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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

OS HUMANOS E OS ANIMAIS

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I - A CAPACIDADE DE E PARA SOFRER E DE SENTIR

 

1. Na tradição ocidental dominante, o mundo existe para benefício dos seres humanos, que sobre ele exercem o seu domínio. Em desfavor desta posição de superioridade e de desigualdade, defende-se que todas as espécies de vida fazem parte do ecossistema global, pelo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos constitui, juntamente com a Declaração Universal dos Direitos do Animal e a Carta da Terra, um ponto de partida para o modo segundo o qual todo o ser humano se deve relacionar com os outros, com os animais e a natureza. Coaduna-se com a visão ecologista de respeito pela natureza, com a regra de respeitar e tratar bem os animais. Se é degradante e condenável degradar a natureza, também o é a violência contra os animais. A defesa dos direitos dos animais é cada vez mais uma extensão da defesa dos direitos humanos, dado que defendendo-se aqueles que não têm capacidade de defender os seus próprios direitos, tem-se uma conduta humanista, beneficiando-se também os humanos. Indefesos e sem voz, os animais são o paradigma da vítima, continuando a luta pelos direitos dos humilhados e ofendidos, das minorias. Se é errado ser racista ou ter as mulheres como inferiores aos homens, também o é discriminar algumas espécies em favor de outras, sendo antiespecistas aqueles que não aceitam uma atitude de superioridade da espécie humana em relação às outras espécies animais, desaforo que têm por idêntico ao que no passado tiveram os brancos pelos negros ou os homens a respeito das mulheres. É uma tomada de consciência e uma atitude de solidariedade para com os não-humanos, tendo todos os seres sencientes o mesmo direito à vida, humanos e não-humanos, onde a capacidade de sofrer e de sentir é ponto de referência nuclear. 

2. Assim, na perspetiva de muitos, a capacidade de e para sofrer e de sentir é a caraterística essencial que dá a um ser o direito à consideração igualitária. A questão vital não consiste em saber se os seres humanos e não-humanos podem falar ou pensar, mas sim se podem sofrer. Uns e outros têm capacidade de e para sofrer. E reagem à dor, sentindo-a. A linha inexcedível não está na faculdade do discurso ou da razão, o que é exemplificado com animais adultos mais racionais e sociáveis que um recém-nascido de um dia, uma semana, um mês, ou de certos deficientes incapacitados. Mais se argumenta de que se o facto de algumas pessoas não serem da nossa raça não nos dá o direito de as explorar, tal como o facto de algumas serem menos inteligentes que outras não significa que os seus interesses tenham de ser ignorados, também o facto de certos seres não serem da nossa espécie não nos dá o direito de os explorar, assim como o facto de os animais serem menos inteligentes que nós não nos dá o direito de os ignorar. Atribuindo mais relevância aos interesses de membros da sua raça, aquando de um confronto entre os seus interesses e os de outra raça, os que assim pensam, diz-se, violam o princípio da igualdade, tendo havido tempos em que os de ascendência europeia não aceitavam, na sua maioria, que a dor fosse igual ou valesse tanto quando sentida, por exemplo, por índios, africanos ou escravos, como quando o era por europeus. Daí que os especistas atribuam maior peso aos interesses dos membros da sua espécie quando há um conflito entre esses interesses e os de outras espécies, uma vez que não aceitam que a dor sentida por cavalos ou ratos (não-humanos) seja igual ou tão má como a sentida por seres humanos. 
3. Por sua vez, o artigo 11.º da DUDA, de 1978, estabelece: “Todo o ato que implique a morte de um animal, sem necessidade, é um biocídio, isto é, um crime contra a vida”. Prescrevendo o art.º 14.º, alínea b): “Os direitos dos animais devem ser defendidos pela lei como o são os direitos do homem”. A aceitação e consagração de tais princípios são indicadores civilizacionais e morais, podendo também sê-lo em relação aos animais pela substituição do conceito animal coisa pelo de animal sensível. A necessidade de subtrair em definitivo os animais, como seres não-humanos, à categoria de coisas e máquinas e de alterar, entre outros, o art.º 202.º do Código Civil Português (noção jurídica de coisa), é tida como uma das tendências vanguardistas atuais, a ter acolhimento futuro na lei, baseado no pressuposto de que esta deve traduzir a consciência social de que é contemporânea. É inquestionável que esta posição influencia decisivamente a proteção de seres não-humanos, com a consequente transformação de condutas e paradigmas, como o exemplificam as tendências legislativas de o direito de propriedade sobre os animais não contemplar o serem vítimas de atos cruéis, maus tratos, formas de treino inadequadas ou outros atos de que resulte abandono ou sofrimento injustificado.
Sucede que uma tendência para uma igualdade que exige que o sofrimento e o sentir sejam sempre tidos em linha de conta, em termos igualitários, em relação a um sofrimento e sentir semelhante de qualquer ser (mesmo que de outra espécie), pode conduzir a situações delicadas ou absurdas. Mesmo que se entenda que a extensão da igualdade não implica tratamento igual, mas sim consideração igual. Ou defendendo-se que a sua ampliação de um grupo a outro não acarreta que devamos conceder a ambos os grupos os mesmos direitos e tratá-los de igual modo, uma vez depender da natureza dos seus membros.  

