CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Venho passando mal estes últimos dias, voltam a assediar-me maleitas e fantasmas... Serão incómodos, muito incómodos por vezes, não me afligem nunca mortalmente. Logo aos meus oito anos, quando fui apanhado, com meu pai, numa tempestade de neve, com vento doido que nos levava o carro, perto de Burgos, por estradas de Espanha ainda feridas da guerra, aprendi a reconhecer a morte como inevitável companheira de qualquer dia... Não me assusta já, interroga-me ainda. Morrer é sair do tempo e do espaço, e estes foram inventados por nós, para nossa referência e sossego. Antropólogos defendem que o ser religioso nasce com o humano consciente de que é mortal. E não será isso, Princesa, o que nos diz a narrativa de nos descobrirmos nus no momento da expulsão do paraíso? Encontramo-nos no espaço e no tempo em que estamos, percebemos que eles nos fogem, e vamos procurar-nos sendo eternos no infinito. Desde que comecei a sentir "o peso dos anos" na dificuldade crescente em recuperar de esforços e de falhas físicas, fui ganhando serenidade perante uma morte sempre evidentemente mais próxima. Tornei-me muito mais crítico da minha vida passada, simultaneamente mais lúcido e mais tolerante com os outros e comigo. Sem ter sido um revoltado, nunca fui acomodatício, menos ainda resignado; ainda hoje as minhas irritações são sobretudo "filosóficas", nascem do meu inconforto com o adquirido, horroriza-me a ausência ou desistência de interrogações, a presunção da posse de certezas totais e definitivas. E talvez por esse "mau feitio" eu seja, afinal, profundamente religioso: o sonho da minha vida é ver a Deus. Não consigo defini-lo, Deus é imenso; como não posso confundir a alegria do evangelho, a boa nova, com o código do direito canónico. Chegado a esta minha idade, olho para a morte como uma porta que se vai abrir à minha frente, para eu entrar na visão da luz. Espera-me a misericórdia última, aquela de que o menino que fui, aos oito anos, em noite terrível de tempestade, esperava que o salvasse desta. O Bernardo Soares, esse Fernando Pessoa disfarçado em empregado de comércio, "homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado..." Esse tal, em cuja "face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava - parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito" escreveu no seu Livro do Desassossego: Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos. Dmitri Shostakovich compôs, diz-se, a sua 14ª sinfonia, por 1969, seis anos antes de morrer, durante um dos períodos em que esteve internado para tratamento cardíaco. Ouço-a agora, no registo de 2005, da Orquestra da Rádio da Baviera, dirigida por Mariss Jansons. De Lorca a Rilke, passando por Apollinaire e um poema de Küchelbecker, ela percorre meditações sobre a morte. Toda essa sinfonia é o percurso musical de um compositor por poemas em que se sente vivo sentindo-se moribundo. É verdade que, por ocasião de uma récita da mesma, em 21 de Junho de 1969, Shostakovich declarava que a morte nos espera a todos, e não vejo nada de bom em tal fim das nossas vidas, e é isso mesmo que quero transmitir nesta obra... Mas também sabia o que eram mundos trocados, quando, julgando viver, estamos mortos: padeceu décadas de estalinismo, tivera já, em Dezembro de 1926, de passar o exame obrigatório de ideologia marxista, para poder continuar a estudar no Conservatório de Leninegrado. Passei esta tarde, Princesa talvez estranha à contemplação do que é invisível, a perseguir a morte enquanto existência ignota, fantasma permanente da vida, mistério que também esse compositor "soviético" (ateu? agnóstico?) pressentia nos poemas que, vertidos para a sua língua russa, o conduziam pela tecitura dos passos da angústia e da agonia. Abre a sinfonia com o De profundis do Lorca, que é uma paisagem da morte, dessa que nos esconde debaixo da terra: Los cien enamorados / duermen para siempre / bajo la tierra seca. / Andalucia tiene / largos caminos rojos. / Córdoba, olivos verdes / donde poner cien cruces, / que los recuerden. / Los cien enamorados / duermen para siempre. A morte enterra-nos e encerra-nos. Do outro lado da vida apenas cruzes nos recordam no remanso dos olivais a que levam os caminhos percorridos... Estão elas postas do lado por onde, antes de nos levar, a morte nos perseguia: La muerte / entra e sale / de la taberna. / Passan caballos negros / y gente siniestra / por los hondos caminos / de la guitarra. / Y hay un olor a sal / y a sangre de hembra, / en los nardos febriles / de la marina. / La muerte / entra y sale, / y sale y entra / la muerte de la taberna. Este segundo tema da sinfonia - não já pelo baixo que canta o primeiro, mas pela soprano - intitula-se Malagueña, e vem também de El Canto Jondo do poeta andaluz. Shostakovich passa de Lorca a Apollinaire, ao qual vai buscar seis dos poemas dos onze movimentos da 14ª. O primeiro, aliás, inspira-se em Clemens Brentano, poeta alemão que, no início do sec. XIX, em passeio pelo Reno, com seu amigo e futuro cunhado Achim von Arnim, recolhe memórias de canções populares entoadas pelos tripulantes do barco, para as coligir no Des Knaben Wunderhorn, cujas letras serão musicadas, mais tarde, por Gustav Mahler.A Loreley, sereia do Reno, na versão de Guillaume Apollinaire traduzida em russo, é uma história de feitiço, de amor bruxo (À Bacharach il y avait une sorcière blonde / qui laissait mourir d´amour tous les hommes à la ronde...), que termina com a morte da própria feiticeira, quando esta, iludindo-se com o que toma por presença do seu perdido amor nas águas do rio, nelas se precipita. Mas como se a perseguição do amor, que tanta gente mata, fosse humanamente narcísica: elle se penche alors et tombe dans le Rhin, / pour avoir vu dans l´eau la belle Loreley, / ses yeux couleur du Rhin, ses cheveux de soleil... Os outros cinco poemas de Apollinaire reflectem, afinal, a inevitabilidade absurda da morte, o beco sem saída, como prisão desesperada: seja suicídio, guerra ou cadeia. Curiosamente, é o poema da 9ª canção (ou movimento), do menos famoso Küchelbecker, A Delvig, que foge ao fatalismo impotente, fustiga os maléficos e grita o estremecimento do poder dos tiranos e proclama: A imortalidade é o apanágio de inspirados feitos temerários, como de doces cantares! Assim livre, alegre e briosa, não morra nunca a nossa união! Favorita das eternas musas, mantenha-se ela firme na felicidade e na mágoa! Talvez a imortalidade fosse, para Shostakovich, a resistência da arte ao estalinismo. A dele. Não há ali outra transcendência. Os dois últimos poemas escolhidos são de Rilke, autor de elegias e de três requiem. Em Der Tod des Dichters, a morte do poeta é também a da paisagem do mundo que o habitava, a ele, fino fruto votado à putrefacção... E a conclusão da sinfonia, o Schlusstück de Rainer Maria, resume-a toda: A morte é toda poderosa / e até nas horas felizes / nos vigia. / No auge da vida, ela sofre em nós, / habita-nos e tem saudades nossas, / connosco chora. Bem sei que é lusitana e livre a minha tradução. Mas, no fundo, morte há só uma, igual para todos, por muito diferentes que sejam os nossos olhares para ela, ou os modos de a dizermos. Mas o velho que sou, quietamente posto no limiar de uma porta que irá abrir-se, espera que então lhe apareça o Jesus que, no Suave Milagre, de Eça de Queiroz - leu-mo meu Pai quando eu era menino - também a mim me disse: Aqui estou...
Camilo Martins de Oliveira