Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Batem à porta do meu gabinete. Respondendo ao "Entre!", duas cabeças, uma por detrás doutra, quase sobrepostas, surgem na fresta da porta entreaberta. A mais alta traz um olhar azul, incipientemente irónico, quando nele brilha o sorriso que ela também traz nos lábios, e cobre-se de cabelo loiro, escorreito e arrumado. A menos alta (sabemos que, numa nossa idade, todos gostamos de ser mais crescidos) franze um sobrolho que não esconde a ternura escura dos olhos, sob um cabelo de crina rija e remoinhos. Visitam-me a Inês e o Tomás, perguntam em uníssono "Podemos, Avô?". Não lhes dou licença, abro-lhes os braços... Logo a menina pergunta ainda: "O Avô está a escrever? Posso ver o que é?" - "Nunca te disseram que é feio ser cusca? Porque é que queres saber o que escrevo?" - "Então se o Avô não é curioso, porque é que tem tantos livros? Não os lê?" Diz então o Tomás: "Pois.. E se o Avô também escreve, não é para o Avô ler, pois não? O Avô já leu estes livros todos?" - "Li quase todos, quer dizer, há muitos que li por inteiro, outros só em parte, e mais uns tantos que só consultei... Depende do gosto, do interesse, do tempo que se tem... Qualquer livro é como uma conversa, nós não conversamos da mesma maneira com toda a gente, sentimo-nos mais à vontade com umas pessoas do que com outras, sei lá, tudo isso tem que ver com mais ou menos simpatia, entendimento, confiança... E passa-se o mesmo com os livros!" - "Mas porque é que o Avô tem tantos livros?" - "Olhem: não sei se é por vício ou por virtude..." - " O que é vício e o que é virtude?" - "Diz-se que vício é um hábito bom, e virtude um hábito mau" - "O que é um hábito?" - "É um comportamento que repete os mesmos actos, às vezes até sem querermos..." - "E o Avô não sabe se comprar livros é um hábito bom ou um hábito mau?" - "Bem... Sei e não sei..." - "O Avô está sempre a dizer que sabe e não sabe... E nós é que ficamos sem saber!" - Então explico: para mim, a diferença entre vício e virtude não é, propriamente, a de que, sendo ambos hábitos, um seja necessariamente mau e outra boa. Mas penso que todos nós devemos aprender a ser senhores dos nossos actos, isto é, saber que os fazemos e ter a coragem de responder por eles. Quando se trata de hábitos, nem sempre nos damos bem conta do que estamos a fazer... Como estes netos já trabalham com computadores, posso dizer-lhes que também uma pessoa está muitas vezes programada para fazer certas coisas, desta ou daquela maneira. Claro que a maioria dessas coisas começaram a ser feitas e repetidas porque escolhemos fazê-las, pensando ou sabendo logo que eram boas ou más. Mas também nos enganamos, e só mais tarde descobrimos que, se calhar, tal ou tal hábito não é bom, ou não é tão bom como gostaríamos que ele fosse... E podemos corrigir-nos, ou evitar fazer uma coisa habitual, pelo menos dessa vez, porque não será assim tão boa... Como assim é, o vício será comportamento que não controlamos, que não sabemos gerir; e virtude é sempre a possibilidade de nos habituarmos a fazer melhor ou de nos recusarmos a fazer isto ou aquilo, aqui e agora. Quando o Avô compra livros, nem sempre pensa bem se valerá a pena ter este ou aquele, se terá mesmo tempo para o ler, ou se será bom o que dele espera: nessas alturas é vício... - " Estamos a perceber por que é que o Avô diz que sabe e não sabe..." diz o Tomás. E logo a Inês : "Mas o Avô precisou de tantos livros para saber isso?" E o velho manhoso concluiu: "Talvez não precisasse, mas ajudaram muito..." - Riram-se (ou sorriram só?): "O Avô arranja desculpa para tudo..."
Alcina do Aido e Maria Gertrudes Bastos, suas antigas estagiárias, recordam-se:
Uma preocupação que nos procurava incutir com a maior ênfase era a necessidade de, nas vésperas de uma lição em que se previa a realização de uma certa experiência, executá-la com o maior cuidado, testando todo o material até ao último pormenor, na tentativa de evitar qualquer falha que pusesse em risco a conclusão que se pretendia tirar.
Os antigos alunos deste grande professor de Físico-Químicas do Liceu Normal Pedro Nunes, nomeadamente os que estudaram os seus textos sobre pedagogia e didáctica, reconhecem-lhe uma raríssima capacidade no método de expor ao longo dos 42 anos que tão extraordinariamente leccionou. Rómulo de Carvalho numa Palestra cujo tema era subordinado à Física como objecto de ensino, dizia:
«Por vezes tomam-se como sinónimas as expressões método indutivo e método experimental. Não nos parece nada razoável esta sinonímia na metodologia pedagógica da Física em virtude de ser a experiência uma das vias, e não a única, que preparam o espírito para a indução.»
E mais adiante
«Somos nós, os que ensinamos, com as palavras que escolhemos e proferimos com as nossas hábeis insinuações, com as nossas escamoteações oportunas, com o nosso conhecimento sagaz do aluno e das suas circunstâncias.
Nós somos, em última análise, o método, o processo a forma e o modo.»
Meu admirável Mestre, esta é a ideia que se alia à preocupação de despertar o espírito crítico nos alunos. Aliás desde os anos 80 que muitos são os que defendem que a função do professor é apenas a de «criar situações de aprendizagem» e se têm atenuado os conceitos de investigação e ensino já que toda a aprendizagem é descoberta.
