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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

LONDON LETTERS

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The Berlin speech, 2015

The Queen e o Duke of Edinburgh regressam de uma bem sucedida visita oficial a Germany. Durante quatro dias estreitam contactos com o afável President Joachim Gauck e a jovial Chancellor Angela Merkel et al. As fotografias do evento são excelentes, passeios de barco no Spree River e saudação no Neue Wache Memorial, os sorrisos abertos e o aplauso generalizado. Mas pro memoria remanesce o discurso de HM Elisabeth II em Berlin.

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A veterana chefe de estado alerta contra divisões perigosas em Europe e apela à unidade do pós-guerra enquanto relembra a morosa adesão teutónica à democracia. — Le temps et l’usage rendent l’homme sage! Já em Brussels, o Eurogroupe rompe as negociações gregas. O Syriza convoca um referendo para July 5th sobre os termos troykanos de um novo resgate financeiro à república helénica. — Hmm. A drowning man will clutch at straws. Os jogos abrem em Wimbledon. A random cruelty do Isis abate-se sobre os veraneantes deitados nas areias berberescas de Sousse. Washington estende a igualdade do império da lei à orientação sexual, proibindo agora proibir. Em Charleston, o US President Barack Obama canta Amazing Grace

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Summerdays here and there, everywhere. O tempo solar contrasta com a atmosfera mediática, marcada pelo mais grave ataque contra British nationals desde o 7/7 na London de 2005. Enquanto a Imprensa de além Channel interpela o “game over” aos helénicos na Eurozone (Well am Sonntag) ou foca “le portrait d’un tuer” (Le Parisien), por cá os jornais dedicam atenções às vítimas nas praias de Sousse. O massacre é perpretado por um jihadista de 23 anos, contra homens, mulheres e crianças que seleciona matar simplesmente por serem ocidentais. Assassina 40 pessoas junto a Port El Kantaoui, 30 das quais inocentes Britons. Numa das praias baleia as três gerações de uma só família de Sandwell. Na sequência deste ataque na Tunisia e ainda de atentados em France e Koweit, o alerta de segurança no reino sobe para o vermelho. Ora, entre pipes & drums, mais palmas da good people, o Prime Minister e o Duke of York presidem à parada do 7th Armed Forces Day em Guilford ― casa-mãe dos Royal Marines.

Europe vive dias sombrios noutras paragens. Se cidadãos seus sofrem no Mediterrean Sea, aquele onde diariamente se afogam quantos do South demandam direito à vida e a trabalho, as elites bruxelenses ignoram as constantes geopolíticas e persistem no braço de ferro monetário contra um dos países ribeirinhos. Uma nova vaga da retórica do medo desce sobre Athens, após a recusa europeia de financiamento sem a adesão às customadas reformas da Austerityan way. O modelo referendário é a bandeira que o Parthénon hasteia no labirinto para onde a empurram. Em surdina há quem soletre três palavras interessantes a este país da NATO: golpe-de-estado! Sinto saudades do liberalismo inteligente de um Herr Friedrich Naumann, aqueloutro que na Wilhelmian era concebe o sereno pangermanismo de uma “Mitteleuropa” não dogmática.

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Neste quadro assume especialíssima importância a viagem real à verdejante Berlin. Esta é a 5th state visit que Elisabeth II ali faz durante o seu reinado, mas desta feita em ambiente internacional bem diferente da primeva jornada de 1951 em plena Cold War. Sob agendas marcadas pelas kalendas graecas, segundo o traço perspicaz de Matt no Telegraph, Her Majesty tem a private chat com Frau Merkel na Bundeskanzleramt e coroa o State banquet no Schloss Bellevue após ofertada por Herr Gauck com estonteante tela intitulada Horse in Royal Blue que a retrata com o pai King George VI. Ecoam as palavras trocadas entre os chefes de estado. The Queen vai direta ao clarete: "In our lives, Mr President, we have seen the worst but also the best of our continent. (…) But we know that (,,,) division in Europe is dangerous and that we must guard against it in the West as well as in the East of our continent.” A réplica alemã é paleográfica. — A constructive dialogue on the reforms Britain wants to see is therefore essential. As a good partner, Germany will support this dialogue. For Britain is part of Europe. The European Union needs Britain.


St James, 29th June

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 29 de junho a 5 de julho de 2015.


«Cultural Heritage counts for Europe» (2015) é um documento que merece uma atenção especial. Foi elaborado sob a égide da «Europa Nostra» e constitui um guião que deverá ser seguido para que a política cultural e a proteção do património, da herança e da memória sejam adequadamente salvaguardados em nome da capacidade criadora de valor.

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O CONGRESSO DA EUROPA NOSTRA
O Norske Selskab é uma referência na história norueguesa. É um antigo clube literário e cívico, fundado por estudantes noruegueses na Dinamarca em 1772, cujos membros participaram ativamente na redação da Constituição da Noruega, assinada em 17 de maio de 1814 em Eidsvoll, pequena cidade histórica ao norte da antiga Christiania, hoje a capital Oslo. A lei fundamental foi inspirada, como se sabe, na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e nos ideais da Revolução Francesa, iniciando a sua vigência no começo da união pessoal com a Suécia, depois de uma ligação ancestral à Dinamarca, desde 1381. Só em 1905 a Noruega alcançaria a independência total, sempre sob a inspiração da Constituição de 1814. E foi impressionante ver a melhor coleção de pintura norueguesa detida por uma instituição particular, entre livros antigos e um ambiente de circunspeção e sabedoria. O Conselho da Europa Nostra reuniu-se este ano no «santo dos santos» desse clube de antigas tradições, na sala de jantar dominada pelo imponente quadro a óleo de Eilif Peterssen, de 1892, alusivo às origens da agremiação, em que os pais fundadores se apresentam com impecáveis indumentárias do século XVIII. Sendo certo que neste ano celebramos os oito séculos da «Magna Carta Libertatum», foi muito significativo que nos tenhamos encontrado nesse lugar histórico do constitucionalismo norueguês, no Congresso Europeu do Património Cultural, que se desenrolou em sítios tão emblemáticos como o Palácio da Cidade, onde todos os anos é entregue o Prémio Nobel da Paz, na Domus Academica e na Aula da Domus Media da Universidade de Oslo, entre as obras-primas de Edvard Munch «História» e «Alma Mater», bem como no Teatro Nacional (sob a inspiração de Ibsen e de Bjoernson) ou na Sociedade Militar… Entre as referências históricas do Norske Selskab e os alertas contra a destruição do património histórico do Médio Oriente, lembrámos a lição de T. S. Eliot e da misteriosa Elena Ferrante: «não há obra literária ou cultural que não seja fruto de uma tradição, de muitos talentos, de uma espécie de inteligência coletiva».


