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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CONTOS BREVES

Jogos para crianças.JPG
Jogos para crianças, Bruegel o velho

 

12. SOMOS COMO RIOS...

 

A Inês, a caminho dos quinze, já não pede colo ao Avô. Há anos! Emancipou-se, foi-se fazendo senhorita, diz umas coisas, manda umas opiniões, mas sempre lá de longe, dois passos atrás, afastando-se rapidamente do beijinho com que saúda: "Olá Avô, como está?" O velho, manhoso e brincalhão, invariavelmente lhe responde, à boa lusitana maneira, que vai andando, que já andou muito e por muitos anos... "Olha, menina, já tenho idade para estar melhor ou pior, até posso ser resmungão sempre que isso me ajude, ou se me apetecer ou calhar que assim seja... Mas tu... tu é que não te safas, tens pela frente uns anos para mostrares os dentes (e não te esqueças de os lavares todos os dias várias vezes!) num sorriso largo, para dizeres «Estou óptima! Viva a república!», percebes?" Esta neta deita-me então uns olhos, meu Deus, nem sei como explicar... Ou talvez saiba, mas não quero, não gosto, até parece que está a fazer troça! Não deve estar, não, coitadinha, ela é tão boazinha... Será? Tam-tam-tam-taaam!, começo logo a ouvir a 5ª sinfonia do Beethoven, será o destino a bater-me à porta? E ponho-me a cogitar : será que a miúda tem a mania de que já é o máximo, ou será que cresceu mesmo e eu, saudosista, não dei por isso, ou será - assim canso a cabeça - que estou xéxé e já não me lembro da "idade do armário"?  Seja como for, lá se senta e se vai chegando a mim, sobretudo se eu estiver sentado ao computador, escrevendo... A curiosidade é mãe de todas as coisas, não é? - "O Avô continua a escrever muito? E não escreve contos dos netos?" Sinto-me logo escravizado, cheio de ganas de ir reclamar, para mim também, caramba!, o direito ao lazer, férias pagas, exílios em paraísos tranquilos... Ergo o rosto severo e inquisidor, desfaço-me num sorriso parvo, mas logo  todo o meu mim se amansa: não tenho outro espelho senão o sorriso que alegra os olhos e a boca da Inês: vejo então que é, afinal, meu também aquele sorriso, nada tem de parvo, parvo fui eu ao pensar que já não tinha idade para ser vencido, ou por não ter logo entendido que as famílias são rios de nascentes longínquas e que vão desaguar no infinito. As gerações são imperfeições que, correndo como as águas, se sucedem... Tempos depois, em manhã de sossego e solidão, atendo um telefonema lá de longe, da Inês. "Não tens escola?" - "Tenho, mas não fui, dói-me a barriga, mas a Mãe está comigo e logo à tarde talvez já possa ir... O Avô está a escrever? Fala dos netos?"  Falámos nós os dois, sim, de livros e da vida, do tempo e de coisas banais, dessas que são desinteressantes mas valem muito por serem desinteresseiras... A Inês, no dia em que se surpreendeu mulher, voltou a sentar-se ao colo do Avô, por telefone, a mais de mil quilómetros de distância. 

 

Camilo Martins de Oliveira