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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Minha Princesa de mim:

 

Britânico e francófilo, homem de letras, Anthony Daniels publicou, na revista New Criterion (fevereiro de 2015), uma resenha crítica do já famoso romance de Michel Houellebecq Soumission. Deves lembrar-te de como, depois de o termos lido,  conversámos e te disse quanto esse livro me tinha trazido de volta a temas que já tratei, tão impressionado ando, há anos, com a crise da nossa civilização, que me aflige sobretudo por verificar que ela radica numa perda progressiva da nossa identidade cultural, arrastada pelo esquecimento da nossa própria memória e pelo leviano esvaziamento de valores que nos orientem e animem, sem que tenhamos adquirido o espírito crítico e sentido profético necessários à invenção de novas inspirações. As nossas sociedades estão, hoje, desinspiradas. É triste. O Anthony Daniels é, de sua profissão, médico psiquiatra, com longa e privilegiada convivência com pessoas e mundos : trabalhou em África, no Zimbabwe e na Tanzânia, como em hospitais públicos e prisões, no Reino Unido. Traduzo passos do artigo referido:

Houellebecq é um escritor animado por um só tema subjacente : o vazio da existência humana numa sociedade de consumo destituída de crença religiosa, de projecto político, de continuidade cultural, onde, ainda por cima, graças à abundância material e à segurança social, não existe nenhuma autêntica luta pela existência que pudesse dar um sentido à vida de milhões de pessoas...   ...Na visão do mundo de Houellebecq, isso confere uma intensa inutilidade a toda a actividade humana, que não passa de uma luta pela aquisição de bens de consumo supérfluos incapazes de nos trazer a mínima felicidade, ou sequer de nos distrair do próprio vazio. E, recusando classificar o romance Soumission como um violento panfleto anti-islâmico, dirá que ele antes é uma meditação, uma chamada de atenção para nós mesmos, como eu também tanto tenho insistido em que se faça: Uma reflexão sobre as razões pelas quais esta civilização é tão vulnerável aos assaltos de uma força intelectualmente tão insignificante como o islamismo que, de acordo com qualquer critério de razoabilidade, não tem absolutamente nada de válido para dizer aos homens do século XXI. Por outras palavras, é um convite implícito à introspecção, à reflexão sobre o que não está bem connosco, em vez de com eles... Num destes dias, li num jornal  - não recordo em qual, talvez no suplemento Culture & Idées de Le Monde - um longo artigo sobre jovens jihadistas  europeus, que largam as suas casas, famílias e amigos, para irem engrossar as fileiras do Daech na Síria e no Iraque. Distraidamente, ainda assentei uns números : 25% de menores, 35% do sexo feminino (!), 40% de convertidos. Se a memória me não falha, referia-se ali que o número destes (convertidos ao islão) ia crescendo entre as mulheres e os mais jovens, e que o recrutamento se vem fazendo cada vez mais, não tanto nos subúrbios pobres e de imigrantes (mouros e outros), mas nas classes média e alta da burguesia... Descubro ainda, num apontamento que tirei, a afirmação de que não estão ainda bem estudadas as causas ou motivos dessas adesões à causa do Estado Islâmico. Sabe-se, todavia, que todos esses jovens têm em comum o "estarem em perda de referências e em ruptura com o seu meio ambiente, pelo que se encontram em grande fragilidade psíquica, mas que o discurso jihadista, mais do que corresponder a um desejo de religião, vem antes preencher uma falha identitária, um desejo de aventura, a necessidade de abraçar uma causa"... Estas cartas que te escrevo podem ser, por vezes, um desabafo ou uma confidência, mas saem-me sobretudo do gosto de conversar contigo, com a liberdade de quem se põe a pensar partilhando. Quando, posto em sossego, dou largas à cabeça, vou picando e associando temas, isto é como cerejas... Até me lembrei agora do Marquês