PATRIMÓNIO CULTURAL COMO PRIORIDADE
O tema do património cultural entra na ordem do dia no momento em que a crise financeira e as suas consequências revelam uma exigente necessidade de associar a inovação à criação de valor, em lugar da ilusão em torno da mera aparência de riqueza, apenas pelo crédito e pela circulação monetária, marca do risco da mediocridade contemporânea. Ora, em Oslo, no Congresso Europeu, foi apresentado, sobre este tema, um documento de grande relevância: o relatório intitulado «O Património Cultural conta para a Europa» (www.encatc.org/culturalheritagecountsforeurope), elaborado graças ao impulso da «Europa Nostra» (representada em Portugal pelo Centro Nacional de Cultura), com a participação da Rede Europeia da Gestão Cultural e da Política Cultural da Educação (ENCATC), da Associação de Cidades e Regiões Históricas (Heritage Europe), da «Heritage Alliance» do Reino Unido, do Centro Cultural Internacional de Cracóvia e do Centro Internacional Raymond Lemaire para a Conservação de Louvaina. Estamos perante uma reflexão muito séria, que se afasta claramente do entendimento que tem subalternizado o tema do Património Cultural, como pedra angular das políticas públicas de cultura. Em lugar de se entender o património de forma estática e retrospetiva, há um novo pensamento dinâmico sobre a herança recebida das gerações que nos antecederam, que devemos desenvolver, protegendo e salvaguardando o legado histórico e sabendo articulá-lo com a sociedade e a criação contemporâneas. A Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural, assinada em Faro em 27 de outubro de 2005 e entrada em vigor em 1 de junho de 2011, demonstra, com meridiana clareza, que não pode haver uma política pública de cultura digna desse nome sem a defesa coerente e sistemática do património, da herança e da memória. Plácido Domingo, presidente da «Europa Nostra», lembra o que Albert Einstein teria dito: «nem tudo o que conta pode ser contado, e nem tudo o que pode ser contado conta». Neste sentido, urge uma ponderação muito séria sobre o que verdadeiramente conta. Longe da ideia de que a cultura é um adorno ou um luxo, do que se trata é de dar uma importância transversal à criação e à inovação, ligando-as à paz, ao desenvolvimento humano, à coesão social, à inclusão, à diferenciação, à educação e à ciência.


PRESERVAR A MEMÓRIA
Os monumentos, a paisagem, os arquivos, as bibliotecas, as cidades, as tradições imateriais constituem a matéria-prima por excelência da preservação séria da memória – de que nos fala Elena Ferrante. Lembramo-nos das campanhas de Garrett e Herculano. Não podemos deixar estragar ou destruir o que existe, devemos restaurar e valorizar o que recebemos, tornando-o acessível, divulgando-o, estudando-o e conservando-o. E devemos autonomizar as atividades criativas, constituindo um Conselho das Artes, estável, respeitado e não dependente dos ciclos eleitorais. O relatório fala-nos de dez pontos, que devemos ter bem presentes: o património cultural é uma componente-chave para o desenvolvimento, criação e competitividade de regiões, cidades, povoações e meios rurais; os países e as regiões europeus só poderão ganhar valor e atratividade (desde o turismo ao investimento económico) pelo património cultural; a criação de emprego, em especial nas pequenas e médias empresas e em áreas de grande potencial inovador, precisa da valorização do património cultural; estamos, pois, diante de uma importante fonte de criatividade e inovação, em especial pela necessidade de atrair novos públicos e de fazer participar os cidadãos; o património cultural gera riqueza, de que beneficiam todos os agentes económicos e, por via dos deveres fiscais, os próprios Estados; o património cultural ajuda à regeneração e ao ordenamento dos territórios; contribui em parte para a resposta aos desafios das mudanças climáticas pela lógica integrada em que intervém no urbanismo e nas construções; permite ainda garantir uma melhor qualidade de vida, tornando lugares de referência aprazíveis, enquanto fatores de uma melhor existência pessoal; o património cultural favorece a educação permanente, o melhor conhecimento e compreensão da história, do espaço e do tempo; e combina e articula diferentes fatores que melhoram o capital social, a coesão económica, social e territorial, favorecendo a confiança, a participação e o compromisso dos cidadãos. Deste modo, o «desenvolvimento sustentável» terá de envolver os domínios cultural, social, ambiental e económico. Daí cinco recomendações estratégicas, que passam pela transversalidade da cultura, pela avaliação do respetivo impacto, pela consideração de prazos alargados na ação, pela partilha e disseminação de informações e dados e pelo impacto e visibilidade desses procedimentos. Eis que o património cultural deve ter voz, significado e importância.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

SONETOS DE AMOR MORDIDO

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Clara e Robert Schumann


20. KREISERLIANA

 

Ufano, tão feliz, enchi o peito

do amor com que os teus olhos me quiseram

preso assim; e cativo me fizeram

de ti, para sempre, quase perfeito...

 

E quase sempre fui quase sozinho

e assim tu quase só cheia de mim...

E foi ouvindo não ao nosso sim

que juntos nos pusemos a caminho.

 

E neste quase ser, digo ao piano

como toureiro em lide, em mano a mano,

que, sem talvez, na vida há sim e não...

 

E tudo dança e sofre, tudo passa:

é sempre fugidia uma ameaça

e fortaleza a nossa imperfeição... 

