CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Reservo esta tarde para descansar o espírito. Tive notícia de mais uma súbita e precoce separação de um jovem casal amigo, lembrei-me do "amor líquido" do Zygmunt Bauman, e escrevi o 21º soneto de amor mordido. E voltei à "luzes". O Éloge Historique de la Raison, de Voltaire, apresenta-se como discurso pronunciado numa academia de província por conferencista alhures identificado como M. de Chambon, em 1774. (O mesmo pseudónimo assina o opúsculo Sur la paix perpétuelle). Começa assim:
Meus Senhores:
Erasmo fez, no século XVI, o Elogio da Loucura. E vós mandais-me que vos faça o Elogio da Razão. Esta razão, com efeito, só é festejada pelo menos duzentos anos depois da sua inimiga, o mais das vezes bastante mais tarde; e há nações entre as quais ela ainda nem sequer foi vista.
O objectivo desse texto, em que a Razão e sua filha Verdade vão brevemente percorrendo algumas culturas no tempo e no espaço, é simplesmente celebrar o triunfo das "luzes": Fez-se, desde há doze anos, uma revolução nos espíritos... ... A luz espalha-se certamente por todos os lados, diz o autor a Helvétius, em Junho de 1765. A Razão e a Verdade podem habitar entre os homens em tempos de justiça e tolerância. Nem sempre - entre nós, católicos, sobretudo chez les conservateurs intégristes - se apreciou justamente o chamado iluminismo. Bem sei, minha grande amiga, que a sua própria designação é já um desafio à Igreja que se pretendia cânone supremo do pensamento e saber humanos. Mas tal não é justificação, antes pelo contrário, para recusarmos a frescura de uma atitude que poderá questionar ideias feitas ou crenças sedimentadas, mas que é, mais do que isso, um reconhecimento da razão como dom universal de Deus ao género humano. E nota bem que o primado da razão não significa superioridade inata de qualquer afirmação contra e sobre todas as outras, antes nos chama à ponderação independente e equitativa, é fonte de critério, entendimento e tolerância. Voltaire e Diderot eram grandes admiradores de pensadores britânicos, como Locke ou Newton, privilegiavam a observação como arranque para a formulação de ideias e juízos. O iluminismo enquanto atitude moral foi-se estendendo a outras áreas da actividade humana. Ainda esta manhã, lendo o Art in History de Martin Kemp, professor em Oxford, registei esta afirmação do pintor e connoisseur Jonathan Richardson, em 1719, no seu A Discourse on the Dignity, Certainty, Pleasure and Advantage of the Science of the Connoisseur. "Para ser um bom Connoisseur, um Homem tem de ser tão livre de Preconceito quanto possível. Mais ainda: deve ter um Claro e Exacto modo de Pensamento e Raciocínio; deve saber como pegar nas coisas e conseguir Ideias justas; e Finalmente deve ter um Juízo não apenas Sólido mas Recto."E apontei ainda o dito de Edme-François Gersaint, ao tempo galerista de arte em Paris: " O genuíno amador, quero dizer, o autêntico connoisseur, está menos preocupado com o nome de um pintor ou a raridade dos seus quadros, do que com a qualidade do seu trabalho"... Em 1772, Voltaire escrevera, inspirado pelo empirismo de Locke, e contra o conceito cartesiano de ideias inatas, o breve Aventure de la Mémoire: O género humano pensante, isto é, a centésima milésima parte do género humano, no máximo, acreditou durante muito tempo, ou pelo menos o repetiu muitas vezes, que não temos ideias a não ser pelos nossos sentidos, e que a memória é o único instrumento pelo qual possamos juntar uma à outra duas ideias e duas palavras. E encerra aquele texto com uma frase em latim: Non magis musis quam hominibus infensa est ista quae vocatur memoria (Isso a que se chama memória não é mais inimigo das musas do que dos homens). Esta paráfrase de um tema para dissertação proposto na Sorbonne assenta no mito clássico - que aliás Voltaire não leu bem - dos amores de Júpiter, senhor da natureza, com Mnemósina, deusa da memória, donde nasceram as nove musas de todas as artes. Não sei porquê - talvez porque é passeio por lembranças a leitura amiga dos clássicos - dei comigo a reler Lucrécio, mais precisamente o Livro III de A Natureza das Coisas (De Rerum Natura), escrito na primeira metade do sec. I antes de Cristo: Nunc animum atque animam dico conjunta teneri... Afirmo agora que o espírito e a alma estão unidos entre si, e por si formam uma só natureza; mas a cabeça e, por assim dizer, a senhora de todo o corpo é a razão, a que chamamos espírito e mente. Fica ela situada no meio da região do peito. É aí que rebentam o pavor e o medo e, em sua volta, as alegrias que nos afagam; é aí, pois, que mente e espírito têm sede... Transcrevo, com alguns levíssimos retoques, a tradução dos versos 136 a 144 por Maria Helena da Rocha Pereira, ouvindo o concerto para piano de Schumann, interpretado por Dinu Lipati, com Karajan a dirigir a orquestra do Festival de Lausanne. O tal que, segundo o próprio compositor, seria algo entre o concerto, a sinfonia e a sonata... E pensossinto que tem esta música a ver com as citações acima feitas, pois obedecemos a uma razão que é sensações e memória, sentimento e discernimento. Somos inelutavelmente complexos; tenho para mim, sempre lembrado do dito de frei Jean Cardonnel, que a estupidez é a essência do pecado, paixão pelos nossos limites. Deu-nos Deus a razão para que a usássemos com independência e tolerância, abríssemos janelas e horizontes, fôssemos caminhando para a comunhão do entendimento. Não para que levantássemos dogmas como barreiras. Aliás, minha Princesa de mim (que ênfase, Deus meu!), o pretensiosismo está nos antípodas da inteligência... Quiçá a afirmação mais estúpida que por aí se vai ouvindo é essa que diz de alguém: "é superiormente inteligente, é uma grande inteligência!" Todos nós temos a nossa dose de estupidez e de inteligência, esta não é um valor absoluto e unívoco: uma bordadeira tem a inteligência da arte que faz, e o pastor tem a da reunião do rebanho, como não a tem um grande compositor ou pianista, nem o famoso advogado ou o sábio biólogo ou astrofísico. Cada um de nós a seu modo entende as coisas e a natureza delas, com mais ou menos eficácia prática ou acuidade especulativa. E todos, por graça de Deus, vivemos em Pentecostes. Quando falo em inteligência não comparo sabedorias, penso na virtude moral que é o esforço de entendimento de cada um. Estúpido mesmo é aquele que se julga possuidor do conhecimento e da verdade, supinamente estúpido esse que, ainda por cima, pretende impor aos outros a sua percepção, e não tolera discordâncias. É-me detestável o pretensiosismo obtuso que, entre outras estupidezes, por exemplo, durante séculos manteve Galileu condenado, só porque tinha usado a razão, tanto para escapar à armadilha enganadora dos sentidos, a partir dos quais, pelo esforço racional, criamos as ideias (quando olhamos para o céu, o que vemos é movimento do sol, como da lua, e não nos apercebemos logo de que, se esta gira à nossa volta, é a terra que roda em torno do sol...), como para colocar noutro plano (exegético e hermenêutico) o entendimento de uma narrativa bíblica. E são, para mim, igualmente ofensivas da nossa inteligência as pretensas "análises" das dívidas ditas "soberanas", quando se limitam à invocação de princípios e regras de juízo e prática, como se fossem universais e não derrogáveis, ideias (inatas?) insusceptíveis de revisão pelo pensarsentir, inquiridor e construtivo, das realidades agora enfrentadas. Tal como lamento a teimosia em se considerar o Charlie Hebdo exemplo máximo da liberdade de expressão, esquecendo a intolerância de um jornal que não entende o que outros muito respeitam. Sabes bem, Princesa, que nem me passa pela cabeça que se deva proibir ou sequer censurar tal publicação, mas sinto-me com direito a opinar que ela me parece pouco racional e, pela sua intolerância agressiva, ofensiva da boa convivência. Claro que lê quem quer, mas a atitude está lá, e eu tenho pena. Enquanto teólogo medievo, São Tomás de Aquino, como sabes, debruçou-se sobre a Bíblia, e conheces os seus comentários de S. Paulo e do evangelho segundo S. João. Mas também foi aos escritos e pensamento de Averroes, ao neoplatonismo e a Aristóteles. Considerava e respeitava a razão, entendeu bem que ela é um dom de Deus a todos os homens, e a "Suma contra os Gentios" não é um panfleto anti-outros - como hoje são tantos escritos e "debates" conduzidos por preconceitos ideológicos, políticos e demais, facciosos e intrinsecamente intolerantes - essa "Suma" é, acima de tudo, uma obra filosófica assente no princípio de que é possível o diálogo com incréus e infiéis, baseado na razão que, também ela, antes de ser cristã, é humana e comum a todos. Há certezas da fé que não se explicam racionalmente, não têm prova científica, são verdades místicas, aceitam-se, não se discutem. Tal não significa que sejam estúpidas: Pascal viu muitas coisas com arguta inteligência e, todavia, era um céptico, descrente da razão humana, confiante apenas na fé que salva. Mas se a Santíssima Trindade, as duas naturezas, divina e humana na só uma pessoa de Cristo, ou a presença real deste na eucaristia, não são demonstráveis, o mandamento universal do amor - que está no cerne do cristianismo - é algo que todos pensamossentimos, desejamos e devemos procurar. E dele vamos racionalmente deduzindo regras de comportamento e sociedade. Volto a Lucrécio, romano antigo, materialista e ateu, que situava a razão no centro do peito, ali onde a mente e o espirito têm sede... Repito a audição do concerto de Schumann, e dou-te a mão. Por ter algo de sonata, de sinfonia e, propriamente, de concerto, entendemos, tu e eu, que, neste mundo, nas coisas feitas verdadeiramente com cabeça, há sempre palavra e lugar para todos...
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira