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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

William Shakespeare.JPG
Shakespeare

 

Minha Princesa de mim:

 

Almocei lampreia com velhos amigos. Regámo-la com um verde tinto de Ponte da Barca, tem só 9% e aquela pontinha de acidez que casa bem com o vinagre dessa cabidela (digo eu) que é, afinal, um arroz de lampreia na boa tradição minhota. Curiosamente, a conversa virou-se para considerações sobre a justiça, tecidas, se bem me lembro, em referência às discussões em torno da dívida grega. O Tê, que estava ao meu lado, perguntou-me como poderemos definir justiça. Respondi-lhe lembrando-lhe a velha definição de Ulpiano, que aprendêramos, logo no 1º ano, em História do Direito Romano: Justitia est jus suum cuique tribuendi. Sempre gostei da frase, e sempre a traduzi assim: justiça é o dever de atribuir a cada um o seu direito... - talvez por desse modo formular o dinamismo inerente à justiça e ao espírito de quem a procura. Só nesse sentido, penso comigo, a justiça é igual para todos. Ela é cega, sim, a preconceitos de ordem religiosa, política ou social, pois seja quem for aquele para quem procuramos justiça, não pode ter, perante ela, qualquer outro estatuto que não seja o de sujeito de direitos, igual a todos os outros. Ora, precisamente porque só há justiça quando se procura o direito por oposição ao torto (recordo ter muitas vezes comentado com o Miguel Galvão Telles a frase de Cossio: «o direito é ontologicamente comportamento humano»), nem sempre nem a todos se deverão reconhecer os mesmos direitos, pois estes, tal como os homens seus sujeitos, vivem no seu tempo e no seu modo. Daí que seja tão acertada essa expressão com que gosto de definir a procura da justiça: jurisprudência. Sabes, minha amiga e confidente, como me ocorre tantas vezes a noção que Sto. Agostinho dá da prudência, e que S. Tomás de Aquino retoma e interpreta na parte II da Summa Theologiae: A prudência é um amor que escolhe com sagacidade. Acabei, chegado a casa, por me recolher na leitura do livro V da Ética a Nicómaco, de Aristóteles, que trata da justiça. Quando envelhecemos, recordamos mais e encontramos mais prazer no convívio com textos que, no passado, talvez nos tenham um tantito aborrecido... Mas, ia eu dizendo, veio a conversa sobre a justiça à baila, porque alguém falara na questão da dívida grega... Não vou maçar-te com tal embrulho, deixa-me só dizer-te que me acontece perguntar de que é que se está a falar... Melhor dizendo: interrogo-me sobre a sabedoria financeira, o conhecimento da história e, ainda, a sageza política da maioria dos intervenientes em debates sobre essa matéria: são vários os casos passados a que, ao abrigo de teorias (como as da "dívida odiosa", "ilegítima", ou de "vício de consentimento", ou de interpretação dos artigos 55 e 103 da Carta das Nações Unidas) ou de interesses políticos e estratégicos simplesmente pragmáticos (o perdão da maior parte da dívida alemã no início da passada década de 50, ou da dívida do Iraque de Sadam, depois da queda deste), foi dado um tratamento diferente da simples aplicação do princípio de direito internacional de que pacta sunt servanda... No caso grego, como noutros por aí pendentes ou emergentes, penso que seria mais justo considerar as situações de miséria e desespero resultantes, para gente inocente, de uma aplicação inflexível de critérios de rigor extremo e medidas de "austeridade", e mais inteligente ponderar as probabilidades de agravamento e incumprimento decorrentes da deterioração das condições de sustentabilidade económica e financeira daqueles países. Como gostas de teatro e admiras Shakespeare, termino esta lembrando um artigo que li na revista americana (de Cambridge, Massachusetts) The Baffler, em que Robert Appelbaum compara isto de que estamos a falar (justiça e misericórdia ou, se quiseres, jurisprudência no sentido que acima lhe dou) com a trama de O Mercador de Veneza, em que o judeu Shylock recusa qualquer outra forma de reembolso ou compensação - da dívida que junto dele contraiu o desventurado mercador António  - que não seja, quer o pagamento integral da respectiva soma, quer a alternativa prevista: uma libra de carne talhada mesmo junto ao coração do mercador. Nem o pagamento que uma terceira personagem se propõe voluntariamente fazer, chegando mesmo a oferecer o dobro ou triplo do valor da dívida, o demove. Só aceita, em nome da justiça, o cumprimento pelo próprio devedor ou a libra de carne tirada de junto do seu coração... Bem hajas por me leres as cartas, inda que não respondas (será preguiça?): não podes sequer pesar bem quanto me alivia desabafar contigo... Que seria de mim, quem voltaria a convidar-me para um almoço ou simples bate-papo, se eu levianamente passeasse por aí estas maginações? Justitia est osculum tuum tibique tribuendi. E é um beijo amigo e grato.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira