SONETOS DE AMOR MORDIDO
Femme au corsage bleu, de Rouault
19. À MULHER FATAL
Tropecei em ti como na vida
uma vez só se cai desamparado,
sem nunca ser por falta de cuidado
e sempre só por sina desmedida...
Transpus o passo não considerado
corri a dar-te a chave do meu peito
por cego amor, não sei, sei que por preito
à sedução do teu olhar magoado...
Não era piedade, era respeito,
era essa rendição de que é feito
o amor, mais que o desejo de agradar;
era, na tua dor, a redenção
de mim com ela, com paixão,
meu sacrifício posto no altar...
P.S. - A paixão é uma sujeição ou submissão, seja ao sofrimento imposto e assumido, seja a uma fixação ou obsessão da alma ou dos sentidos. Etimologicamente, a palavra vem da latina passio, que significa padecimento e passividade. Por este seu cariz de entrega ou consentimento, a paixão sempre nos parece fatal, e amiúde a confundimos com algo que não quereríamos mas finalmente - por fraqueza, exaustão ou desejo - aceitamos e sofremos. E tanto chamamos Paixão à de Cristo, esse caminho da cruz ou via sacra, como à loucura de um homem ou mulher que tudo esquece - convenções, fortuna, família, religião, pátria, o que for a sua circunstância - para totalmente se render àquela ou aquele que ardentemente deseja... A esse objecto, quando pessoa, chamamos fatal. Porque não se luta contra o fado. Na alma sofremos todos de entre miopia e presbitia. O olhar do coração não mede distâncias, quase sempre vê melhor, de longe, o que está perto, e, de perto, melhor o que está longe... As razões do coração - de que Pascal falava - são lúcidas porque afectuosas, afectuosas porque lúcidas. Somos vocacionados para pensarsentir, e ninguém ama ou odeia só com a cabeça ou só com o coração. As paixões vulgares são uma derrota do querer bem pelo desejo, como quem se afoga por não saber nadar. A sedução imediata do prazer dá-se quando o nosso olhar não chegou ao outro porque se fixou na curteza da nossa satisfação. Olhar míope. E presbíopes somos quando não vemos, para além da névoa próxima ou da desfocagem do nosso olhar, a beleza íntima de outro ser humano. Só amamos - aprendemos a amar - quando nos encontramos com a interrogação - que é súplica essencial - do outro que, como nós, espera ser amado. Quando compreendemos que o amor é a fidelidade da resposta que damos. E assim todo o amor verdadeiro é paixão secreta e forte. Ao longo da vida, fui deparando com aventuras e dramas passionais, desde os que lia nos romances (e, quando jovem, li muita literatura do século XIX, repleta de adultérios e extravagâncias sentimentais) ou encontrava na história real de heróis e reis, aos que me surpreendiam na roda de gente conhecida. Confesso que lhes ganhei medo, muito mais do que ao inferno com que nos ameaçavam vários sermões e que nunca me assustou. Cedo aprendi a confiar na misericórdia de Deus, e a pensar e sentir que o coração da misericórdia bate quando se reconhece o sofrimento. É-me difícil explica-lo, mas a verdadeira paixão amorosa não é, nem pode ser, exclusiva, pois é uma cegueira que se ilumina por dentro, ao encontro dessa graça que está na dor universal que se partilha.
Camilo Martins de Oliveira