de Pombal e do que fez aos Távora, salgando-lhes os campos e apagando-lhes ou destruindo os brasões. Vimos um destes (lembras-te?), escapado à fúria que queria obliterar a memória de um nome e de uma família, numa laje tumular no Convento dos Cardais, em Lisboa. A condenação (até) da memória, a damnatio memoriae que já os romanos aplicavam como pena a título póstumo, ou os revolucionários franceses quiseram levar às últimas consequências, destruindo lembranças e referências que encerravam uma identidade construída durante séculos de história, ao ponto de inventarem mesmo um calendário novo. O afã mesquinho dos que buscam revestir-se de apelidos sonantes, só para não se reconhecerem no nome dos seus antepassados, ou vão apagar nomes de ruas e sítios, na ilusão de que podem condenar a história. Como se fossem eles os mais que perfeitos... Eu, como sabes, que me manifestei em oposição ao Estado Novo, no tempo da vigência deste, continuo a irritar-me com uma "democracia" em que tantos políticos conseguiram, ainda nas suas vidas, dar o seu nome a mais escolas, ruas, pontes e sanitários, do que o fizeram "ditadores" durante décadas. Será fezada na perpetuação da própria glória, ou simplório narcisismo? Melhor (ou pior) : será que o que já não aprendemos, ou esquecemos ou apagamos de memória colectiva é hoje substituído pela efémera vaidade de aparições televisivas e logo obsoletas? Também se arrasaram cidades para apagar memórias, ou se queimaram a biblioteca de Alexandria, como, muito mais tarde, livros árabes no auto da fé de Córdova em 1500. Sabes, minha Princesa de mim, o que hoje mais me dói é a leviandade com que as nossas sociedades ditas civilizadas têm vindo  -  paulatinamente, primeiro, e já em velocidade acelerada  --  a destruir a nossa memória de nós. Pusémo-nos fora de moda, e até, em romances pretensamente "históricos", com pretensiosismo "científico" fantasiamos cristos e credos, identidades e nações, e confundimos ideais com caprichos, amores com potenciadores de actividade sexual. Fernando Báez, o venezuelano autor da Nueva Historia Universal de la destrucción de libros, em entrevista dada a Suzi Vieira para a revista Books, lembra bem que a destruição de património cultural iraquiano pelo Daech  - que ele tem vindo, como perito, a acompanhar - pode camuflar também operações de venda clandestina de bens culturais (que, claro está, servem para financiar o "movimento" e os seus líderes): ...lemos nos media que estátuas mostradas nos vídeo eram, afinal, cópias em gesso. Isso é verdade para uma parte dos objectos detruídos no museu de Mossul, mas não para todos... ...Estamos diante de uma real destruição iconoclasta da antiga cultura assíria. Os terroristas servem-se dela para enviarem uma mensagem de intimidação aos cristãos e ao Ocidente...  ...O que a História me ensinou é que nunca se destrói um livro como objecto físico, mas como laço memorial, ou seja, como um dos eixos da identidade de um homem ou duma comunidade. Nós somo os que se lembram do que são. Não há identidade sem memória. E os símbolos dessa memória são os livros e os bens culturais. A sua destruição é sempre a expressão de uma tentativa de aniquilar uma memória percebida como ameaça directa ou indirecta para outra, considerada superior. Por detrás de cada destruição cultural, podemos vislumbrar uma intenção de forçar uma amnésia, que permitirá o controlo de um indivíduo ou duma sociedade. Perdoa-me, Princesa, todo este arrazoado: é bem verdade que já não sei avaliar, no meio de tanta trapalhada, se sou senior ou se estarei senil... Diz-se por aí que os que vão nascendo agora podem contar viver 150 ou muitos mais anos... Deus os guarde. E me dê a mim, além do pão de cada dia, a alegria de ser, sobretudo quando penso, parafraseando o Poeta, que para tão grande amor é curta a vida. Vou-te dando a mão e sentindo que é de mãos dadas que melhor vivemos a memória de nós.

 

Camilo Maria

  

Camilo Martins de Oliveira