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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Papa Francisco


Minha Princesa de mim:
 

 

Lá te vou escrevendo umas cartas, falo contigo como se, afinal, comigo falasse... Algo descuidado, acontecer-me-á, aqui e ali, algum esquecimento, uma falha, um erro qualquer. Não receio a falta de lembrança (esqueci-me e pronto!), intimida-me, por vezes, poder pensar que me lembrei do que nunca conheci, nada é mais humano do que o engano... Parece-me que foi no Also spracht Zarathustra que Nietzsche escreveu que os deuses tinham todos morrido de riso quando um deles disse que era o único. O monoteísmo é habitualmente confundido com as três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo, islamismo), muito embora ele se possa adivinhar como vocação de outras religiões (no hinduísmo, por exemplo, é o mesmo Deus essencial que se revela nas epifanias de Shiva, Brama e Vishnu) ou ser uma conclusão filosófica ou intuição metafísica desenquadrada de qualquer revelação divina, como o Ente Supremo de Robespierre e das constituições francesas de 1791, 93 e 95 e, ainda, o Grande Arquitecto do Universo de várias famílias maçónicas. A grande descoberta do Deus Único - seja por revelação ou por conceito - está radicalmente ligada a outra singularidade, que Diderot (em Le Rêve de d´Alembert ?) considerava ser o Homem: Um ser passageiro que acredita na imutabilidade das coisas... Nietszche - no seu A Verdade e a Mentira em sentido extra moral, texto que ditou, em 1873, a Carl von Gersdorff e nunca pensou publicar - conta uma fábula: No desvio de um qualquer canto do universo inundado pelos fogos de inúmeros sistemas solares, houve certo dia um planeta no qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais orgulhoso e mais mentiroso da "história universal", mas não passou de um minuto. Após vários suspiros da natureza, o planeta congelou-se e aos animais inteligentes apenas restou morrerem. Eis a  fábula que poderíamos inventar, sem conseguirmos pôr mesmo, mesmo, a claro o aspecto lamentável, nebuloso e fugidio, o aspecto vão e arbitrário dessa excepção que constitui o intelecto humano no seio da natureza. Olha, Princesa: só Deus, revelado ou intelectualizado, poderá saber porque é que me ocorreram estes pensamentos e lembranças a talho da leitura da encíclica Laudato si. Aliás, como me veio à cabeça um texto - que também não se refere a questões ecológicas - do filósofo chinês e marxista Yang Guorong intitulado Regresso à Existência Concreta : o Problema Crucial Ético Actual, em que se cita Confúcio (Não consigo viver em grupo com pássaros e animais, só posso viver com outras pessoas), para introduzir o tema ontológico do Homem como ser relacional... Já te contei, Princesa, como, no liceu, jovem estudante de 16 anos, respondi ao desafio do professor de filosofia, que nos pedia uma intuição metafísica, dizendo-lhe que o Homem é um ser em relação. Desconhecia então quem fosse Martin Buber, o filósofo judeu que - passo a transcrever Yang Guorong, melhor, um passo da sua comunicação à conferência sobre A Condição Humana, organizada pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em Lisboa, em 2000 - no seu bem conhecido "I and Thou", distingue a relação entre pessoas (I - thou) da relação entre uma pessoa e outro ser (I - it ). Nesta relação, o objecto é colocado num tempo-espaço específico. O objecto (it) pode apenas ser utilizado, mas não pode comunicar comigo. Pelo contrário, a relação entre pessoas (I - thou) é recíproca, imediata e aberta. Por via da relação com outrem, "eu" passo a ser "eu". Noutra carta, já eu te referira essa ideia de que Deus me é mais íntimo do que eu mesmo me sou. Lembro-o agora, porque Yang também recorda que Buber desenvolve o conceito do "eterno Outro" (eternal Thou) e coloca-o no centro da relação entre pessoas (I - thou). O chamado "eterno Outro" é a passagem para um ser transcendente no sentido religioso. E acrescenta o filósofo chinês: Do mesmo modo, segundo Levinas, a relação de responsabilidade entre os outros e eu implica o infinito. A minha responsabilidade para com os outros implica a existência do infinito. Enquanto marxista, Yang Guorong faz também, necessariamente, referência à história e às relações de produção: Desde a economia agrícola primitiva à indústria moderna em grande escala e à indústria informática contemporânea, a produção e reprodução de bens materiais está presente ao longo de toda a história da Humanidade...  ... Num determinado sentido, podemos considerar a produção e reprodução de bens materiais como a entidade social da existência humana. Mas eu não sei, Princesa, não sei mesmo, se tanta sabedoria e inquirição esgota a minha sede. Sei que não me contenta o olhar, como o voo das andorinhas que, de manhã cedo, vejo bailar no horizonte que elas então me tornam próximo, bem chegado às janelas abertas do meu quarto... Nem me amansa o coração como a ladainha monótona e cheia de graça das rolas feiticeiras da minha madrugada. Fala melhor o Poverello, nesse poema escrito no inverno frio de 1224/25, em dialecto da Úmbria, um baixo-latim, como a nossa língua quando, menina, ainda balbuciava. Ora lê:

      Altissimu, onnipotente, bon Signore,

      Tue so´le laude, la gloria e l´honore et onne benedictione.

