólogo evolucionista - e irmão de Aldous Huxley, o autor de Brave New World - que escreveu I believe in transhumanism: once there are enough people who can truly say that, the human species will be on the threshold of a new kind of existence, as diferent from ours as ours is from that of the Peking man. It will at last be conciously fulfilling its real destiny. (New Bottles for new Wine, Londres, Chatto and Windus, 1957). Este novo tipo de existência - que ainda não sabemos bem, bem, o que é, será, ou poderá ser - tem sido explosivamente projectado, de forma ficcional, previsional e hipotética, por diversos cientistas e investigadores, nas mais diferentes áreas do pensar e saber humano... Mas, no princípio, está sempre a convicção de que o ser humano se pode transcender, tem a capacidade necessária e suficiente para ultrapassar a sua condição. O título do longo artigo publicado no suplemento Culture&Idées do Monde de 14 de fevereiro é provocador: Fabriquer l´humain de demain. Em subtítulo explica que «o transhumanismo promete o advento de um homem "aumentado", designadamente graças à inteligência artificial »... E, em caixa, destaca que «a Califórnia (Silicon Valley) está mergulhada na convicção de que o homem vai melhorar a máquina, e a máquina melhorar o homem.» E Corine Lesnes, a autora do artigo, começa-o assim: Se tivéssemos de resumir a filosofia transhumanista numa só ideia, que fosse a mais extrema mas também a mais cativante, seria esta: um dia, o homem já não será um mamífero. Libertar-se-á do seu corpo, será apenas um com o computador e, graças à inteligência artificial, terá acesso à imortalidade. Subjacente a esta utopia, está a presunção de que a conservação indefinida da vida humana é, afinal, tão somente um problema de manutenção, cuja solução ficará ao alcance dos novos métodos de detecção de defeitos e doenças, dos implantes de órgãos artificiais, das modificações genéticas. Quanto a estas últimas, recordo que, recentemente, surgiu um debate público, no Reino Unido (cf. The Spectator de 2/2/2015 e The Economist de 7/2) sobre a proposta legislativa de se autorizar a fecundação in vitro com três ADN, sendo objectivo de tal técnica introduzir uma modificação no genoma da descendência, por exemplo, de uma mulher com mitocôndrias afectadas, retirando o núcleo dum seu ovócito saudável para o colocar no ovócito de outra com mitocôndrias saudáveis. A proposta foi aprovada, na Câmara dos Comuns, por 382 votos a favor e 128 contra. Nesta, como em muitas outras questões que hoje se põem à consciência humana, o nosso juízo ético é desafiado pela confrontação com realidades e referências novas, de fora, portanto, da cultura em que fomos criados. Pela nossa sabedoria tradicional podemos discutir e pronunciar-nos sobre o aborto e a eutanásia, por exemplo, cada um de nós tem, sobre a matéria, uma posição claramente definida e até matizada por conceitos, referências e interpretações que, mesmo quando divergem, partem de um conhecimento comum. Todavia, parece-me que, perante possibilidades novas, quiçá inesperadas, a nossa consciência deve seguir o conselho do médico de Iolanta, isto é, não cair na tentação da cegueira, para continuar ignorantemente feliz e contente, mas compreender que ao nosso espírito cumpre procurar a luz. E nem só no campo da bioética se levantam ou colocam questões. A presunção de imortalidade ou, simplesmente, a eventualidade de serem cada vez mais possivelmente longas as nossas vidas trazem também interrogações sobre a igualdade e justiça relativa das condições e oportunidades de acesso ao benefício das novas circunstâncias científicas e tecnológicas, num mundo onde ainda são infelizmente numerosos os exemplos e casos de miséria e doença entre os menos favorecidos, isto é, de populações inteiras vitimadas por maleitas e epidemias a que o outro mundo (o nosso) já escapa. E isto em tempos de afrontamentos de culturas e civilizações, de preconceitos e atitudes de ignorância ou esquecimento dos outros. É necessário e urgente desenvolver-se uma cultura de responsabilidade num processo de globalização com polos de progresso distintos e desiguais, de modo a evitar-se um calamitoso crescimento das desigualdades, a submissão injusta e cega de multidões a elites de poderosos ou o privilégio do isolamento destes em circunstâncias onde a substituição do homem pela máquina produzirá mais desemprego e pobreza para muitos. Essa indispensável cultura da responsabilidade não se refere apenas a reflexões éticas (e jurídicas) sobre o caminhar da investigação científica e suas aplicações consequentes. Ela radica numa preocupação mais humana e funda com o esteio das nossas atitudes, uns para com os outros : a crise de valores, de que tanto se fala por aí, mais não é do que a inadequação de preconceitos antigos às realidades adventícias, não só da inovação científica e tecnológica, como dos desafios ao convívio humano, desde o plano familiar até à proximidade crescente de povos e culturas, no espaço e no tempo. Abordei esta questão nas minhas crónicas sobre "preconceito e pluralidade". Sublinho agora a extrema perigosidade de insistirmos em atitudes e comportamentos de cegueira ao outro e afrontamento, como infelizmente alguns dos nossos gurus vão repetidamente insistindo, quando se pronunciam, incondicionalmente e sem procura ousada de diálogo, sobre as dívidas ditas soberanas, o Islão, islamismo e terrorismo, etc... A persistência arrogante na afirmação da superioridade de conceitos (e preconceitos) culturais, religiosos, políticos ou ideológicos - que quase sempre surgem como elementos de identificação e diferenciação - está mais próxima de arriscadas ameaças "`a la Poutine", do que da sensatez sábia do papa Francisco. O que abriu os olhos a Iolanta - e lhe deu luz - foi o amor.
Camilo Martins de Oliveira