CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Du, der ich nicht sage, dass ich bei Nacht
weinend liege,
deren Wesen mich müde macht
wie eine Wiege.
"Tu, a quem não digo que, pela noite,/ me quedo deitado e choro,/ olha que o teu ser me adormece,/ como berço de embalar"... Caí neste poema do Rilke, posto em canção pelo Anton Webern, aos lieder do qual vim procurar letras dos poetas Tang chineses que ontem encontrara em música do Mahler. E logo no lied contínuo: Du machst mich allein... ... du nur, du wirst immer wieder geboren:/ was ich niemals dich anhielt, halt ich dich fest... "Só tu me crias... ... só tu incessantemente renasces:/ porque nunca te retive, depressa te abraço..." Está aí expresso o cativeiro livre do amor, que se prende à sua constante novidade (ou à constância do seu renascimento). E ocorre-me - a mim, que já tantas vezes te falei no amor como posse só possível enquanto dádiva e liberdade - aquela imagem do Genji a espreitar o passarinho que a menina largou e vê voar... Estes dois lieder constituem a Opus 8, no catálogo elaborado pelo próprio Webern, e, assim juntos, têm apenas a duração de dois minutos e vinte segundos, em que os oito instrumentos utilizados vão pontuando, por acordes, a melodia da voz. Caracterizando esse pontualismo weberniano, Pierre Boulez - que, como sabes, tem sido um dos arautos maiores da música de Webern - diz que este irá avante, quase até à asfixia, na exploração desse microcosmo para o qual o havia já atraído o seu temperamento. Mas, escutando-os repetidamente, deixando-me envolver, ocorre-me antes aplicar-lhes um passo do prefácio escrito por Arnold Schoenberg para a publicação, três anos mais tarde, das Seis Bagatelas para Quarteto de Cordas, do seu discípulo Webern. Diz muito: Tanto quanto a brevidade destas peças fala em favor delas, assim tanto é também necessário falar a favor dessa brevidade. Devemos considerar a sobriedade que expressão tão concisa tem de exigir. Cada olhar pode desenvolver-se em poema, cada suspiro em romance. Mas para abranger um romance inteiro num simples gesto, ou toda uma felicidade num único sopro, é necessária uma concentração que afaste qualquer exagero sentimental. Estas peças só serão entendidas por aqueles que acreditam em que só se pode exprimir por sons aquilo que só por sons pode ser expresso... Creio que Webern procurava o despojamento de efeitos e frases na música que compunha, tal como na vida buscava a solidão e o silêncio, até no modo como se recolhia ao espaço aberto e imenso dos altos montes. Os seus acordes pontuais são como ecos súbitos que apontam horizontes misteriosos e íntimos. O seu mestre Schoenberg, no prefácio às Seis Bagatelas, que acima cito, continuava assim o texto que interrompi: Elas resistirão à crítica tão pouco quanto essa mesma crença, aliás como qualquer outra crença. Se a fé pode transportar montanhas, a incredulidade pode impedi-las de existir. Contra tal impotência a fé é impotente. A partir daí, saberá o intérprete como interpretar essas peças? E sabem os ouvintes como acolhê-las? Não comungarão os intérpretes com os ouvintes possuidores da fé? Mas que acontecerá aos pagãos? O ferro e o fogo deixá-los-ão sossegados; só serão atingidos os que tiverem fé. Possa este silêncio ser ouvido por eles! Na realidade, Webern - que era musicólogo, profundo conhecedor da história , modos e técnicas da música europeia na sua tradição e nas suas diferentes fases - procurava uma linguagem nova, não por gosto de rompimento ou revolução, mas por desejo de encontrar um meio de comunicação mais simples e directo. Para mim - Princesa que me pensassentes sempre caprichoso contraditor - não foi fácil "entrar" na música de