E a descoberta da palavra contida no átomo só a poesia a conhece, e quando a conhece tão profundamente como o Poeta António Gedeão conhecia, eis
Lição sobre a água:
Este líquido é água. Quando pura é inodora, insípida e incolor. Reduzida a vapor, sob tensão e a alta temperatura, move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de vapor.
(…)Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão, sob um luar gomoso e branco de camélia, apareceu a boiar o cadáver de Ofélia com um nenúfar na mão.
E eis que
eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
E assim Professor e Poeta souberam nomear o mundo e escutar-lhe as pausas, os amores, as aflições, e as pastoras e os pastores inocentes, com sinais de lume, acenderam telas como docentes nas mãos de alunos.
Capa do nº 1 da revista «Presença» - Literatura Viva.
Uma obra de arte vale por si, assumindo fundamentos de arte “pura” (em função dos seus próprios critérios e sem precisar de validação exógena) e não de arte “para” (condicionada e ao serviço de qualquer coisa). Um artista para quem o fim principal não é a arte, é uma pessoa alheada da arte e que por isso não pode realizá-la. A arte tem de ser um fim em si, a arte pela arte, não um meio ou instrumento para um fim. Este não aceitar ao serviço de qualquer coisa, conduz-nos a perceber que a razão de ser de toda a arte é estar permanentemente a ir mais além e a vencer limites, como demanda do inacessível, do inatingível e do infinito. É uma busca incessante e permanente do que não há. Da arquitetura, cinema, escrita, escultura, música, pintura, poesia, romance e teatro que não há. Uma formulação de porquês, geradores de outros porquês, uma nova linguagem trabalhada, demandando e criando novos desígnios e fantasias, uma experimentação constante e tentativa de superar limites, à revelia e em rutura com as normas vigentes. Num Estado democrático e de Direito a significância da arte depende essencialmente da emoção que provoca, sendo as obras de arte mais importantes que a ideologia e a teoria, inexistindo imposição oficial de apetências culturais ou gostos estéticos, acolhendo políticas de cultura plurais, sem dogmas. Daí que numa perspetiva cultural não subordinada a análises intelectuais exteriores à criação artística, se tenha como tendencioso catalogar manifestações artísticas como “conservadoras” e “revolucionárias”, dado não serem forçosamente coincidentes os critérios de mérito artístico e os de natureza política. Pode ser-se politicamente “conservador”, senão mesmo “reacionário”, e culturalmente “revolucionário”, como há quem o exemplifique com o anti-semitismo de Wagner, as afinidades pró-fascistas de vários mentores do futurismo italiano e as simpatias autoritárias de Céline e Dali, por confronto com o legado inovador, perene e vanguardista da sua música, pintura e escrita. Como se pode ser culturalmente “conservador” e politicamente “revolucionário”, sendo dado como exemplo a apologia dos cânones ideológicos dos neo-realistas e do realismo socialista, por oposição com o alegado vanguardismo revolucionário da sua mensagem, defendido por muitos, nomeadamente por grupos radicais de esquerda e de extrema-esquerda. Sendo o “reacionário”, o “revolucionário”, o “conservacionismo” e a “mudança” valores culturais de permanente compromisso e conflito, por maioria de razão se compreende que a arte é um fim em si mesmo, valendo a obra de arte por si, independentemente das opções filosóficas, ideológicas, políticas ou religiosas do seu autor, mediador, curadores de museus, galeristas e negociantes, ou da política cultural e pública seguida. Num regime autoritário, é tarefa estadual a definição de dogmas e regras ideológicas a que artistas e arte se devem submeter, via imposição de uma arte oficial, tendo a arte como um meio ou instrumento de transformar a sociedade, tendo como fim a necessidade de construir um homem novo, como o queriam os nazis alemães e bolcheviques russos, apologistas do homem ariano e do homem proletário. A propaganda, ao serviço da nova arte, transmitia uma mensagem absoluta, válida e universal, sem críticas e inverdades, fazendo o culto da personalidade, através de uma adesão a uma ideologia e linha partidária autoritariamente estabelecida, de que são exemplos a nazificação da cultura, no regime nazi, e a planificação da cultura, na antiga União Soviética. Este propósito de transformar a sociedade, não é em si mesmo artístico ou estético, mas sim moral e político, na medida em que admitia uma ideia pré-formada da realidade, não transmitindo a realidade, mas a ideia que certos doutrinários entendiam que ela era e devia ser. A realidade era objetiva, uma só e igual para todos. Assim, para os escritores neo-realistas a literatura e a arte eram um meio ou instrumento de transformar a sociedade. Um instrumento ou um meio para um fim, que não a arte. Ao quererem comunicar a realidade e a sua transformação dialética, transmitiam a doutrina e a ideologia que certos teóricos e ideólogos tinham como realidade, transmitindo em segunda mão o que outros diziam e escreviam. A arte, na sua essência, convida-nos a sentir uma emoção, não a concordar com uma doutrina, ideologia ou teoria. Quando consideramos a arte como um fim em si e nos emociona mais profundamente do que como um meio para fins utilitários e deterministas, temos consciência de que há nela algo de superior na sua significância e realidade última, do universal no particular, em que o Tempo fará uma destrinça entre o que resiste ao passar dos anos e o que nunca passou de efémero.
Já evocamos aqui dois cinquentenários – o do Teatro Villaret, fundado e dirigido por Raul Solnado, e o da companhia do Teatro do Nosso Tempo, fundada e dirigida por Jacinto Ramos. Agora, também 50 anos decorridos, é oportuna uma referência à companhia do Teatro Estúdio de Lisboa (TEL), fundada e dirigida por Helena Félix e Luzia Maria Martins, no desaparecido Teatro Vasco Santana.