      Ad te solo, Altissimu, se konfano,

      Et nullu homo ène dignu te mentovare.

      Laudato sie, mi Signore, cum tucte le tue creature,

      Spetialmente messor lo frate sole,

      Lo qual´ é iorno, et allumini noi per lui.

O sol, que nos traz o dia e alumia - e aquece a alma e a vida - deus soberano dos incas e tantos outros, único dos egípcios de Akhenaton, essência da Amateratsu nipónica, é sua senhoria nosso irmão, primeiro entre todas as criaturas do Altíssimo omnipotente, que com todas elas deve ser louvado e agradecido... Ou todas elas com Ele, cujo nome homem nenhum é digno de pronunciar, Ele que todas elas chama e agrega! Esse Senhor Deus que descobrimos e recebemos deu-nos o riso franco da alegria e o amor da vida, mesmo para além do desespero. Bem sei, Princesa de mim, que não é fácil - e até pode parecer inconsciência, masoquismo, injustiça ou sadismo - cantar laudes num mundo carregado de erros, sevícias e negativismo. Mas que outro caminho teremos, se não sairmos em busca da alegria? Depois da exortação Evangelii gaudium, o Papa Francisco vem lembrar-nos a alegria de sermos em relação, de darmos graças e cantarmos louvores ou, se preferires, a alegria franciscana da humildade perante o Criador e a sua obra, esta natureza que nos foi confiada, tal como a dignidade de todos os homens, cuja fraternidade nos obriga à justiça. A encíclica alerta-nos e desafia-nos para o cuidado da nossa casa comum, a terra nossa irmã e nossa mãe, assim cantava Francisco de Assis:

      Laudato si´, mi´Signore, per sora nostra matre terra,

      La quale ne sostenta et governa

      Et produci diversi fructi com coloriti flori et herba...

Chama-nos a uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. Integral, sim, porque o respeito agradecido da Criação, o cuidado da natureza e da nossa relação com ela, não é realizável sem vinculação à preocupação com todos os  homens, sobretudo os mais desamparados e vulneráveis, vítimas da ganância alheia e das injustiças e iniquidades dos sistemas económicos. A utilização ou exploração da natureza para a produção de bens necessários pertence à "entidade social da existência humana", não é apenas uma relação de mim a um objecto, mas de mim com os outros e a nossa comum dignidade. Parafraseando Confúcio, eu só vivo em grupo com outras pessoas, por isso a natureza é, nesta encíclica, a nossa casa comum, a morada que Deus nos deu. Esse mesmo Deus, que é único mas tudo em todos, o eternal Thou de Martin Buber, e que encontramos no íntimo de nós e no âmago da relação entre pessoas. Neste turbilhão de muitos sinais de rádio que é a minha cabeça, um apito me diz que o papa Francisco será popular, mas à maneira dele : quiçá por nos lembrar a todos a dignidade igual da nossa condição e nos chamar à alegria da esperança, acreditando sempre que o que é curto, mesquinho e mau pode vencer-se pela generosidade do melhor que há em cada um de nós. Terminando esta, dou-te, na mão que te estendo, este trecho da carta sobre Victor Hugo que Eça de Queiroz escreveu ao diretor de A Ilustração: O Cristianismo foi feito assim, com imagens, com parábolas, com declamações. Todavia no tempo de Jesus, antes dele, houvera homens como Hillel, Shammai, e o nobre Gamaliel, cujas prédicas continham já todas as sementes do Cristianismo : mas quê! eram doutores, argumentadores políticos, homens práticos. Ninguém os escutou. Surge um inspirado, lá do fundo da Galileia, que vem falando vagamente de piedade, de amor, de fraternidade e do Reino delicioso de Deus  --  e o mundo maravilhado deixa os velhos cultos e as velhas ocupações e vai atrás dele, preso para sempre...

Camilo Maria  

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Nouveau Réalisme: A poética do real

 

‘What do we propose instead? The passionate adventure of the real perceived in itself and not through the prism of conceptual or imaginative transcription.’, Pierre Restany em ‘The New Realists’, 1960

 

Ao concentrar-se no início da década de sessenta, é importante referir o Nouveau Réalisme pela sua influência que teve junto do grupo português KWY e sobretudo pela aproximação à vida quotidiana através da escolha e manipulação de objectos de uso comum. Desenvolveu-se em França, a partir de 1960, a par da Pop Art, e contou com a participação e envolvimento de figuras como Yves Klein, Arman, Pierre Restany, Daniel Spoerri, Jean Tinguely, César, Christo e Niki de Saint Phalle.

