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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

PanteraCorRosa.jpg

 

Faixa de Vida Urbana Intensa: Gonçalo Byrne e a Pantera Cor-de-Rosa (1971-75)

 

Gonçalo Byrne (1941) sempre esteve empenhado em encontrar significado para a arquitectura através do desenho urbano. Para Byrne a arquitectura é projecto do vazio, é transformação da paisagem. O seu material de trabalho é a teoria, a história, o desenho, a construção e a cidade. (Angelillo, 1998)

Em ‘Lisbon Story’, de Wim Wenders, Winter procura pelo realizador Friedrich para o qual trabalha gravando sons pela cidade inteira para o seu novo filme. Quase a terminar a sua tarefa, descobre Friedrich a viver dentro de um carro velho, num cenário desolador. O pano de fundo é o edifício Pantera Cor-de-Rosa de Gonçalo Byrne e Reis Cabrita, em Chelas. Friedrich desaparecera porque ficara apaixonado pela cidade. Não conseguindo conter-se tinha de a viver intensamente percorrendo-a durante todo o dia, todas as suas ruas e locais. Ora, naquele momento, do aparecimento de Friedrich, os quatro blocos do Pantera Cor-de-Rosa são a única referência urbana num cenário que parece deserto e agreste. Acentua-se assim, no fim do filme, a diferença entre o subúrbio isolado (contudo sobrelotado) e a cidade antiga central densa (contudo vazia).

O conjunto Pantera Cor-de-Rosa foi desenhado no início dos anos setenta, para uma novíssima zona da cidade, sem referências e sem pré-existências – Chelas. Sob o desígnio de se constituírem faixas de vida urbana intensa, o Plano de Urbanização de Chelas (1960-64) sob coordenação primeiro de José Rafael Botelho e depois de Francisco da Silva Dias, desejava suplantar as falhas do plano dos Olivais. 

O plano de Chelas propunha uma estrutura urbana compacta, identificável, plurifuncional e socialmente diversificada. Ao abandonar o conceito de célula, pretendia recuperar os modelos urbanos tradicionais e criar zonas lineares de vida urbana intensa - a rua pedonal actuava como elemento urbano gerador e como espaço de convívio. As massas edificadas, definidas com soluções tipológicas diversas, desenhavam os principais percursos. A intervenção do plano foi executada faseadamente, com urgência maior nas zonas mais a Norte, próximas dos Olivais, contudo na realidade, foi dada maior importância ao realojamento o que contribuiu para o isolamento físico, social e funcional do bairro. No início dos anos setenta o Gabinete Técnico de Habitação entregou a planificação da área do vale de Chelas a um grupo de sete arquitectos, que tinham realizado com êxito o plano dos Olivais. 

Uma das zonas foi entregue ao atelier de Nuno Teotónio Pereira ,mas por causa da prisão do titular do atelier, por motivos políticos, os jovens Gonçalo Byrne e António Reis Cabrita (com quem Byrne iniciou uma colaboração e que continua até nalguns dos seus mais recentes projectos), realizam o projecto urbano. O complexo, situado na Zona N de Chelas, constituído por trezentos e oitenta e dois fogos de habitação social, distribuídos por quatro edifícios lineares, representou a base de trabalho para a organização do primeiro escritório de Gonçalo Byrne. È uma proposta que visa reinventar referências urbanas tradicionais numa circunstância que o plano lhes era indiferente. O projecto apresenta uma solução singular, na sua envolvente – Manuel Vicente, Vítor Figueiredo – em que os edifícios são legíveis objectualmente, definindo-se nos espaços que sobram entre o traçado viário. O conjunto Pantera Cor-de-Rosa responde a uma ordem mais estável e organizadora, onde podem ser reconhecíveis o recurso às estruturas urbanas tradicionais – a rua pedonal e a praça. Uma forte geometria limita a implantação dos edifícios longos que pretendem formar entre eles faixas de vida urbana intensa, possibilitando a existência de relações de sociabilidade. A existência da praça reforça ainda mais o pretendido sentido urbano, conferindo-lhe uma identidade. 

O projecto de Byrne e de Reis Cabrita transformou um lugar fragmentado e vazio num local urbano, unitário e coerente. Byrne partiu da ideia de que são os elementos da cidade que estruturam um projecto de arquitectura, porque embora obedecendo a condicionalismos o objecto depois de construído estabelece uma condição e contribui para a evolução do lugar em que se insere. Byrne procurou dar a dimensão de monumento ao edifício. As fachadas cor-de-rosas e brancas são ritmadas por elementos singulares – galerias múltiplas, cilindros que albergam caixas de escadas, variações no tema dos vãos, passadiços entre os blocos. Ao longo da rua tira-se partido escultórico das formas que os percursos pedonais assumem. Embora nalguns elementos linguísticos e compositivos possam encontrar-se referências ao primeiro modernismo – pela cor e pela uniformização – Gonçalo Byrne e Reis Cabrita introduziram camadas de complexidade às fachadas, contrariando a monotonia funcionalista.

Ainda antes de terminada, esta obra converteu-se numa referência para toda a geração de arquitectos, que se tinham formado no fim dos anos setenta e estava aberta a uma dimensão internacional. 

 

Ana Ruepp