SONETOS DE AMOR MORDIDO
20. KREISERLIANA
Ufano, tão feliz, enchi o peito
do amor com que os teus olhos me quiseram
preso assim; e cativo me fizeram
de ti, para sempre, quase perfeito...
E quase sempre fui quase sozinho
e assim tu quase só cheia de mim...
E foi ouvindo não ao nosso sim
que juntos nos pusemos a caminho.
E neste quase ser, digo ao piano
como toureiro em lide, em mano a mano,
que, sem talvez, na vida há sim e não...
E tudo dança e sofre, tudo passa:
é sempre fugidia uma ameaça
e fortaleza a nossa imperfeição...
P.S. - Quatro anos levaram Clara Wieck e Robert Schumann para conseguirem licença de casamento. Perante a ciumenta e feroz oposição do pai dela, tiveram de recorrer ao tribunal, que decidiu em favor deles. Casaram em 1840, numa igrejinha da aldeia de Shönefeld, perto de Leipzig. Durante esses anos de separação forçada, em que o pai Wieck ia obrigando Clara a viajar pela Europa, dando concertos ao piano, que tão excelentemente tocava - concertos em cujos programas ia incluindo composições do seu amado - Schumann viveu alternadamente períodos de entusiasmo e esperança, como de depressão e quase desespero, compondo muito, sobretudo música para piano. As Kreislerianatestemunham esses altos e baixos, esse galope de sentimentos de vários tons, tempos e ritmos... Escreve ele, em carta a Clara, de Maio de 1838:
Reparei em que a minha imaginação nunca está tão viva como quando ansiosamente virada para ti. Foi assim ainda nestes últimos dias, e, na expectetiva de carta tua, compus o suficiente para encher volumes. Música extraordinária, ora louca, ora grave e sonhadora. Arregalarás os olhos quando a decifrares. Vê tu bem, tenho por vezes a impressão de que acabarei por estoirar de música, de tal modo as ideias se empurram e fervem em mim quando sonho com o nosso amor. ... Tocas às vezes as minhas Kreisleriana? Em certas páginas, está lá um amor mesmo selvagem.
A atestar essa fúria fiel e forte está o próprio título dessas composições, inspirado na personagem de Kreisler, o mestre de música, de espírito e gestos muito agitados, dos contos de Hoffmann. Afinal sempre igual a si mesmo.
Camilo Martins de Oliveira