 

P.S. - Quatro anos levaram Clara Wieck e Robert Schumann para conseguirem licença de casamento. Perante a ciumenta e feroz oposição do pai dela, tiveram de recorrer ao tribunal, que decidiu em favor deles. Casaram em 1840, numa igrejinha da aldeia de Shönefeld, perto de Leipzig. Durante esses anos de separação forçada, em que o pai Wieck ia obrigando Clara a viajar pela Europa, dando concertos ao piano, que tão excelentemente tocava - concertos em cujos programas ia incluindo composições do seu amado - Schumann viveu alternadamente períodos de entusiasmo e esperança, como de depressão e quase desespero, compondo muito, sobretudo música para piano. As Kreislerianatestemunham esses altos e baixos, esse galope de sentimentos de vários tons, tempos e ritmos... Escreve ele, em carta a Clara, de Maio de 1838:

 Reparei em que a minha imaginação nunca está tão viva como quando ansiosamente virada para ti. Foi assim ainda nestes últimos dias, e, na expectetiva de carta tua, compus o suficiente para encher volumes. Música extraordinária, ora louca, ora grave e sonhadora. Arregalarás os olhos quando a decifrares. Vê tu bem, tenho por vezes a impressão de que acabarei por estoirar de música, de tal modo as ideias se empurram e fervem em mim quando sonho com o nosso amor. ... Tocas às vezes as minhas Kreisleriana? Em certas páginas, está lá um amor mesmo selvagem.

 A atestar essa fúria fiel e forte está o próprio título dessas composições, inspirado na personagem de Kreisler, o mestre de música, de espírito e gestos muito agitados, dos contos de Hoffmann. Afinal sempre igual a si mesmo. 

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Colin Rowe: Inside Out, Outside In

 

‘Let’s evaporate the object, let’s interact with the people, the object should decompose itself, make some concessions to the circumstance. The object should be encouraged to become digested by a prevalent texture or matrix. Nor object, nor space are the only viable attitudes.’, Rowe, 1976

 

Colin Rowe (1920-1999) desejava encontrar um equilíbrio entre o ideal e o imperfeito. Por ideal entende-se a herança do objecto edificado perfeito do modernismo. A imperfeição associa-se à renovada atenção, dada a partir da cisão dos CIAM, à construção contínua de um contexto, onde se adapta o novo ao existente. Colin Rowe originalmente ansiava por um contextualismo que recebesse tanto a imagem da cidade tradicional – com os seus espaços abertos, esculpidos por entre a massa sólida construída – assim como a cidade de Le Corbusier – com os seus edifícios isolados num espaço aberto, livre, selvagem e natural. 

Tal como se lê no texto ‘Type and Context in urbanismo: Colin Rowe’s contextualism.’  de William Ellis, Rowe pretendia encontrar um discurso entre tipo e contexto, vivificada por uma ideia espacial contrária ao urbanismo de Le Corbusier, mas sem perdendo a grandeza das imagens da arquitetura moderna. Rowe propõe atingir este equilíbrio entre ideais e continuidade através de uma variedade de estratégias compositivas: uma completa resolução de partes, uma colagem de partes e uma colisão entre partes. A adopção de uma atitude de ‘composição urbana’ significa pensar as cidades de uma forma diferente da dos modernos. Por exemplo, muitos arquitectos modernos concluíram que a pintura tal como concepção do objecto arquitectónico estava sobretudo relacionados com problemas de composição – isto é, com relações entre objectos – enquanto que o urbanismo moderno estava somente relacionado com a natureza dos objectos elementares. Le Corbusier, por exemplo, concentrava somente o seu interesse nos objectos-tipo elementares urbanos, não dando tanta atenção à sua composição no grupo – e os seus aglomerados urbanos insistem somente em ser exercícios de mera lógica geométrica.

‘In this connection it can be suggested that most modernist paintings were contextual insofar as they subordinated the typal characteristics of individual elements to an overall composition. This can be seen to hold from Cubism and Futurism to Elementarism, Neo-Plasticism, Suprematism and Purism. Even a Malevitch painting, with each element intact, is composed.’, William Ellis

Rowe remete para a pintura modernista por considerá-la contextual. Rowe deseja por um processo urbano que mostre em simultâneo continuidade e mudança – reflexo dos dois lados paradoxais de qualquer processo histórico. Estes requisitos contraditórios levaram à apresentação de duas

componentes principais: o plano da figura-fundo e a noção de peça cenário ou edifício composto. O plano que se relaciona com a figura-fundo está ligado directamente à cidade tradicional, e representa uma dialética equilibrada entre sólidos (edifícios) e vazios (espaços abertos). Se o plano figura-fundo formar uma estrutura consistente, no processo determinado por Rowe, então a peça cenário ou o edifício composto vai actuar como o principal elemento dentro deste processo. O edifício composto é um elemento que actua como um ‘fragmento de utopia’ – e que representa o equilíbrio e o diálogo entre o perfeito e o imperfeito, que aceita deformações vindas do contexto, sustenta uma identidade tipológica com regularidade geométrica no seu cerne e promove particularidades locais na sua composição (normalmente através de limites irregulares).

A cidade tradicional é feita de espaços. A cidade moderna é, intencionalmente pensada para ser o novo habitat natural do homem, com espaços abertos ao sol, ao verde, à salubridade, à higiene. A cidade moderna fixa-se no objecto e pretende evaporar-se. Um objecto construído que é racional e não espiritual. Rowe sugere nivelar a necessidade da materialização racional do objecto e a necessidade imperiosa de desintegração, com a consciencialização de que o espaço é mais sublime que a matéria – só afirmação de matéria é muito agressivo para a cidade, mas a afirmação de um contínuo espacial pode promover exigências por liberdade, natureza e espírito. E diz ainda que se o espaço é sublime, então o espaço da cidade moderna natural ilimitado deve ser mais do que um espaço somente abstracto e estruturado.

Colin Rowe luta assim, pela necessária presença de ambiguidade urbana e afirma que edifícios e espaços devem existir em igualdade dentro de um debate sustentado, em que cada componente urbana surge invicta, numa dialética de espaços sólidos e de espaços vazios, numa coordenação estreita entre o que é planeado e o que é acidente, entre o público e o privado, entre a comunidade e o indivíduo. E por isso, determina, assim um número variado de estratégias possíveis que se materializam em: cruzamentos, assimilações, distorções, desafios, respostas, imposições e conciliações.