Pierre Restany, crítico de arte, deu o nome ao grupo evocando o realismo literário novecentista que declara uma realidade social urbana banal, quotidiana através de objectos manipulados pelo artista e não através de descrições aturadas (Nouveau Réalisme assim como Nouveau Roman ou Nouvelle Vague). O grupo desejava aproximar a arte e a vida e relacionar-se directamente com a realidade. Os novos realistas consideram o mundo como a obra de arte fundamental e cabe ao artista descodificar os seus elementos com mais valor, evidenciando uma consciência política, apreendendo a profundidade e a interpretação subtil dos conteúdos. (Argan: 1992)

 

‘Sociology comes to the assistance of consciouness and o f chance, whether this be at the level of choice or o f the tearing up o f posters, of the allure of an object, of the household rubbish or the scraps of the dining-room.’, Pierre Restany em ‘The New Realists’, 1960

 

Os artistas utilizam os objectos mais variados: cartazes publicitários, imagens cinematográficas, fotografias de revistas ilustradas, luzes de néon e plásticos de todo o tipo. O evento refere-se sempre a um contexto real e a partir daí o artista evidencia certos aspectos expressivos e determina uma ruptura na rotina do consumo. A nova vida moderna é representada por objectos do real concretos seleccionados, combinados e revestidos através de acções poéticas como divisão e acumulação (Arman), compressão ou expansão (César) e embalagem (Christo). O artista vive agora da colecção e da escolha. É atribuído um novo sentido às coisas coleccionadas não só porque são retiradas de contexto como também são manipuladas. O artista conserva em vez de consumir. Sendo assim, a vida moderna é um produto pronto a consumir. (Argan: 1992)

Sem a menor variação, os quadros monocromáticos de Yves Klein exercem influência sobre o fruidor para que possa viver segundo uma só cor – azul, cor-de-rosa, dourado. Klein, para tornar esta ideia mais evidente, recorre até a pincéis vivos, modelos nus molhados de tinta que estampam a sua marca na parede. (Argan: 1992)

Niki de Saint Phalle depois de inventar as shooting paintings (Tirs), onde ridiculariza o uso exaustivo dos gestos existencialistas que deram lugar à pintura informal, cria as primeiras Nana – mulheres feias, destorcidas, monstruosas que invertem o culto da beleza e da fertilidade da mulher. Com a criação de Crucifixion Niki antecipa Hon, a mulher-catedral exposta no Modena Museet de Estocolmo em 1966, onde se eleva a figura da mulher fértil à dimensão sagrada. (Groom: 2008)

Em Portugal, o ambiente Pop inclui a Nova Figuração, associada diversos artistas como pertencentes ao KWY, mas também António Palolo, Eduardo Batarda, o cartazismo de Nikias Skapinakis e a organização narrativa das memórias de Joaquim Rodrigo.

KWY, apesar de se ter formado no final dos anos cinquenta, teve repercussões assinaláveis durante toda a década seguinte. Entre Paris e Munique, Lourdes de Castro, René Bertholo, João Vieira, Costa Pinheiro, José Escada e Gonçalo Duarte criaram um grupo de intervenção – KWY, com as letras ausentes do alfabeto português (‘Ká Wamos Yndo’). O grupo associou-se também ao búlgaro Christo e ao alemão Jan Voss. A sua existência efectivar-se-ia pelas representações colectivas em exposições (Saarbrüken, 1960; Lisboa, 1960; Paris, 1961; Bolonha, 1962), pela acção editorial e pelas responsabilidades partilhadas na produção dos exemplares serigrafados dos doze números concretizados da revista.

KWY representa, assim, um projecto com total liberdade gráfica e editorial, definindo-se através da ausência de um programa ético-estético, pressupondo uma separação de finalidades ideológicas (Candeias, 1997). Deseja atingir a total liberdade na aplicação do material e do gesto, surgindo como um novo modelo de actuação artística mais eficaz, evitando que assumisse um sentido de tendência escolar ou estilística comum. A prática da serigrafia na revista tenta romper com valores canónicos do que se afirmava ser arte maior em proveito de uma visão que adere à cultura popular (Serra: 2006).

Em ‘Revista KWY: Da abstracção lírica à Nova Figuração’, de Ana Filipa Candeias, lê-se que em termos de composição gráfica, KWY, pode ser caracterizada principalmente pela sua factura artesanal e experimental, com uma excepção – KWY 6 – que marca uma tentativa de fazer transitar a revista de uma concepção manual e de circulação quase privada, para uma nova concepção de revista pública, mediática e mecanizada – sem aliás obter o sucesso esperado, conforme se poderá deduzir pelo retorno à concepção primeira, com KWY 7.

Lourdes Castro e René Bertholo (fundadores da revista) iniciam a década de 60, com trabalhos no campo da ‘Assemblage’ e de ‘Nova Figuração’ e, plasticamente, são os últimos números da revista que indicam essa transição para uma poética neo-figurativa. A revista tem um carácter cosmopolita e globalizador, incluindo artigos e trabalhos de grupos e artistas vanguardistas europeus como por exemplo Pierre Restany, os Nouveau Réalistes, António Saura, o Grupo 58, Ben Vautier e Robert Filliou. Pierre Restany, chegou mesmo a referir-se a KWY, numa antologia de textos (datados de 1978) com vista ao lançamento dos ‘Nouveaux Réalistes’, como sendo uma revista de vanguarda existente em Paris, nos anos de promoção daquele movimento.

 

Ana Ruepp