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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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OLHAR E VER

Captains of Industry.JPG

 

 

24. O ENCOBERTO

 

O Courrier International (na edição francesa original, nº 1275) ilustra vários artigos da imprensa europeia sobre o tema e as negociações da Parceria Transatlântica em Comércio e Investimento (ou TTIP, segundo o acrónimo inglês) com vários desenhos de Arend (Países Baixos). Logo o primeiro, muito sugestivo, nos mostra, sentados em torno de uma mesa - atrás da qual se afixa um mapa do mundo - vários bonecos debatendo, identificados como Captains of Industry. Debaixo dessa mesa, aparentando crianças, surgem outros tantos a brincar com as peças de um jogo de sala chamado Stratego. Identificam-se como sendo Politicians... Os vários textos ali publicados debruçam-se sobre as negociações de um acordo de livre câmbio alargado, que poderá fazer dos EUA e da UE, juntos, o maior mercado do mundo. Surgem entusiasmos, interrogações, dúvidas e receios... Em presença de um processo de mundialização da economia - e do declínio relativo do ocidente industrializado, face à emergência de novas potências económicas, em crescimento rápido - é tentadora a perspectiva de uma zona económica do atlântico norte, que conforte uma dinâmica de criação de riqueza e bem-estar. Mas com essa miragem também se levantam outras questões. Umas são endógenas ao próprio processo das negociações em curso (iniciadas em Julho de 2013) e ao espaço geopolítico e económico a que se circunscrevem, desde a harmonização possível de normas laborais, fiscais, financeiras, sanitárias, ecológicas, à definição de sectores e prazos de aplicação, sobretudo enquanto preocupação com os possíveis efeitos sobre vantagens concorrenciais e emprego.  Não é, contudo, nosso propósito, tratar agora dessas questões. O nosso objectivo é antes tentar colocar este, como qualquer outro debate internacional em matéria económica e financeira, no contexto da globalização em curso e da indissociável reflexão sobre as respectivas consequências para a democracia e sua definição de poderes. Aliás, o que a caricatura acima recordada diz é que os nossos políticos não estão a ser factores de decisão, mas serão crianças que brincam com simulações... Há, todos sabemos e ouvimos, um afrontamento mediático e quotidiano entre políticos e seus partidos - de esquerda e de direita - como entre dirigentes associativos, professores, estudiosos, curiosos, comentadores e jornalistas, opondo "neoliberalismo" e "Estado social" que, bem vistas as coisas e os argumentos das partes, quase nunca é um debate inteligente e construtivo, antes um ping-pong que se joga pelo lançamento alternado de teorias datadas e factos ponderados em função de pontos de vista e interesses já estabelecidos. Pode tudo isto passar-se publicamente nas cenas várias das nossas livres democracias, mas parece-me, todavia, que o essencial das questões - por falta de independência de juízo e de espírito crítico, e alguma ignorância da história e dos métodos científicos - vai ficando de fora, e, mesmo pensando seguir caminhos diferentes, quiçá opostos, todas as partes vão cair num barranco de cegos. Sobretudo, não surgem respostas nem propostas, que terão de ser necessariamente inovadoras, a questões de como poderá o poder político controlar o financeiro, e de como deverá fazê-lo por forma a promover e assegurar a participação democrática dos cidadãos de pátrias e do mundo no governo duma res publica crescentemente alargada e complexa. É confrangedor, para não dizer pungente, que numa civilização em que o progresso das tecnologias pode facilitar a informação, o diálogo e a participação, as pessoas sejam alheadas da consideração do bem comum e do interesse geral, para se concentrarem em clubes e meios restritos ou, simplesmente, se desinteressarem. Tem sido proclamado, aliás por sensibilidades e razões diferentes e nem sempre concordantes, que a actual globalização é neoliberal, obedece a um programa que o "grande capital" desenhou no princípio dos anos 70 do século passado, com o evidente objectivo de se ir apropriando, em benefício sobretudo da sua ganância de acumulação, da riqueza que a generalização de novos factores e relações de produção iria criando. Somos certamente sensíveis à gravidade de possíveis consequências de uma concentração, a nível mundial, não só local ou nacional, e cada vez menos regional, das capacidades de capitalizar, de inovar e desenvolver tecnologias, de concorrer invasivamente em múltiplos mercados... Sempre em prejuízo, claro está, das indústrias existentes e do tecido social em que foram assentando. Mas talvez não seja aconselhável esquecer a força determinista de certas inovações e novas relações de produção : ninguém com bom senso pretenderá ser possível regressarmos ao passado das técnicas e das organizações. Não é, pois, aí que se põe a questão fundamental da justiça e da democracia no controlo de um poder económico e financeiro que, tirando naturalmente as vantagens consequentes de um campo de acção mais vasto e sofisticado, deverá todavia fazê-lo para benefício de todos. Contrariamente a várias correntes de opinião, de esquerda como de direita, que concordam na necessidade de reforço da independência e soberania nacional, através de medidas protecionistas e isolacionistas, não prevejo que tal seja útil e benéfico, nem sequer já possível. Não só a "soberania nacional" é hoje, mais do que realidade, um conceito desacreditado, mas a integração de todos no processo de globalização é inevitável. Como diz Monique Chemillier-Gendreau, professora de direito público e ciência política na universidade de Paris-Diderot, na concepção jurídico-política prevalecente até hoje, o Estado soberano já não tem futuro como força de paz, de emancipação, ou de justiça social... ...Não, a soberania não é a "competência das competências", pois nenhum Estado dispõe da exclusividade das competências no seu território; não, não é a garantia da independência de um povo, como o prova a situação em países do terceiro mundo onde, contudo, as soberanias criaram tantas esperanças; não, não é um poder acima de todos os poderes; não, ela não é a expressão de um pacto político fundado na procura da justiça. E a democracia institucional, tal como a entendemos no Ocidente, e como foi exportada para todo o mundo, não basta, longe disso, para garantir a liberdade, porque, ao assimilar comunidade política nacional e soberania na figura política do Estado, matámos o projecto de liberdade. Sim, pela comunicação e as trocas, o mundo forma hoje uma "sociedade" que deve passar a outro nível de organização política, compatível com a liberdade de todos. Também o professor Daniele Archibugi, da universidade de Londres, Birkbeck College, tem vindo a defender a noção de cosmopolitismo, a caminho de uma democracia mundial a que chama democracia cosmopolítica. Nenhum destes autores é defensor de qualquer  nacionalismo político ou económico, como, por exemplo, o hispano-francês Ignatio Ramonet, também ele professor universitário, natural de Pontevedra, mas com muitos anos de trabalho e investigação em França, onde foi, durante anos, director de Le Monde Diplomatique. Muito embora não concorde com a sua tese de que a presente globalização é neoliberal - no sentido de ter necessariamente de ser um sistema em que o supremo regulador é "o mercado", ao serviço dos interesses dos mais fortes, que o controlam, pois  penso, como disse acima, que ela poderá ser outra coisa - aprecio a sua análise de que ela nos imerge em três revoluções simultâneas. E, para apresentá-la, reproduzo um trecho do artigo que frei Rui Manuel Grácio das Neves, O.P., publicou no caderno nº 30 do Instituto São Tomás de Aquino, de Lisboa, sobre o tema A Globalização Neoliberal e os Caminhos para o Diálogo nter-Religioso, que aliás me parece abrir outra nova pista para a reflexão sobre o processo que temos aqui presente:

1. A revolução tecnológica é sobretudo uma revolução ao nível da comunicação-informação. E isto num duplo aspecto: a cerebrização generalizada das máquinas e a revolução numérica ou digital. Através da digitalização generalizada foi possível identificar três sistemas de sinais que eram, até agora, independentes: o som, o desenho  e o texto. Desta forma, qualquer som, imagem ou texto pode ser reproduzido e difundido mediante a sua transformação em impulsos electrónicos, que se movimentam à velocidade da luz (que se converte agora num absoluto, no "real time", recordando aqui a revolução física e epistémica de Albert Einstein).

2. A revolução económica actual refere-se ao predomínio das actividades financeiras. Encontramo-nos imersos numa economia do imaterial (intercâmbio, venda e comércio de valores e moedas) e num intercâmbio planetário da economia financeira (afirma-se que aproximadamente umas 50 vezes superior ao intercâmbio da economia real ou intercâmbio de produtos concretos). A economia do imaterial inclui a economia da comunicação, da informação e da cultura, sendo todas elas susceptíveis de ser digitalizadas e transmitidas planetariamente. Em definitivo, estamos perante a dupla característica da revolução económica: financialização e imaterialização. Tudo isto aponta para a globalização da economia.

3. Finalmente, a revolução sociológica, que aqui deveria ser melhor classificada como revolução política. Ou seja, o conceito de Poder está hoje em crise. A pergunta básica é: quem possui hoje, realmente, o Poder? Tradicionalmente, tem sido o Poder vertical, hierárquico, autoritário. Hoje, procura-se melhor um poder que seja horizontal, em forma de rede de teia de aranha. Daí a importância da categoria de consensualidade. Para isto é decisiva a ajuda da tecnologia comunicativa ou comunicacional.

Curiosamente, quem já se distraiu, ou mesmo ainda se distraia, com aqueles romances policiais e bandas desenhadas em que teimosamente se vão escondendo e camuflando detentores ou ambiciosos de poderes secretos, entenderá melhor o sentido do título desta crónica do que tantas, muitas, das nossas personalidades mediáticas que por aí discutem candidatos a "soberanias" e "democracias" fora de prazo de validade. Estarão à espera do Poder encoberto?

 

Camilo Martins de Oliveira