 

Ana Ruepp

OLHAR E VER

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24. O ENCOBERTO

 

O Courrier International (na edição francesa original, nº 1275) ilustra vários artigos da imprensa europeia sobre o tema e as negociações da Parceria Transatlântica em Comércio e Investimento (ou TTIP, segundo o acrónimo inglês) com vários desenhos de Arend (Países Baixos). Logo o primeiro, muito sugestivo, nos mostra, sentados em torno de uma mesa - atrás da qual se afixa um mapa do mundo - vários bonecos debatendo, identificados como Captains of Industry. Debaixo dessa mesa, aparentando crianças, surgem outros tantos a brincar com as peças de um jogo de sala chamado Stratego. Identificam-se como sendo Politicians... Os vários textos ali publicados debruçam-se sobre as negociações de um acordo de livre câmbio alargado, que poderá fazer dos EUA e da UE, juntos, o maior mercado do mundo. Surgem entusiasmos, interrogações, dúvidas e receios... Em presença de um processo de mundialização da economia - e do declínio relativo do ocidente industrializado, face à emergência de novas potências económicas, em crescimento rápido - é tentadora a perspectiva de uma zona económica do atlântico norte, que conforte uma dinâmica de criação de riqueza e bem-estar. Mas com essa miragem também se levantam outras questões. Umas são endógenas ao próprio processo das negociações em curso (iniciadas em Julho de 2013) e ao espaço geopolítico e económico a que se circunscrevem, desde a harmonização possível de normas laborais, fiscais, financeiras, sanitárias, ecológicas, à definição de sectores e prazos de aplicação, sobretudo enquanto preocupação com os possíveis efeitos sobre vantagens concorrenciais e emprego.  Não é, contudo, nosso propósito, tratar agora dessas questões. O nosso objectivo é antes tentar colocar este, como qualquer outro debate internacional em matéria económica e financeira, no contexto da globalização em curso e da indissociável reflexão sobre as respectivas consequências para a democracia e sua definição de poderes. Aliás, o que a caricatura acima recordada diz é que os nossos políticos não estão a ser factores de decisão, mas serão crianças que brincam com simulações... Há, todos sabemos e ouvimos, um afrontamento mediático e quotidiano entre políticos e seus partidos - de esquerda e de direita - como entre dirigentes associativos, professores, estudiosos, curiosos, comentadores e jornalistas, opondo "neoliberalismo" e "Estado social" que, bem vistas as coisas e os argumentos das partes, quase nunca é um debate inteligente e construtivo, antes um ping-pong que se joga pelo lançamento alternado de teorias datadas e factos ponderados em função de pontos de vista e interesses já estabelecidos. Pode tudo isto passar-se publicamente nas cenas várias das nossas livres democracias, mas parece-me, todavia, que o essencial das questões - por falta de independência de juízo e de espírito crítico, e alguma ignorância da história e dos métodos científicos - vai ficando de fora, e, mesmo pensando seguir caminhos diferentes, quiçá opostos, todas as partes vão cair num barranco de cegos. Sobretudo, não surgem respostas nem propostas, que terão de ser necessariamente inovadoras, a questões de como poderá o poder político controlar o financeiro, e de como deverá fazê-lo por forma a promover e assegurar a participação democrática dos cidadãos de pátrias e do mundo no governo duma res publica crescentemente alargada e complexa. É confrangedor, para não dizer pungente, que numa civilização em que o progresso das tecnologias pode facilitar a informação, o diálogo e a participação, as pessoas sejam alheadas da consideração do bem comum e do interesse geral, para se concentrarem em clubes e meios restritos ou, simplesmente, se desinteressarem. Tem sido proclamado, aliás por sensibilidades e razões diferentes e nem sempre concordantes, que a actual globalização é neoliberal, obedece a um programa que o "grande capital" desenhou no princípio dos anos 70 do século passado, com o evidente objectivo de se ir apropriando, em benefício sobretudo da sua ganância de acumulação, da riqueza que a generalização de novos factores e relações de produção iria criando. Somos certamente sensíveis à gravidade de possíveis consequências de uma concentração, a nível mundial, não só local ou nacional, e cada vez menos regional, das capacidades de capitalizar, de inovar e desenvolver tecnologias, de concorrer invasivamente em múltiplos mercados... Sempre em prejuízo, claro está, das indústrias existentes e do tecido social em que foram assentando. Mas talvez não seja aconselhável esquecer a força determinista de certas inovações e novas relações de produção : ninguém com bom senso pretenderá ser possível regressarmos ao passado das técnicas e das organizações. Não é, pois, aí que se põe a questão fundamental da justiça e da democracia no controlo de um poder económico e financeiro que, tirando naturalmente as vantagens consequentes de um campo de acção mais vasto e sofisticado, deverá todavia fazê-lo para benefício de todos. Contrariamente a várias correntes de opinião, de esquerda como de direita, que concordam na necessidade de reforço da independência e soberania nacional, através de medidas protecionistas e isolacionistas, não prevejo que tal seja útil e benéfico, nem sequer já possível. Não só a "soberania nacional" é hoje, mais do que realidade, um conceito desacreditado, mas a integração de todos no processo de globalização é inevitável. Como diz Monique Chemillier-Gendreau, professora de direito público e ciência política na universidade de Paris-Diderot, na concepção jurídico-política prevalecente até hoje, o Estado soberano já não tem futuro como força de paz, de emancipação, ou de justiça social... ...Não, a soberania não é a "competência das competências", pois nenhum Estado dispõe da exclusividade das competências no seu território; não, não é a garantia da independência de um povo, como o prova a situação em países do terceiro mundo onde, contudo, as soberanias criaram tantas esperanças; não, não é um poder acima de todos os poderes; não, ela não é a expressão de um pacto político fundado na procura da justiça. E a democracia institucional, tal como a entendemos no Ocidente, e como foi exportada para todo o mundo, não basta, longe disso, para garantir a liberdade, porque, ao assimilar comunidade política nacional e soberania na figura política do Estado, matámos o projecto de liberdade. Sim, pela comunicação e as trocas, o mundo forma hoje uma "sociedade" que deve passar a outro nível de organização política, compatível com a liberdade de todos. Também o professor Daniele Archibugi, da universidade de Londres, Birkbeck College, tem vindo a defender a noção de cosmopolitismo, a caminho de uma democracia mundial a que chama democracia cosmopolítica. Nenhum destes autores é defensor de qualquer  nacionalismo político ou económico, como, por exemplo, o hispano-francês Ignatio Ramonet, também ele professor universitário, natural de Pontevedra, mas com muitos anos de trabalho e investigação em França, onde foi, durante anos, director de Le Monde Diplomatique. Muito embora não concorde com a sua tese de que a presente globalização é neoliberal - no sentido de ter necessariamente de ser um sistema em que o supremo regulador é "o mercado", ao serviço dos interesses dos mais fortes, que o controlam, pois  penso, como disse acima, que ela poderá ser outra coisa - aprecio a sua análise de que ela nos imerge em três revoluções simultâneas. E, para apresentá-la, reproduzo um trecho do artigo que frei Rui Manuel Grácio das Neves, O.P., publicou no caderno nº 30 do Instituto São Tomás de Aquino, de Lisboa, sobre o tema A Globalização Neoliberal e os Caminhos para o Diálogo nter-Religioso, que aliás me parece abrir outra nova pista para a reflexão sobre o processo que temos aqui presente:

1. A revolução tecnológica é sobretudo uma revolução ao nível da comunicação-informação. E isto num duplo aspecto: a cerebrização generalizada das máquinas e a revolução numérica ou digital. Através da digitalização generalizada foi possível identificar três sistemas de sinais que eram, até agora, independentes: o som, o desenho  e o texto. Desta forma, qualquer som, imagem ou texto pode ser reproduzido e difundido mediante a sua transformação em impulsos electrónicos, que se movimentam à velocidade da luz (que se converte agora num absoluto, no "real time", recordando aqui a revolução física e epistémica de Albert Einstein).

2. A revolução económica actual refere-se ao predomínio das actividades financeiras. Encontramo-nos imersos numa economia do imaterial (intercâmbio, venda e comércio de valores e moedas) e num intercâmbio planetário da economia financeira (afirma-se que aproximadamente umas 50 vezes superior ao intercâmbio da economia real ou intercâmbio de produtos concretos). A economia do imaterial inclui a economia da comunicação, da informação e da cultura, sendo todas elas susceptíveis de ser digitalizadas e transmitidas planetariamente. Em definitivo, estamos perante a dupla característica da revolução económica: financialização e imaterialização. Tudo isto aponta para a globalização da economia.

3. Finalmente, a revolução sociológica, que aqui deveria ser melhor classificada como revolução política. Ou seja, o conceito de Poder está hoje em crise. A pergunta básica é: quem possui hoje, realmente, o Poder? Tradicionalmente, tem sido o Poder vertical, hierárquico, autoritário. Hoje, procura-se melhor um poder que seja horizontal, em forma de rede de teia de aranha. Daí a importância da categoria de consensualidade. Para isto é decisiva a ajuda da tecnologia comunicativa ou comunicacional.

Curiosamente, quem já se distraiu, ou mesmo ainda se distraia, com aqueles romances policiais e bandas desenhadas em que teimosamente se vão escondendo e camuflando detentores ou ambiciosos de poderes secretos, entenderá melhor o sentido do título desta crónica do que tantas, muitas, das nossas personalidades mediáticas que por aí discutem candidatos a "soberanias" e "democracias" fora de prazo de validade. Estarão à espera do Poder encoberto?

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE PALMO E MÃO V

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Inês:

Excelente a tua memória! De facto colocávamos a telefonia na mesinha de cabeceira, aquela telefonia de madeira com pano na frente já roto pela corrosão das humidades da casa das serras no Inverno, e, pelas vezes em que, para mudarmos a estação da rádio ao gosto de cada uma, não tratávamos de cuidar pano, teclas e aparelho que tanto nos traziam naqueles tempos. Mas a tua memória disse bem na tua carta:«ah! as cartas de Goeth ouvidas como quase pecado, recordas Isa? ». Sim, era quase pecado o modo como nos olhávamos quando as não entendíamos ou quando a nossa idade de entendimento as fazia adequar-se ao nosso corar. Ouvíamos uma voz que nos era familiar e que lia as Cartas de Goeth, ali, naquela estação certa. Nada, na altura, nos dizia a importância de Goethe ou Schiller ou a Antiguidade clássica. Para nós Goethe era o melhor escritor do mundo, o mais romântico e pronto. Por alguma razão a minha avó e a tua mãe não gostavam que ouvíssemos a leitura destas Cartas. E ali, junto à cama, a horas de ir já mais alto o sono, baixinho, escutávamos deliciadas um estranhamente perto.

Bem mais tarde conversámos as duas - no Jardim da Estrela, memória minha - sobre “Tormenta e ímpeto”, no qual Goethe participou, e bem tentámos reflectir sobre o subjectivismo, o instinto, a exacerbação de sentimentos, o amor e a idealização da mulher, naquele movimento artístico-literário alemão que foi lema do Romantismo. E ainda assim achámos que pela telefonia, há tantos anos atrás, tudo tinha sido mais prometedor aos sentidos – apesar das tristes adolescências - do imaginar como seria mundo. E era bem verdade que assim fosse, pois as coisas do mundo e do amor saíam para nós de dentro da rádio e passavam a morar numa pequena aldeia perto da nossa casa, onde recolhimento, natureza e escapismo nos fundiam os dias num segredo nem sequer entre nós duas partilhado.

Imaginarias que por entre esta viagem de trabalho me não escapará uma ída à Casa de Goethe em Frankfurt? Imaginarias, querida Inês, que não te escreveria a contar tão grande pormenor para nós, e seu impacto? Pormenor que poderá, quem sabe ?, ser o que nos explicaria, à data, as contradições sublimes do amor ouvido, até ao descodificar de uma frase de Goethe que decorámos na altura, apenas para excesso estóico da nossa ignorância

«Tal e como a natureza tende ao outono, se fez outono em mim e ao meu redor.»

Incrédulas ficávamos sempre que repetíamos esta frase, pois amor era o que precedia a frase e  amor era para nós, Primavera, Verão,  religião, culto e natureza, e por essa razão dávamos a mão na missa quando o sacristão fazia tilintar as campainhas, e juntas espreitávamos o que se passava no altar, ou não fosse lá que estivessem os sonhos que perseguíamos ao lado do saber das próprias Cartas.