Mas não deixa de ser também oportuna a referência ao Teatro em si, hoje uma ruina situada em zona referencial de Lisboa mas que, há meio século e durante largos anos, valorizou o meio e a cultura teatral. Lá se instalou e se manteve, com efeito, o TEL, que se destacaria pela exigência de repertórios: e tanto mais de assinalar que a própria implantação do Teatro e da companhia no que era, na altura, a Feira Popular de Lisboa, de certo modo contrastava e valorizava, da melhor maneira, o teor especificamente popular do recinto e das suas atividades.
Evidentemente, a saudosa Feira Popular e as respetivas atividade, eram obviamente legítimas e de qualidade, e constituíram, durante dezenas de anos, uma faceta relevante da vida da cidade: mas não tão exigente, no ponto de vista artístico e cultural, como sempre foi o repertório e os elencos e encenações do TEL.
Basta recordar algumas marcas do repertório do TEL, mantidas, sempre com exigência, durante larguíssimos anos: peças de Luís Sttau Monteiro, Fernando Luso Soares, Prista Monteiro, da própria Luzia Maria Martins, para referir autores portugueses contemporâneos. E peças de Maxell Andersen, Arnold Wesker, Anton Tchekov, David Story, Terence Rattigan, Jean Giraudoux, John Osborne, Peter Shaffer, Roger Vitrac, Arthur Miller, Marguerite Duras, entre tantos mais.
Isto consubstância um repertório dominantemente contemporâneo, numa altura em que o teatro moderno enfrentava os problemas bem conhecidos.
Importa referir entretanto que as duas animadoras do TEL chegaram à Feira Popular com um currículo e uma preparação cultural notável pela abrangência e pela própria internacionalização. Assim, Helena Félix permaneceu mais de 10 anos na Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, o que implica um registo de qualidade que hoje já ninguém contesta. E de 1961 a 1964 completou em Londres uma formação artística de grande qualidade.
E quanto às encenações de Luzia Maria Martins, que trabalhou em Londres e foi também dramaturga, apraz-me recuperar algumas das numerosas análises críticas que ao longo dos anos, fui fazendo.
Assim em “A Nossa Cidade” de Thorton Wilder, salientei designadamente as soluções encontradas para as expressões de mímica, sempre difíceis; em “A Louca de Chaillot” de Jean Giraudoux, salientei a interpretação e o “muito feliz jogo de marcações”; ou “a marcação sempre correta, sempre engenhosa” na “Noite de Verão” de Ted Williams; ou a “interligação entre os diversos planos (de Vitor ou as Crianças no Poder de Roger Vitrac) menosprezando assim um pouco a heterogeneidade surrealista da obra”. E tantas mais.
Pois, como escrevi numa crítica à peça “Lar” de David Storey, “Helena Félix e Luzia Maria Martins, à frente do Teatro Estúdio de Lisboa, teimam prosseguir uma verdadeira obra de renovação cultural”.
As campainhas de Westminster soaram hoje pelas 2.30pm para o inicial Meeting of The House. Com o governo conservador a ultimar os detalhes do programa a apresentar no Queen’s Speech durante o State Opening agendado para 27 May, os 650 representantes do reino reúnem para o sufrágio do Speaker e a proclamação dos resultados da General Election.
Dado a reter nos números da surpreendente vitória Tory é o aumento da participação eleitoral, que sobe de 65.1% em 2010 para 66.2% em 2015. — Chérie. A qui il a été beaucoup donné, …il sera beaucoup demandé! O Prime Minister David Cameron elabora agora sobre o sol ideológico do “blue collar conservatism.” A novo executivo refrescado a metade indica que todas as decisões se tomem segundo os valores do "the real party of working people." — Hmm. A good example is the best sermon. London acolhe o RHS Chelsea Flower Show. Regressado dos antípodas, Harry of Wales visita a colorida, imaginativa e algo excêntrica mostra da Royal Horticultural Society que amanhã abre portas aos amantes da jardinagem. Sob tormentoso assombramento do Isis está Palmyra nos portões da Greece to Persia. Por momentos em idêntico trilho de lunática aniquilação histórica, Her Majesty homenageia em June os caídos nos campos de morte nazi durante a deslocação oficial a Germany.
A Spring atmosphere with sprinkled showers em dia da reabertura das Houses of Parliament para nova legislatura de cinco anos. A reunião envolve a pompa e circunstância da tradição, guarnecida até do suave bom humor do Prime Minister e da Interim Leader of HM Opposition. Tanto o PM David Cameron, como a MP Harriet Harman cumprimentam um também reeleito Speaker RH John Bercow no first sitting.
A eleição do Chair ocorre após o Father of the House receber na câmara o Black Rod e com o Clerk se deslocar à House of Lords. Como membro de mais longo serviço, cabe a Sir Gerald Kaufman e aos frontbenchers nos lados direito e esquerdo das bancadas, escoltados de outros deputados que os queiram acompanhar, ali ouvir a Royal Commission que os exorta a escolher o seu primus inter pares. Lançado o chapéu para a arena, o ex Chairman da Federation of Conservative Students, London Borough Councillor, Shadow Chief Secretary to the Treasury e Secretary of the All Party group on Human Rights é pacificamente reconduzido como “chairman during debates in the House of Commons."
Conturbada continua a situação no Middle East. Os jiahdistas conquistaram Ramadi, a escassa dezena de milhas de Baghdad, em pleno coração do Irak e marco da Mesopotamian Campaign das British Forces durante a WWar I. Na frente da propaganda, porém, as notícias não são melhores. Após a destruição de Nimrud nos planaltos de Nineveh, o Isis ameaça agora implodir Palmyra nos corredores de pedras no deserto da Libya conhecidos como The silk road. Trata-se de património da humanidade, como tal classificado pela Unesco mas sem que o selo tenha quaisquer efeitos no momento de perigo. E a comparação vem à memória. Alguém em high places recorda a algazarra global em torno dos poços petrolíferos no Kowait de 1990? E as armas do President Sadham Hussein em 2003? — Divers weights, and divers measures, both of them are alike abomination to the Lord.
«Graça Morais – Territórios da Memória» de Jorge da Costa (Universidade Católica Editora, Porto, 2014) permite-nos ter acesso à introdução a uma obra rica e multifacetada que merece ser melhor conhecida. A recente homenagem em Bragança foi oportunidade para um justíssimo reconhecimento.
PARA LÁ DO MARÃO Ao passarmos o Marão tivemos a sensação nítida de que atravessávamos a fronteira natural. Talvez por ser abril, e sem que pudéssemos suspeitar depois de uma viagem calma desde Lisboa, fomos atingidos por uma copiosa e intensa chuva, que se tornaria menos dura à medida que nos aproximámos de Bragança. É certo que já fiz antes o Marão com várias meteorologias e a diversas horas do dia e da noite, mas naquele início de tarde senti especialmente a separação entre o litoral e o interior, que Orlando Ribeiro considerou estrutural para se compreender o território português. Em Marânus lembramo-nos naturalmente de Teixeira de Pascoaes, mas em entrando no Reino Maravilhoso é Miguel Torga que nos guia, com as suas palavras propositadamente angulosas e incertas. «Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite». E se ia a convite de Graça Morais, ao encontro dos segredos da sua arte, voltei a compreender como as mulheres que pinta se misturam com a terra inóspita, revelando a dolorosa beleza da terra e a luta por ela e com ela. «Para cá do Marão, mandam os que cá estão!... Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?». É o Reino Maravilhoso que se nos apresenta. «Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas»…
VER E SENTIR A OBRA Quando vemos e sentimos a obra de Graça Morais, compreendemos que tem tudo a ver com este Reino e as suas gentes, os seus dramas e também as suas esperanças. António Mega Ferreira, com rara premonição e arguto saber, falou-nos da obra artística de Graça referindo-a como «linhas de terra». A linha é um caminho, um sulco, o resultado da lavra, um sentido de orientação – elementos que singularizam a obra da artista. E a terra representa a ligação maternal às raízes, às origens, à Terra-Mãe. De facto, a originalidade da obra tem a ver com estes dois elementos, que constituem pontos de partida, referências, abertura de horizontes. A terra não é sinal de fechamento, mas de ampla compreensão cósmica. Para além da visibilidade imediata da obra de Graça Morais, o certo é que o tempo se encarregará de salientar e projetar a sua força original – compreendendo o seu humanismo universalista. A produção marca a cultura portuguesa contemporânea – a um tempo lírica e trágica, para usar a expressão de Unamuno, prolongada por Pascoaes e Torga. João Pinharanda tem razão: «uma verdadeira obra de pesquisa. Não no puro sentido da pesquisa plástica, mas no sentido da procura de uma identificação cultural, pessoal e nacional». A mulher e a terra ganham especial sentido. É a afirmação do feminino na arte portuguesa – quer na eficácia do seu imaginário, quer na estratégia visual. Bernardo Pinto de Almeida entendeu-o melhor que ninguém. E ouvimos necessariamente Agustina, tão presente em diálogo com a obra de Graça. «Contudo era nas mulheres que as metamorfoses se manifestavam mais». Veja-se o belíssimo documentário de Joana Morais que tem por fantástico título «Na cabeça de uma mulher está a história de uma aldeia». É o cerne da educação que aqui está, numa transmissão incomparável da aprendizagem. Daí, aliás, a originalíssima relação com a Literatura. Estamos por certo diante da pintora que melhor revela a vitalidade e a força do diálogo com a literatura portuguesa nos dias de hoje. Ana Marques Gastão e Raquel Henriques da Silva preparam neste domínio uma mostra que a muitos surpreenderá pela força e originalidade. Lembre-se a lista: «Ano de 1993» de José Saramago; «Nenhum Sítio» de Manuel António Pina; «Musa», «Orpheu e Eurydice» e «O Anjo de Timor» de Sophia de Mello Breyner Andresen; «Os Nós e os Laços» de António Alçada Batista; «Um Reino Maravilhoso» de Miguel Torga; «As Metamorfoses» de Agustina Bessa-Luís, com a natural presença de Ovídio; «O Príncipe Imperfeito» de Clara Pinto Correia; «Bestiário» de António Osório; e «Depois de Ver» de Pedro Tamen… O desenho, a pintura e as palavras ligam-se espontaneamente com uma especial determinação.
COMPREENSÃO DE PORTUGAL A chave está em que Graça Morais compreende bem Portugal, ao ligar terra e mar, as mulheres e os homens. As mulheres na pintura da autora são a razão e a origem do mundo – no fundo, é a terra por contraponto ao mar (e os seus «olhos azuis»), entendido este como o horizonte dos homens, a sua ânsia e a sua perdição (como salienta Jorge da Costa). E assim chegamos às «Escolhidas», que Manuel Hermínio Monteiro define e Margarida Gil soube interpretar superiormente, em nome de tarefas cíclicas e ancestrais. «As Escolhidas são mulheres a quem a dureza do meio, a procriação, a manutenção do lume, a guarda da memória e as claraboias dos quartos obscuros outorgaram uma vida legível nos traços dos seus rostos (diz M.H.M.). Habitualmente falam pouco. Observam com perspicácia cada interlocutor. Raramente se queixam. Conhecem de cor os feitios de uma terra desde a geada dos lameiros à secura das searas»… E se falei do universalismo que perpassa na obra de Graça Morais, a verdade é que devemos ainda lembrar Cabo Verde, os crioulos e a gente que os fala. Lembrem-se as palavras: «Nhâ terra longe» ou «Sôdade» - além da presença de «Chuva braba» de Manuel Lopes. «Serei capaz de ter uma visão sincera desta natureza? Sente-se o espírito do lugar e a renovada capacidade de explorar a cabeça e o rosto humano. Cabo Verde foi oportunidade para, saindo das raízes, poder compreender melhor a essência das raízes de uma humanidade diversa e comum».
UMA TENSÃO ENTRE VIDA E MORTE Em Graça Morais sente-se, desde os primeiros trabalhos, a tensão entre os dois grandes mitos existenciais: o amor e a morte, eros e tanatos, chegando gradualmente e com intensidade quase mítica ao sagrado. E o drama das mulheres ajuda especialmente. Peguemos nas «Geografias do Sagrado» - e no lado verdadeiro de quem regressa à terra e às suas raízes – e nos hábitos de comunhão das peregrinações e do encontro nas festas. As máscaras dos caretos significam a identidade e a diferença de quem protagoniza essa partilha de preocupações, angústias e esperanças. Há uma vivência, em imersão total, das tradições e dos costumes. Transcendência e imanência como que se fundem. Longe do folclorismo, a pintora procura o sentido do espírito, entrando no «mito dos rituais» (como bem viu Fernando Pernes). «As Escolhidas», «Metamorfoses», «Deusas da Montanha» encontram-se. E, como presenciámos, na representação no Museu Abade de Baçal, onde a pintura antiga dialoga com as representações de Graça Morais, há o testemunho enigmático das mulheres que vivem a dominação e, gradualmente, vão conquistando a autonomia e a emancipação… Estas são, afinal, «as linhas da terra»…
Gostei muito de que os pais dele tivessem dado esse nome ao "meu" neto Tomás. Noutras línguas, ele é, primeiro, o nome do apóstolo da dúvida, aquele que, em português, se chama Tomé. Na língua de Camões, todavia, os santos Tomás são dois ingleses, ambos mártires por oposição à propensão totalitária do poder político (do rei), o de Cantuária e o Moro. E, sobretudo ainda, o de Aquino, italiano, dominicano e Doutor da Igreja. É deste São Tomás que mais falo ao neto, aproveitei a folga do nome - o pequeno, nascido e baptizado em Londres, filho de pai belga, e vivendo agora em França, terá de ser Thomas, Tomás para mim - para o "identificar" com esse mendicante de Deus, que sempre me pareceu a versão revista de São Tomé: bem aventurados os que não viram mas acreditaram. Mais ainda: gosto de pensar no "meu" Tomás, como G. K. Chesterton pensou e disse do Aquinense: Há algo, na personalidade de S. Tomás, que é tão impossível de dissimular como a luz do dia numa casa grande de janelas abertas. É a envolvência positiva dum espírito em que livremente circulam o ar, a luz, e o quentinho maravilhoso do mundo sensível. Os que entram em religião usam de alguma audácia pessoal para juntar aos seus nomes as mais temíveis evocações dos mistérios da Santíssima Trindade ou da Redenção. Uma monja se dirá "do Espírito Santo" ; um santo porá, às costas do nome João, o "da Cruz". E nós inclinar-nos-íamos a dar a este homem de que falamos o nome de São Tomás do Criador.Os Árabes, que sabem todos os nomes que se podem dar a Deus, sabem também, pelas suas tradições, que há um nome impronunciável, porque diz o próprio Ser, ele mesmo. Esse nome nunca será dito. É como um uivo de silêncio. A proclamação do Absoluto. Talvez nunca qualquer outro homem tivesse estado tão perto de articular esse nome do seu Criador, que se escreve Eu Sou. Quando tinha a idade do Tomás, estudava num colégio em que, todas as manhãs, começávamos as aulas por uma oração de S. Tomás de Aquino ao Criador inefável... E celebrava-se a nossa festa anual no dia do mesmo santo, que então caía a 7 de Março. Sessenta anos depois, a 7 de Março faz o "meu" Tomás a sua profissão de fé. Mais de dois mil anos depois, ele não irá dizer, como S. Tomé tocando as chagas de Cristo , " meu Senhor e meu Deus!", pois que fisicamente não toca nem vê nada. Terá de ser humilde, como S. Tomás de Aquino foi humilde, ao ponto de saber e aceitar saber que, por muito perto que tivesse estado de articular o nome do seu Criador, deste só poderia dizer : Criador inefável, isto é indizível, inexprimível. E assim se tornará, nesse próprio dia, adulto. Não mais a criança que constrói histórias e brinquedos, anseia por pais e familiares consoladores e protectores, fadas benfazejas, ou um deus ainda feito para seu conforto ou à sua imagem e semelhança... Mas, sozinho e livre, o mesmo menino sempre, esse pequenino ser que, crescidinhos, todos somos, cheio dessa saudade do Deus sem nome dizível, o Tomás irá intimamente afirmar a sua fé na esperança de vir a ver esse Eu Sou. Dirá então o seu Credo, como afirmação da sua fé, cuja substância são as coisas que devemos esperar . Como num sim nupcial, quando o amor acredita que avança para o desconhecido, não só por força da sua própria saudade do outro, mas porque sente como e quanto o chama a saudade que o outro tem dele... A nossa vocação religiosa é a saudade que Deus tem de nós, a nossa vida espiritual é esse sim que dizemos ao desconhecido anunciado, ao Quem É, sempre interrogação e demanda, sempre desejo... Afinal, Princesa, também assim sonham os grandes cientistas, aqueles que procuram ir descobrindo as origens, a natureza, e o destino do universo. Deixo-te aqui o último período de The Theory of Everything - The Origin and Fate of the Universe, de Stephen W. Hawking, sobre o porquê do universo: Se encontrarmos resposta a essa questão, conseguiremos a maior vitória da razão humana, porque então descobriremos a mente de Deus... O "meu" querido Tomás inicia agora essa caminhada interior, de mãos dadas com a fé e a esperança que o conduzirão à luz. Porque ousou escolher a companhia do Deus que se chama Eu Sou. Peço-te, a ti, a todos nós - mas para ele, tão especialmente nesta hora - um abraço humano de solidária ternura. Não é fácil ser-se homem sozinho.