Webern, nem hoje me passa pela cabeça pô-la a tocar para criar ambiente... Ouvir Webern é, necessariamente, escutá-lo atentamente. É exclusivo. Isso tenho feito hoje, não posso transmitir-te sons por carta, mas partilharei contigo reflexões, advenientes dessa experiência, sobre a comunhão na espiritualidade, ou de como podemos sentirmo-nos religados (ou religiosos), quer com uns poemas chineses da dinastia Tang, quer com o cantochão gregoriano ou temas da vida cristã... Já te contei a experiência inesquecível que vivi nas orações pela paz que o Coro Gregoriano de Lisboa e um coro budista Shingon longamente cantaram em locais arrasados pelo grande terramoto de Kobe, em 2005, e em templos perdidos nos montes do Japão. O canto, rezando, pede silêncio. E, no silêncio, somos todos, mais do que iguais, muito próximos. Sempre me emociono muito, sinto uma íntima alegria, com essa visita da proximidade. Nada do que é humano nos pode ser estranho: descobrir o outro na nossa humanidade é uma festa que fazemos, como na alegria da descoberta de novas terras, ou de um passo adiante na ciência, mas maior ainda enquanto encontro de um qualquer filho pródigo de nós... O nosso acolhimento dos que nos pareciam seres estranhos, diferentes, alheios ou longínquos, é uma atitude essencialmente religiosa, um passo para Deus. Por isso me comovem os Romances sobre textos de poetas ingleses, canções compostas por Shostakovich, em 1943, em pleno estalinismo, com letras no inglês dos poemas originais; ou a sua opus 21, o ciclo inspirado por textos de poetas japoneses. Tal sentimento de comunhão universal parece-me bem expresso no poema A Flauta Misteriosa, de Li Tao Po - Die geheimnisvolle Flöte, na versão alemã de Hans Bethge, a cuja antologia de poesia chinesa Die chinesische Flöte, e a exemplo de Mahler, Webern foi buscar as letras de poetas Tang para ao seus lieder -- musicado em 1917 e incluído na opus 12:
Certa noite em que no ar pairavam
perfumes de árvores e flores
trouxe-me o vento o canto
de longínqua flauta...
Cortei um ramo de salgueiro
e a minha canção respondeu-lhe,
na quietude da noite perfumada...
E desde essa noite,
enquanto a terra vai dormindo,
vão os pássaros ouvindo
um qualquer canto
na sua própria língua...
Também sentes aqui, Princesa, a festa de Pentecostes? Escuto agora, na voz da soprano francesa Françoise Pollet, em tradução para alemão do Bethge, e música do austríaco Webern, mais dois poemas Tang, um de Wang Seng Yu, outro de Li Tao Po. O primeiro, criado na China do sec.VIII, podia bem ser uma medieva e portuguesa cantiga de amigo ou, ainda, estar no cancioneiro de Garcia de Resende; chora a solidão de uma mulher:
Queda-se a lua no negro céu azulado.
Apaguei a luz que tinha,
fiquei só com o coração pesado.
Choro e choro muito; lágrimas sentidas
amargas e quentes me queimam o rosto,
pois estás longe da minha saudade imensa...
Sinto a falta da tua presença
e tu não sentes o meu desgosto...
O segundo - não te rias de mim! - o segundo trouxe-me memórias dos meus tempo de recruta, no serviço militar que cumpri no Alentejo... Em noites frias de inverno, dormíamos ao relento, cansados também dos exercícios diários que até lá nos levavam. Podia ter então dito, como Li Tao Po, doze séculos antes:
Deitado em terra estranha,
um raio de pálido luar
me cobre a cama...
Soergo-me e penso
que já sobre mim brilha
a geada branca da manhã...
E só então acordo para a lua,
lua, lua que me aponta,
ao longe, o lar distante,
distante talvez, mas que conforta...
Dou-te a mão. Dêmo-nos as mãos e fiquemos juntos, abrigados sob o manto imenso da misericórdia. Haverá outra verdade ou destino possível?
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira