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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE PALMO E MÃO V

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Inês:

Excelente a tua memória! De facto colocávamos a telefonia na mesinha de cabeceira, aquela telefonia de madeira com pano na frente já roto pela corrosão das humidades da casa das serras no Inverno, e, pelas vezes em que, para mudarmos a estação da rádio ao gosto de cada uma, não tratávamos de cuidar pano, teclas e aparelho que tanto nos traziam naqueles tempos. Mas a tua memória disse bem na tua carta:«ah! as cartas de Goeth ouvidas como quase pecado, recordas Isa? ». Sim, era quase pecado o modo como nos olhávamos quando as não entendíamos ou quando a nossa idade de entendimento as fazia adequar-se ao nosso corar. Ouvíamos uma voz que nos era familiar e que lia as Cartas de Goeth, ali, naquela estação certa. Nada, na altura, nos dizia a importância de Goethe ou Schiller ou a Antiguidade clássica. Para nós Goethe era o melhor escritor do mundo, o mais romântico e pronto. Por alguma razão a minha avó e a tua mãe não gostavam que ouvíssemos a leitura destas Cartas. E ali, junto à cama, a horas de ir já mais alto o sono, baixinho, escutávamos deliciadas um estranhamente perto.

Bem mais tarde conversámos as duas - no Jardim da Estrela, memória minha - sobre “Tormenta e ímpeto”, no qual Goethe participou, e bem tentámos reflectir sobre o subjectivismo, o instinto, a exacerbação de sentimentos, o amor e a idealização da mulher, naquele movimento artístico-literário alemão que foi lema do Romantismo. E ainda assim achámos que pela telefonia, há tantos anos atrás, tudo tinha sido mais prometedor aos sentidos – apesar das tristes adolescências - do imaginar como seria mundo. E era bem verdade que assim fosse, pois as coisas do mundo e do amor saíam para nós de dentro da rádio e passavam a morar numa pequena aldeia perto da nossa casa, onde recolhimento, natureza e escapismo nos fundiam os dias num segredo nem sequer entre nós duas partilhado.

Imaginarias que por entre esta viagem de trabalho me não escapará uma ída à Casa de Goethe em Frankfurt? Imaginarias, querida Inês, que não te escreveria a contar tão grande pormenor para nós, e seu impacto? Pormenor que poderá, quem sabe ?, ser o que nos explicaria, à data, as contradições sublimes do amor ouvido, até ao descodificar de uma frase de Goethe que decorámos na altura, apenas para excesso estóico da nossa ignorância

«Tal e como a natureza tende ao outono, se fez outono em mim e ao meu redor.»

Incrédulas ficávamos sempre que repetíamos esta frase, pois amor era o que precedia a frase e  amor era para nós, Primavera, Verão,  religião, culto e natureza, e por essa razão dávamos a mão na missa quando o sacristão fazia tilintar as campainhas, e juntas espreitávamos o que se passava no altar, ou não fosse lá que estivessem os sonhos que perseguíamos ao lado do saber das próprias Cartas.

Inês, amiga Inês, em Merletti dalla Olga uma mulher fazia renda, uma renda só produzida em Burano desde o sec. XVI. Tenho uma peça para ti que acabei por comprar no Lido, como sabes, a tradicional praia dos Venezianos onde acontece um dos mais prestigiados festivais de cinema do mundo.Por entre as voltas desta renda, encontrarás seguramente  a razão fundamental do Casamento de Maria Braun, uma das obras-primas de Fassbinder : acho que foi quando começou a segunda parte das Cartas de Goethe que não ouvimos. Reiniciáramos as aulas depois do Natal e aquele céu específico não voltou a ver-nos.

 

Saudades muitas, muitas

Isadora

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Por Teresa Bracinha Vieira
Junho 2015