Inês, amiga Inês, em Merletti dalla Olga uma mulher fazia renda, uma renda só produzida em Burano desde o sec. XVI. Tenho uma peça para ti que acabei por comprar no Lido, como sabes, a tradicional praia dos Venezianos onde acontece um dos mais prestigiados festivais de cinema do mundo.Por entre as voltas desta renda, encontrarás seguramente  a razão fundamental do Casamento de Maria Braun, uma das obras-primas de Fassbinder : acho que foi quando começou a segunda parte das Cartas de Goethe que não ouvimos. Reiniciáramos as aulas depois do Natal e aquele céu específico não voltou a ver-nos.

 

Saudades muitas, muitas

Isadora

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Por Teresa Bracinha Vieira
Junho 2015

ATORES, ENCENADORES (XXIX)

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Ribeirinho (in http://www.novatv.pt/)

 

EVOCAÇÕES PESSOAIS DE IONESCO E DE BECKETT


Começo com uma nota pessoal:

Tive o gosto de acompanhar o meu irmão, Manuel Ivo Cruz, numa  visita de Eugene  Ionesco e de sua mulher por Lisboa, lá para o início dos anos 60 do século passado. Vinham de Paris assistir a um espetáculo de Jacques Mauclair, na altura ator de primeiro plano, no Festival de Sintra: representou-se “La Leçon” e “Les Chaises”, de Ionesco, numa produção/realização de primeiríssima qualidade – ou assim a recordo, passadas estas dezenas de anos: mas já na altura me desdobrava entre estudos jurídicos e estudos de literatura dramática, e acompanhava por isso a produção dramatúrgica vinda do exterior.

Ionesco voltaria pessoalmente a Lisboa, e muitas e muitas vezes seria  representado em Portugal ao longo do século. Recordo, entre muitas outras, as traduções de “A Lição” e “O Rinoceronte” por Luis de Lima, ou “O Novo Inquilino” por Luisa Neto Jorge, peças e versões que citei especificamente em livros e aulas.

Mas também tive ensejo de citar peças e espetáculos de Samuel Beckett, traduzidos e/ou produzidos em Portugal. E precisamente, quero agora evocar a inesquecível estreia que constituiu, em 1959, “À Espera de Godot” pelo Teatro Nacional Popular, dirigido por Francisco Ribeiro, no Teatro da Trindade.

Recordo bem esse espetáculo, que deu brado e provocou certo “escândalo” no então condicionado meio teatral português.  Estávamos, repito, em 1959. Por todos os motivos, portanto, a iniciativa de Francisco Ribeiro - Ribeirinho, numa companhia subsidiada, (e que o não fosse…), com um autor praticamente na época desconhecido do grande público, constituiu um ato de coragem em todos os aspetos.

E mais: a direção e as interpretações do próprio Ribeirinho, num registo nada habitual na sua carreira de admirável cómico, bem como as de Costa Ferreira, Canto de Castro, Rui Mendes e do então muito jovem João Lourenço,  atingiram um nível de qualidade e de homogeneidade acentuado pela própria  estrutura  do texto e da linguagem, numa verdadeira iniciação, do que costuma designar-se por “teatro do absurdo” ou mesmo por “antiteatro” – e essa designação é que se revela totalmente absurda: pois a peça é extremamente “teatral” no seu aparente estaticismo.

E o mesmo se dirá do teatro de Ionesco.

Mas também há qualquer coisa de musical no texto de Beckett, a saber, a repetição de um tema recorrente e simbólico, aqui sintetizado no diálogo desencantado, repetido vezes sem conta pelos dois protagonistas: “( Estragon) – Didi, vamos embora/(Vladimir) –Não podemos/ (E)  -  Porquê?/ (V) - Estamos à espera de Godot / (E) – Ah, é verdade”…    

Pois bem: este aparente estaticismo é superado e sublimado pela força do próprio diálogo e pela profundidade da análise. “Espetáculo altamente discutido, que suscitou apaixonada polémica” escreveu Tomás Ribas. E também eu, na altura, frisei numa crítica a grande qualidade do espetáculo mas também o paradoxo implícito na peça: pois  para além do fatalismo dominante, “os dois vagabundos que esperam por Godot fazem ressentir uma esperança situada mais acima das desgraças do dia-a-dia.” E terminava assim:
“Essa esperança não é compreendida no palco, Valdimir e Estragon vão-se embora. Tê-lo-á sido no entanto na plateia? Receamos bem que não”…

E há ainda muito a dizer sobre o Teatro Nacional Popular e sobre o Francisco Ribeiro.


DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

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The road to Waterloo, 1789-1815-2015

“It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness.” As pinceladas de Mr Dickens mostram a Europe na esteira da French Revolution (1789-99). 

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A rebelião segue depois a cavalo, pisando fronteiras, tão sanguinolenta quanto imparável. Em 1807 já Napoleon I domina o eurocontinente. Bravios, resistem Britain e Portugal. — Chérie, ‘non’ est un joli mot, mais il faut être le premier à le dire! O vento só muda num distante June 1815. As décadas de turbulência abrem então à Pax Britannica e ao Britain's imperial century. — Hmm. Always remember Lord Acton: ‘Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely’. As lições da road to Waterloo ecoam na atualidade. Na Eurozone prossegue a tragédia grega, com as chancelarias a perceberem que por Athens passa o papel de Germany na definição das suas políticas domésticas e não o cumprimento do mandato popular pelo Syriza ou os trocos helénicos na geopolítica do Mediterrean Sea. Por cá é o Brexit debate. Rome lança a Laudato Si/Sulla cura della casa comune, original encíclica do Pope Francis sobre a questão climática, reposicionando as atenções no lugar da espécie humana na natureza.

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Hot, hot days around. Os historiadores, tal qual os literatos, usam arrumar o tempo por épocas. Por aqui regressa-se à era do Duke of Iron e do Lion Sea, o Field Marshal Arthur Wellesley, HG 1st Duke of Wellington, e o Vice-Admiral Horatio Nelson, 1st Viscount Nelson, heróis que entre as batalhas de Trafalgar (1805) e de Waterloo (1815) reescrevem o futuro político do euromundo. O interesse pelo bianiversário da Battle of Waterloo extravasa as comemorações. What if? é ainda o nome do jogo realizado em vários quadrantes para imaginar como seria hoje o old continent e os seus desviacionismos a East & West caso aquele Summerday apresentasse resultado diferente no choque das espadas. Justamente entre os ora ditos liberal Napoléon vs. autocrat Wellington? Assim, aqui e além esquecendo os exemplares da instântanea dinastia córsica espalhados pelos tronos de North & South, que europeus seríamos? No chuvoso domingo de June 18, 1815, em campo aberto junto a Waterloo, cerca de 220,000 homens entre cavalos e canhões lutam entre si até há morte por visões competitivas. Após 10 infinitas horas, general invencível em inúmeras batalhas, o outrora Napoleone di Buonaparte afirma ter sido ali emboscado por Deus. 

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E que dizer dos destinos cruzados na colina a South de Brussels? Exilado em St Helene, desde o ano da derrota, Bonaparte morre em 1821, sem aura mas após Confession, Extreme Unction & Viaticum. O sabre divino esgrimido pelo Duke of Wellington vai para Westminster. Wellesley é Tory British Prime Minister em 1828-30 e em 34, venerado como um dos Greatest Britons. O sucessor no No. 10 prepara agora o in/out referendum que, pelo voto popular, redefinirá o lugar de Britain in the World. O Brexit debate acelera por cá, aliás, com as alas a clamarem por inequívoca financial fairness no newest political game. Do lugar da espécie humana na changing Earth trata a Laudato Si/Sulla cura della casa comune, a segunda encíclica do Pope Francis, dedicada aos desafios climáticos. Centrando as mentes no “sfruttamento insensato delle risorse del pianeta”, o pontífice aponta a “miseria globalizzata” e foca o “legame inscindibile tra custodia del creato e promozione della giustizia.” A abrir estão belas palavras de San Francesco d’Assisi: — Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra matre Terra, la quale ne sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.


St James, 22nd June

Very sincerely yours,

V

A VIDA DOS LIVROS

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De 22 a 28 de junho de 2015.


A nova Encíclica do Papa Francisco «Laudato Si’ – Louvado Seja, sobre o cuidado da casa comum» (2015) trata da questão ecológica, iniciando-se com a invocação do «Cântico das Criaturas» de S. Francisco de Assis: «Louvado sejas Senhor com todas as Tuas criaturas, especialmente o senhor irmão Sol, que clareia o dia e que, com a sua luz, nos ilumina…».

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GUARDAR A CRIAÇÃO INTEIRA
Não se apagaram da nossa memória as palavras do Papa Francisco quando iniciou o pontificado, salientando a sua vocação de guardião não apenas dos cristãos mas da humanidade. Essa tarefa «diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro do Génesis e (…) mostrou S. Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente». Acaba de ser publicada a nova encíclica do Papa, «Laudato Si’», sobre questões ambientais e o cuidado da casa comum e o tema não poderia ser mais atual, referindo-se à desigualdade no acesso e na distribuição de recursos e à sobre-exploração da natureza. «A Terra não é um legado dos nossos pais, mas um empréstimo dos nossos filhos». Assim, se há questão fundamental que deva ser aprofundada nos dias de hoje, perante os efeitos da crise económica e financeira, é o da escassez de recursos naturais disponíveis e o da responsabilidade comum da humanidade em face da sua utilização. É preciso uma revolução ética e económica contra a mudança climática e a crescente desigualdade. A «ecologia humana» obriga a ligar o cuidado em relação ao meio ambiente à defesa da natureza humana e da dignidade das pessoas. Do mesmo modo, importa salientar o flagelo da fome e do desperdício de alimentos, bem como os efeitos imprevisíveis do aquecimento global, da desflorestação e da poluição. Os temas são momentosos e obrigam a um especial cuidado em relação ao futuro. A ideia de um progresso sem fronteiras nem limites é perigosa e tem gerado o agravamento das desigualdades e das injustiças, além de que o endividamento excessivo tem-se feito à custa de uma destruição descontrolada dos recursos naturais, de um consumismo egoísta e cego relativamente ao futuro, e não numa lógica de partilha equilibrada das riquezas.

 

UMA NOVA IDOLATRIA
Um novo bezerro de ouro foi construído, prevalecendo o domínio global das entidades predadoras do planeta, que acumulam riquezas, enquanto aumenta o fosso entre ricos e pobres. Como afirmou o Papa Emérito Bento XVI, «a monopolização dos recursos naturais, que em muitos casos se encontram nos países pobres, gera exploração e frequentes conflitos entre as nações e dentro delas. E muitas vezes estes conflitos são travados no território desses países, com um pesado balanço em termos de mortes, destruições e maior degradação». Por isso, o Papa Francisco tem recordado que: «Deus perdoa sempre, os homens às vezes, mas a natureza nunca perdoa». Deste modo, em nome da preservação da natureza, a vida humana tem de ser reconhecida como centro das sociedades, em lugar do dinheiro, da especulação e da tentação dos ganhos fáceis e imediatos. Daí que a comunidade internacional, na expressão da encíclica «Caritas in Veritate», tenha o imperioso dever de encontrar as vias institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, com a participação dos países pobres, de modo a planear em conjunto o futuro. Como se diz na encíclica agora publicada: «A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum» (LS, 13). Ao longo dos diversos capítulos, o Papa Francisco lança um alerta a todos os cidadãos, governantes e comunidade científica. O que está a acontecer à nossa Casa? A poluição e as mudanças climáticas, a questão da água, a perda de biodiversidade, a deterioração da qualidade de vida humana e a degradação social, a desigualdade planetária, a fraqueza das reações – nada nos pode deixar indiferentes. «A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo». Há que assumir um Evangelho da criação, a partir da luz que nos oferece a fé, da sabedoria das narrações bíblicas, do mistério do universo, da mensagem de cada criatura na harmonia de toda a criação, bem como de uma comunhão universal, do destino comum dos bens e do olhar de Jesus. «Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus (Lc., 12, 6). E o certo é que há uma raiz humana na crise ecológica. Se a tecnologia trouxe inúmeros benefícios, importa compreender os seus limites. A ideia dum crescimento infinito ou ilimitado parte de um falso pressuposto, o de que «existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos» (Cf. L.S., 106). A globalização do paradigma tecnocrático e a crise do antropocentrismo moderno obrigam a repensar uma estratégia de desenvolvimento humano.

 

UMA ELITE PRIVILEGIADA
Como afirmou o Cardeal Peter Turkson, Presidente do Conselho Pontifício da Justiça e Paz, «grande parte do mundo permanece na pobreza apesar dos recursos abundantes, enquanto uma elite privilegiada controla a maioria da riqueza mundial e consome a maior parte dos recursos». Temos de compreender que «a cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição» (L.S., 111). Precisamos de um olhar diferente, de ideais, políticas, educação, estilo de vida e espiritualidade que resistam ao paradigma tecnocrático. Precisamos de diálogo e transparência nos processos decisórios, cooperação internacional e atenção às gerações futuras. Eis a encruzilhada em que nos encontramos. E recorde-se que teremos em 2015 a realização da Conferência Mundial do Clima em Paris, estando prevista uma intervenção do Papa Francisco na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 25 de setembro, para abordar os temas fundamentais da encíclica «Laudato Si’». Aliás, não esquecemos o que Maria de Lourdes Pintasilgo disse quando apresentou o documento «Cuidar o Futuro» da Comissão Independente das Nações Unidas para a População e Qualidade de Vida (1998): «a qualidade de vida aparece como o objetivo essencial, a partir do momento em que o limiar da quantidade (além do nível da mera sobrevivência) é ultrapassado. Deste modo, a qualidade de vida torna-se o princípio diretor a orientar um consumo sustentável – cujo aumento, por vezes, conduz a uma qualidade de vida mais baixa». A qualidade de vida deve, por isso, surgir como «um conjunto articulado de direitos e deveres, e como um objetivo claro tanto para os decisores políticos como para os elementos dinâmicos da sociedade civil». Temos de compreender ainda que «a cultura do relativismo é a mesma patologia que impele uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objeto, obrigando-a a trabalhos forçados ou reduzindo-a à escravidão por causa de uma dívida…» (L.S., 123). Num momento especialmente difícil da vida humana, política, económica e social, é significativo que, para assumir um conceito de ecologia integral, o valor do trabalho surja enaltecido. «Por isso, a realidade social do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e duma discutível racionalidade económica, “se continue a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos”» (L.S., 127). Não é aceitável renunciar a investir nas pessoas para obter maior receita imediata. Se o que tem mais valor é o que não tem preço, as pessoas têm de estar em primeiro lugar. A maximização do lucro é a base da economia que mata. Urge educar para a sobriedade e para uma aliança entre a humanidade e o ambiente. Estaremos aptos a ouvir?

 

Guilherme d'Oliveira Martins

SONETOS DE AMOR MORDIDO

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Femme au corsage bleu, de Rouault

 

19. À MULHER FATAL

 

Tropecei em ti como na vida

uma vez só se cai desamparado,

sem nunca ser por falta de cuidado

e sempre só por sina desmedida...

 

 Transpus o passo não considerado

corri a dar-te a chave do meu peito

por cego amor, não sei, sei que por preito

à sedução do teu olhar magoado...

 

Não era piedade, era respeito,

era essa rendição de que é feito

o amor, mais que o desejo de agradar; 

 

era, na tua dor, a redenção

de mim com ela, com paixão,

meu sacrifício posto no altar...

 

P.S. -  A paixão é uma sujeição ou submissão, seja ao sofrimento imposto e assumido, seja a uma fixação ou obsessão da alma ou dos sentidos. Etimologicamente, a palavra vem da latina passio, que significa padecimento e passividade. Por este seu cariz de entrega ou consentimento, a paixão sempre nos parece fatal, e amiúde a confundimos com algo que não quereríamos mas finalmente - por fraqueza, exaustão ou desejo - aceitamos e sofremos. E tanto chamamos Paixão à de Cristo, esse caminho da cruz ou via sacra, como à loucura de um homem ou mulher que tudo esquece - convenções, fortuna, família, religião, pátria, o que for a sua circunstância - para totalmente se render àquela ou aquele que ardentemente deseja... A esse objecto, quando pessoa, chamamos fatal. Porque não se luta contra o fado. Na alma sofremos todos de entre miopia e presbitia. O olhar do coração não mede distâncias, quase sempre vê melhor, de longe, o que está perto, e, de perto, melhor o que está longe... As razões do coração - de que Pascal falava - são lúcidas porque afectuosas, afectuosas porque lúcidas. Somos vocacionados para pensarsentir, e ninguém ama ou odeia só com a cabeça ou só com o coração. As paixões vulgares são uma derrota do querer bem pelo desejo, como quem se afoga por não saber nadar. A sedução imediata do prazer dá-se quando o nosso olhar não chegou ao outro porque se fixou na curteza da nossa satisfação. Olhar míope. E presbíopes somos quando não vemos, para além da névoa próxima ou da desfocagem do nosso olhar, a beleza íntima de outro ser humano. Só amamos - aprendemos a amar - quando nos encontramos com a interrogação - que é súplica essencial - do outro que, como nós, espera ser amado. Quando compreendemos que o amor é a fidelidade da resposta que damos. E assim todo o amor verdadeiro é paixão secreta e forte.  Ao longo da vida, fui deparando com aventuras e dramas passionais, desde os que lia nos romances (e, quando jovem, li muita literatura do século XIX, repleta de adultérios e extravagâncias sentimentais) ou encontrava na história real de heróis e reis, aos que me surpreendiam na roda de gente conhecida. Confesso que lhes ganhei medo, muito mais do que ao inferno com que nos ameaçavam vários sermões e que nunca me assustou. Cedo aprendi a confiar na misericórdia de Deus, e a pensar e sentir que o coração da misericórdia bate quando se reconhece o sofrimento. É-me difícil explica-lo, mas a verdadeira paixão amorosa não é, nem pode ser, exclusiva, pois é uma cegueira que se ilumina por dentro, ao encontro dessa graça que está na dor universal que se partilha.

 

Camilo Martins de Oliveira

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