 

5 de junho de 2015

Joaquim Miguel De Morgado Patrício    

ATORES, ENCENADORES (XXVIII)

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Adelina Abranches (in http://aps-ruasdelisboacomhistria.blogspot.pt/)

 

ADELINA E AURA ABRANCHES: RENOVAÇÃO FAMILIAR

 

Há uma certa constância, ao longo dos tempos, na renovação geracional da profissão e da atividade de atriz e ator. No século passado, os casos de Amélia Rey Colaço e Mariana Rey Monteiro, ou de Laura Alves e Vasco Morgado Filho podem servir de exemplo, entre outros mais.

Precisamente: trazemos hoje a evocação de duas atrizes exponenciais na história do teatro-espetáculo português, mãe e filha, que cobriram, em atividade simultânea ou sucessiva, quase um século de atividade contínua, a partir da segunda metade do século XIX. Assim, Adelina Abranches, nascida em 1866, estreou-se com 5 anos de idade, no Teatro D. Maria II (Janeiro 1872). Morreu em 1945, celebram-se pois daqui a meses os 75 anos. E a sua filha, a atriz Aura Abranches, nasceu em 1896 e morreu em 1962.

Também da família, filho de Adelina, irmão de Aura, o ator Alfredo Ruas fez a sua época, mas não abordaremos aqui.

Ocorre que Adelina Abranches esteve em cena, como se diz na gíria teatral, até pelo menos 1942. E Aura estreou-se no Teatro D. Maria II em 1907, num espetáculo protagonizado pela mãe. E em cena se manteve até 1962, tendo encerrado a carreira com uma impressionante interpretação do vicentino “Pranto da Maria Parda” em 1961, a que assisti: inesquecível pela qualidade e já agora pela formidável ovação do público, no final…

Ora bem: para lá desta recordação, a que acrescento muitas outras de Aura Abrantes, quero aqui referir um aspeto interessante das duas carreiras complementares. É que tanto Adelina como Aura surgem ligadas à estreia/revelação predominante de autores contemporâneos de cada uma delas. E isto, no que respeita ao teatro europeu ou brasileiro - pois ambas representaram no Brasil - mas sobretudo no que se refere ao teatro português. E Isto porque, designadamente no tempo de Adelina Abranches, quase não se representava entre nós qualquer outro “teatro” que não fosse, ou português, ou espanhol ou francês.

Mas o mais relevante, sobretudo no que diz respeito ao repertório português de ambas as atrizes, é a sua modernidade – para a época, claro: mas também a sua qualidade, e essa já não obriga a restrições cronológicas.

Senão, vejamos: Adelina estreou peças de Marcelino Mesquita, de D. João da Câmara, de Eduardo Swalbach, Bento Faria, Henrique Lopes de Mendonça, Vasco Mendonça Alves, Ramada Curto, entre outros mais. E sobretudo, pela qualidade e pela repercussão à época e ainda hoje, registe-se a estreia “escandalosa" de “O Lodo” de Alfredo Cortez em 1923 e de “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão, em 1927.

Ora, no mesmo registo se desenvolveu a carreira de Aura Abranches, com maior internacionalização de repertório, agora mais recetivo a autores e peças de outras origens. Mas evoquemos, no que se refere ao teatro de autores portugueses, além de alguns já citados – Schwalbach, Ramada, Cortez – Júlio Dantas, Chagas Roquete e autores estrangeiros de grande modernidade e ainda hoje de grande qualidade – por exemplo Alexandre Casona, Luigi Pirandello, Arthur Miller, este com “As Bruxas de Salem” que fez época no D. Maria II.

Mas importa ainda referir a intervenção de Adelina e Aura Abranches numa iniciativa aliás gorada mas notável no sentido da modernização. Tratou-se do chamado “Teatro da Natureza”, que em 1911 reuniu, no Jardim da Estrela, por iniciativa do cenógrafo e futuro professor do Conservatório e diretor do D. Maria II Augusto Pina, um grupo de artistas apostados ma atualização do repertório clássico, enquadrando-o numa versão moderna. Estrearam então a “Oréstia ” de Ésquilo, com um elenco notável: Adelina e Aura Abranches, Alexandre de Azevedo, Barbara Wolkar…

Mas o espetáculo durou três dias!

(cfr. Luis Francisco Rebello “Dicionário do Teatro Português” Prelo ed pags. 72-74.e  “O Teatro Simbolista e Modernista”  ed. ICP 1979 pag. 86;  Duarte Ivo Cruz “História DO Teatro Português” ed. Verbo 2001 pag.240; Gloria Bastos e Ana Isabel E. Teixeira de Vasconcelos “O Teatro em Lisboa no Tempo da Primeira Republica” ed. MNT 2004 pag.146).

 

DUARTE IVO CRUZ