ATORES, ENCENADORES (XXIX)
Ribeirinho (in http://www.novatv.pt/)
EVOCAÇÕES PESSOAIS DE IONESCO E DE BECKETT
Começo com uma nota pessoal:
Tive o gosto de acompanhar o meu irmão, Manuel Ivo Cruz, numa visita de Eugene Ionesco e de sua mulher por Lisboa, lá para o início dos anos 60 do século passado. Vinham de Paris assistir a um espetáculo de Jacques Mauclair, na altura ator de primeiro plano, no Festival de Sintra: representou-se “La Leçon” e “Les Chaises”, de Ionesco, numa produção/realização de primeiríssima qualidade – ou assim a recordo, passadas estas dezenas de anos: mas já na altura me desdobrava entre estudos jurídicos e estudos de literatura dramática, e acompanhava por isso a produção dramatúrgica vinda do exterior.
Ionesco voltaria pessoalmente a Lisboa, e muitas e muitas vezes seria representado em Portugal ao longo do século. Recordo, entre muitas outras, as traduções de “A Lição” e “O Rinoceronte” por Luis de Lima, ou “O Novo Inquilino” por Luisa Neto Jorge, peças e versões que citei especificamente em livros e aulas.
Mas também tive ensejo de citar peças e espetáculos de Samuel Beckett, traduzidos e/ou produzidos em Portugal. E precisamente, quero agora evocar a inesquecível estreia que constituiu, em 1959, “À Espera de Godot” pelo Teatro Nacional Popular, dirigido por Francisco Ribeiro, no Teatro da Trindade.
Recordo bem esse espetáculo, que deu brado e provocou certo “escândalo” no então condicionado meio teatral português. Estávamos, repito, em 1959. Por todos os motivos, portanto, a iniciativa de Francisco Ribeiro - Ribeirinho, numa companhia subsidiada, (e que o não fosse…), com um autor praticamente na época desconhecido do grande público, constituiu um ato de coragem em todos os aspetos.
E mais: a direção e as interpretações do próprio Ribeirinho, num registo nada habitual na sua carreira de admirável cómico, bem como as de Costa Ferreira, Canto de Castro, Rui Mendes e do então muito jovem João Lourenço, atingiram um nível de qualidade e de homogeneidade acentuado pela própria estrutura do texto e da linguagem, numa verdadeira iniciação, do que costuma designar-se por “teatro do absurdo” ou mesmo por “antiteatro” – e essa designação é que se revela totalmente absurda: pois a peça é extremamente “teatral” no seu aparente estaticismo.
E o mesmo se dirá do teatro de Ionesco.
Mas também há qualquer coisa de musical no texto de Beckett, a saber, a repetição de um tema recorrente e simbólico, aqui sintetizado no diálogo desencantado, repetido vezes sem conta pelos dois protagonistas: “( Estragon) – Didi, vamos embora/(Vladimir) –Não podemos/ (E) - Porquê?/ (V) - Estamos à espera de Godot / (E) – Ah, é verdade”…
Pois bem: este aparente estaticismo é superado e sublimado pela força do próprio diálogo e pela profundidade da análise. “Espetáculo altamente discutido, que suscitou apaixonada polémica” escreveu Tomás Ribas. E também eu, na altura, frisei numa crítica a grande qualidade do espetáculo mas também o paradoxo implícito na peça: pois para além do fatalismo dominante, “os dois vagabundos que esperam por Godot fazem ressentir uma esperança situada mais acima das desgraças do dia-a-dia.” E terminava assim:
“Essa esperança não é compreendida no palco, Valdimir e Estragon vão-se embora. Tê-lo-á sido no entanto na plateia? Receamos bem que não”…
E há ainda muito a dizer sobre o Teatro Nacional Popular e sobre o Francisco Ribeiro.
DUARTE IVO CRUZ