As New Towns Inglesas e os Bairros INA-Casa italianos.
‘The implied objective of this line of thought is a nightmare world in which the Leader or some ruling clique controls not only the future but the past. If the Leader says of such and such event, ‘It never happened’ – well, it never happened… This prospect frightens me much more than bombs – and after our experiences of the last few years, that is not a frivolous statement.’, George Orwell, ‘Looking back at the Spanish Civil War’(London, 1943)
A aplicação directa do estilo internacional e da Carta de Atenas na reconstrução das cidades logo após a Segunda Guerra Mundial poderia significar o apagar de memórias, o apagar de identidades. Já a convicção das New Towns Inglesas e dos bairros INA-CASA italianos evidenciam sobretudo o respeito pela orografia e história do local, conservando certas características rurais - a Rua assume-se como espaço canal e a Praça e o Pátio reaparecem.
Assim que a Segunda Guerra Mundial termina, a reconstrução de algumas cidades europeias devastadas foi urgente, nomeadamente em Inglaterra e em Itália. Para uma maior rapidez, economia e eficácia adoptou-se o racionalismo explícito do Estilo Internacional e da Carta de Atenas. Porém, esta difusão fugaz demonstrou-se frágil, sobretudo pelo racionalismo mecanicista que representou – as cidades que se desenvolveram de acordo com este modelo ficaram marcadas pelo Planeamento Funcionalista, ou seja pelo zonamento do seu tecido em funções especializadas, segregadas e controladas a partir da gestão e do investimento público (estas metrópoles modernas foram causa da suburbanização das periferias, da sobrepolarização dos centros e do crescimento vertiginoso dos sistemas de circulação).
Sendo assim, a crítica ao racionalismo mecanicista seguiu a partir de duas linhas de desenvolvimento. Por um lado, o vínculo ao lugar era procurado na cultura histórica e social, dando vida a inquéritos tipomorfológicos acerca das cidades e a uma maior adesão à problemática social. Por outro lado, uma tradição empírica, tendencialmente nórdica e anglo-saxónica, preferia um estudo da adaptação antropológica ao contexto físico sobretudo no que diz respeito aos aspectos topográficos e climáticos.
Em Inglaterra, a herança deixada pelas cidades-jardim, trouxe para este novo pensamento crítico, a vontade de desenhar a cidade através de traçados curvilíneos, da integração dos edifícios (unidades residenciais) em zonas verdes. Esta corrente criticava a Carta de Atenas, essencialmente, pela sua ruptura clara com o passado. Os planos de reconstrução ingleses (concretizados pelas New Towns - Harlow de Frederik Gibberd, 1947-48 e Roehampton de Hubert Bennet, 1952-55), pelo contrário, propunham a inclusão da diversidade que a própria cidade já possuía. Ora, as New Towns, organizam-se em células que permitem um maior contacto da população com os serviços. A humanização destes lugares passa pela adaptação do desenho urbano ao sítio, à topografia, dando importância a questões qualitativas, pensando no cidadão como pessoa e num grupo de cidadãos como uma comunidade social. A construção destes espaços não advem de uma ideia abstracta, mas sim de um propósito social, de serviço, para melhorar a vida do homem comum. Estas inovações tiveram repercussões nos Congressos Internacionais de Arquitectura Moderna (CIAM), levando à sua extinção em 1959.
Em Itália, a necessidade de reconstrução não era tão elevada. Havia, sim, enormes deficiências em edificações, falta de habitação e uma crise política a afirmar-se. Simultaneamente, surgia, neste clima de mudança, um movimento cultural novo – o movimento neo-realista. Este movimento permitia uma nova visão sobre a realidade, aceitando-a e denunciando-a na sua verdade pura. Esta nova visão desenvolveu-se no cinema de Vittorio de Sica, mas também na arquitectura – novas gerações de arquitectos exploravam temas respeitantes à realidade quotidiana, circunstancial, concreta, exprimindo, deste modo, a preferência por formas arquitectónicas populares. Os edifícios adaptavam-se ao sítio, à vivência tradicional, aos materiais mais reconhecíveis (a telha, o tijolo), ao clima (janelas mais pequenas). Estes novos interesses geraram novas referências – estudava-se, agora, atentamente os trabalhos de Wright e de Aalto. A arquitectura neo-realista não se manifestou meramente pontual – os seus mais importantes exemplos dizem respeito a iniciativas do estado coordenadas pelo INA (Instituto Nacional de Habitação). É o programa INA-CASA que origina bairros e unidades residenciais mais reais (por exmplo o bairro INA-CASA de Tiburtino em Roma de Ludovico Quaroni e Mario Ridolfi, 1949-54), construídos segundo ideias que usavam materiais e métodos de construção tradicionais, uma disposição urbana mais humana e uma adaptação climática adequada.
Ora, tanto o exemplo dos bairros ingleses como os italianos, construídos no pós-guerra, rejeitam a ideia de arquitectura baseada numa teoria, e acreditam sim na ideia de arquitectura como processo de transformação. Sempre numa tentativa de aproximar a arquitectura à terra, de a relacionar com o legado histórico e urbano, estabelecendo sempre o compromisso com o lugar.
Anna Netrebko e Piotr Bekzala em «Iolanta» de Tchaikovsky no Met.
23. IOLANTA
Numa destas tardes, colhido por algum cansaço da vista ou do cérebro, pousei o "meu" Le Monde, para cerrar os olhos e escutar a transmissão, directamente do MET, da Iolanta, do Tchaikovsky. Já conhecia o libreto, fui seguindo cegamente o enredo musical - não somente a música, quiçá por me lembrar de, em dia já remoto, ter achado graça a que um compositor russo do séc. XIX (mais ainda, autor das óperas Eugénio Oneguin, e, valha-nos Deus!, Dama de Espadas) se tenha metido com essa história da filha do bom René, rei de Anjou, que, penso, só terá o mesmo nome e título de quem liquidou, por conta de Luís XI, os sonhos e a pessoa de Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, filho de Isabel de Lencastre e Portugal e de seu marido Filipe, o Bom... Em resumo, Iolanta, a ópera, conta esta história: a princesa, cega de nascença, ignora o mal de que padece, sendo, portanto uma invisual feliz e contente. Ibn-Hakia, médico mouro, observa-a e diz a el-rei seu pai que a poderá curar, desde que ela ganhe consciência da sua condição e deseje curar-se: " é insensato considerar o mundo da carne à parte do mundo do espírito, e Iolanta só poderá ver se o seu espírito tiver a ideia de luz e preparar os seus olhos para a receberem..." René recusa-se a revelar à filha o que poderá ser causa de perturbação e dor, mas um nobre visitante cai inesperadamente apaixonado por Iolanta, fala-lhe de flores que esta não vê... E ela deseja tanto vê-las que se cura. O artigo que eu lia em Le Monde intitulava-se Les vertiges du transhumanisme. A expressão trans-humanismo foi criada por Julian Huxley, biólogo evolucionista - e irmão de Aldous Huxley, o autor de Brave New World - que escreveu I believe in transhumanism: once there are enough people who can truly say that, the human species will be on the threshold of a new kind of existence, as diferent from ours as ours is from that of the Peking man. It will at last be conciously fulfilling its real destiny. (New Bottles for new Wine, Londres, Chatto and Windus, 1957). Este novo tipo de existência - que ainda não sabemos bem, bem, o que é, será, ou poderá ser - tem sido explosivamente projectado, de forma ficcional, previsional e hipotética, por diversos cientistas e investigadores, nas mais diferentes áreas do pensar e saber humano... Mas, no princípio, está sempre a convicção de que o ser humano se pode transcender, tem a capacidade necessária e suficiente para ultrapassar a sua condição. O título do longo artigo publicado no suplemento Culture&Idées do Monde de 14 de fevereiro é provocador: Fabriquer l´humain de demain. Em subtítulo explica que «o transhumanismo promete o advento de um homem "aumentado", designadamente graças à inteligência artificial »... E, em caixa, destaca que «a Califórnia (Silicon Valley) está mergulhada na convicção de que o homem vai melhorar a máquina, e a máquina melhorar o homem.» E Corine Lesnes, a autora do artigo, começa-o assim: Se tivéssemos de resumir a filosofia transhumanista numa só ideia, que fosse a mais extrema mas também a mais cativante, seria esta: um dia, o homem já não será um mamífero. Libertar-se-á do seu corpo, será apenas um com o computador e, graças à inteligência artificial, terá acesso à imortalidade. Subjacente a esta utopia, está a presunção de que a conservação indefinida da vida humana é, afinal, tão somente um problema de manutenção, cuja solução ficará ao alcance dos novos métodos de detecção de defeitos e doenças, dos implantes de órgãos artificiais, das modificações genéticas. Quanto a estas últimas, recordo que, recentemente, surgiu um debate público, no Reino Unido (cf. The Spectator de 2/2/2015 e The Economist de 7/2) sobre a proposta legislativa de se autorizar a fecundação in vitro com três ADN, sendo objectivo de tal técnica introduzir uma modificação no genoma da descendência, por exemplo, de uma mulher com mitocôndrias afectadas, retirando o núcleo dum seu ovócito saudável para o colocar no ovócito de outra com mitocôndrias saudáveis. A proposta foi aprovada, na Câmara dos Comuns, por 382 votos a favor e 128 contra. Nesta, como em muitas outras questões que hoje se põem à consciência humana, o nosso juízo ético é desafiado pela confrontação com realidades e referências novas, de fora, portanto, da cultura em que fomos criados. Pela nossa sabedoria tradicional podemos discutir e pronunciar-nos sobre o aborto e a eutanásia, por exemplo, cada um de nós tem, sobre a matéria, uma posição claramente definida e até matizada por conceitos, referências e interpretações que, mesmo quando divergem, partem de um conhecimento comum. Todavia, parece-me que, perante possibilidades novas, quiçá inesperadas, a nossa consciência deve seguir o conselho do médico de Iolanta, isto é, não cair na tentação da cegueira, para continuar ignorantemente feliz e contente, mas compreender que ao nosso espírito cumpre procurar a luz. E nem só no campo da bioética se levantam ou colocam questões. A presunção de imortalidade ou, simplesmente, a eventualidade de serem cada vez mais possivelmente longas as nossas vidas trazem também interrogações sobre a igualdade e justiça relativa das condições e oportunidades de acesso ao benefício das novas circunstâncias científicas e tecnológicas, num mundo onde ainda são infelizmente numerosos os exemplos e casos de miséria e doença entre os menos favorecidos, isto é, de populações inteiras vitimadas por maleitas e epidemias a que o outro mundo (o nosso) já escapa. E isto em tempos de afrontamentos de culturas e civilizações, de preconceitos e atitudes de ignorância ou esquecimento dos outros. É necessário e urgente desenvolver-se uma cultura de responsabilidade num processo de globalização com polos de progresso distintos e desiguais, de modo a evitar-se um calamitoso crescimento das desigualdades, a submissão injusta e cega de multidões a elites de poderosos ou o privilégio do isolamento destes em circunstâncias onde a substituição do homem pela máquina produzirá mais desemprego e pobreza para muitos. Essa indispensável cultura da responsabilidade não se refere apenas a reflexões éticas (e jurídicas) sobre o caminhar da investigação científica e suas aplicações consequentes. Ela radica numa preocupação mais humana e funda com o esteio das nossas atitudes, uns para com os outros : a crise de valores, de que tanto se fala por aí, mais não é do que a inadequação de preconceitos antigos às realidades adventícias, não só da inovação científica e tecnológica, como dos desafios ao convívio humano, desde o plano familiar até à proximidade crescente de povos e culturas, no espaço e no tempo. Abordei esta questão nas minhas crónicas sobre "preconceito e pluralidade". Sublinho agora a extrema perigosidade de insistirmos em atitudes e comportamentos de cegueira ao outro e afrontamento, como infelizmente alguns dos nossos gurus vão repetidamente insistindo, quando se pronunciam, incondicionalmente e sem procura ousada de diálogo, sobre as dívidas ditas soberanas, o Islão, islamismo e terrorismo, etc... A persistência arrogante na afirmação da superioridade de conceitos (e preconceitos) culturais, religiosos, políticos ou ideológicos - que quase sempre surgem como elementos de identificação e diferenciação - está mais próxima de arriscadas ameaças "`a la Poutine", do que da sensatez sábia do papa Francisco. O que abriu os olhos a Iolanta - e lhe deu luz - foi o amor.
Para uns, a maior de todas as artes. Para outros, a mais perigosa.
O sublime, o arrebatamento, o êxtase que pode alcançar, a espiritualidade e transcendência que dela pode emanar, as sensações e sentimentos impessoais, intransmissíveis e insubstituíveis que transporta e transmite, a sua linguagem metafísica e emoções ultra-humanas, a alegria e tristeza que nela existem em simultâneo, a sua harmonia e acesso espiritual nas instâncias superiores da inteligência, fazem da música uma arte maior, a maior de todas as artes, para muitos. Ultrapassa-nos como realidade artística, intelectual e erudita de feição humanista, condizente com as belas artes, com uma cultura de eleição, superior e não determinista, tornando-se inalcançável, quando não incompreensível na sua plenitude, que ao mesmo tempo nos preenche plenamente, compensando-nos e maravilhando-nos objetiva e subjetivamente, dado o seu lado celestial, divino e sublime.
Essa vertente sublime, transcendente, inalcançável e inultrapassável, torna-a incapaz de ser formatada ou delimitada, dada a sua infinitude não controlável, nem palpável, a sua imaterialidade. É uma negação da matéria física, sem peso, não ocupando espaço, em paralelo com o ar que respiramos ou a língua que falamos. Foge às leis entendíveis da razão, estando para além da razão pura, do estritamente racional, criando e inovando pela intuição, pela emoção, pelo sensível. Essa sua caraterística permanente não passível de formatação ou delimitação torna-a, para muitos outros, perigosa, dado o seu indeterminismo e não sujeição às leis racionais da física e da matéria, suscetível de conduzir a situações não controláveis, de indisciplina ou irracionais, podendo ser uma ameaça para o poder instituído. A que acresce a consciência oceânica de certas experiências pessoais, definidas por uma prática em que o indivíduo mergulha numa realidade envolvente, originando um sentimento eufórico do grupo em fusão ou em sentimento oceânico, com uma perda de perspetiva crítica, em que a música e os jovens são tidos como exemplo de marca.
Desta ambivalência e divergência de opiniões se conclui que se na antiguidade tinha o fim sagrado de reverenciar o Ser Supremo e, em tempos mais recentes, e mesmo atuais, elevar a alma humana às alturas das alturas espirituais e do transcendente, de igual modo se banalizou, vulgarizando-se e massificando-se gerando, por vezes, anseios e interesses tidos como instintivamente menores. Razão pela qual diversos géneros de música nos levam a exteriorizar comportamentos mentais e emocionais específicos.
De tudo isto decorre também o poder dessa substância incorpórea e intangível que se exprime pelo som, que o ser humano não domina...
Mesmo que se defenda que toda a arte é boa porque promove as boas ações, o que nos levaria, desde logo, a tentar definir, se possível, o que é a arte e a não arte, não deixa de ser significativo ser tida, com frequência, como um meio para bons estados mentais, sendo estes um fim compensatório em termos emocionais e existenciais, o que também se aplica à música, como arte, com a particularidade de através de uma música de eleição aspirarmos ao infinito, dada a nossa finitude em relação à profundeza infinita da natureza humana.
Tendo a música uma linguagem metafísica universal e abstrata, é transversal a todos os aspetos do ser humano, na sua capacidade inata de expressar e tornar compreensível o que nos pode ser incompreensível, desaconselhável ou proibido manifestar por palavras, rumo a uma alternativa harmoniosa e interdependente, onde utopia e realidade aliem esforços, permitindo exprimir-nos em liberdade e num diálogo contínuo, assim se reforçando o seu poder e a sua louvação como arte.