ATORES, ENCENADORES (XXXIII)
Alfredo Cortez, s.d., fot. José Marques [programa O lodo, TNDM II, 1979]
OS 90 ANOS DA NOVA COMPANHIA DE DECLAMAÇÃO
Neste contexto sempre irregular do historial do teatro português na sua dimensão modernizadora e renovadora, apraz -hoje evocar uma iniciativa que, há exatos 90 anos, significou a tendência que, na época foi marcando, ainda que algo timidamente, a atualizaçãodo teatro-espetáculo em Portugal. E quando dizemos “teatro-espetáculo”, temos presente certo desfasamento verificável no que respeita não tanto à literatura, aí incluindo a literatura dramática, mas, isso sim, às iniciativas de modernização do espetáculo em si. Isto, apesar de já na época se manifestarem entre nós esforços dispersos para alinhar repertórios com o que se impunha em meios mais adiantados.
Alfredo Cortez, dramaturgo que, ao longo de mais de cerca de 20 anos e de mais de 10 títulos contribuiu, como dramaturgo e como animador teatral, para a renovação do teatro-texto e do teatro-espetáculo em Portugal – e basta lembra o escândalo e a pateada que assinalou, em 1934, a estreia de “Gladiadores”, primeira peça expressionista da dramaturgia portuguesa – surge em 1925 como fundador-diretor da Nova Companhia de Declamação.
Tratou-se efetivamente, de uma iniciativa destinada a renovar (no possível…) o contexto do espetáculo em Portugal. Hoje, podemos ponderar a modernidade do repertório em si mesmo considerado: mas estávamos em meados dos anos 20, e em Portugal: o que nos permite avaliar os valores relativos do programa de modernização/atualização, a nível não tanto, repita-se, de produção dramatúrgica, mas sobretudo a nível de realização e organização de espetáculos e da sua recetividade junto do público.
E nesse aspeto, podemos hoje melhor compreender a “modernidade” que esta companhia procurou atingir, junto de um público no mínimo desconfiado. E nem se diga que a Nova Companhia de Declamação era de somenos no que respeita ao elenco. Dela faziam parte, com efeito, grandes nomes da cena portuguesa da época: desde logo Adelina Abranches, Ester Leão, António Pinheiro, Clemente Pinto, entre outros mais. Nesse aspeto, nada haveria a dizer: eram, todos eles, grandes figuras de cartaz.
Já no que respeita ao repertório, a sua modernidade é hoje questionável: peças como “Apaixonada” de Porto-Riche, “A Malquerida” de Jacinto Benavente, “Uma Mulher Fatal” de André Birabeu, dizem-nos hoje menos do que na época, em matéria de renovação. Alfredo Cortez organizaria mais tarde, episodicamente, uma nova companhia com Ilda Stichini, para quem traduziu a peça “Wang, Sábio Três Vezes Sábio” de Henry Gheson, estreada em 1927 no Funchal.
Mas o mais importante terá sido “O Lodo” do próprio Alfredo Cortez, estreada com escândalo em 2 de Julho de 1923 , no Teatro Politeama, num único espetáculo organizado pelo próprio autor, despois de sucessivas recusas das companhias profissionais da época, que sistematicamente consideraram a peça no mínimo chocante… O que não diminuiu a qualidade, nem do texto nem, é de crer, do espetáculo, dado o nível do elenco: encenação de António Pinheiro, interpretação de Adelina Abranches, Amélia Rey- Colaço, Constança Navarro, Robles Monteiro, Maria Mesquita e Antónia Mendes.
A peça passa-se num bordel da Mouraria e acaba com um crime de morte: Julia, por ciúmes, mata a irmã, figura impoluta de moralidade. Ora, independentemente das mudanças ocorridas, é notável o realismo violento da cena e da linguagem. E é de assinalar que “O Lodo”, depois dessa estreia em espetáculo único, foi reposto dois anos depois, novamente por iniciativa do autor.
E para terminar: Luciana Stegagno Picchio, na “História do Teatro Português” (Roma 1964, trad. port. de Manuel de Lucena, 1969) relaciona a renovação teatral contida em “O Lodo” com a modernidade dos “Seis Personagens em Busca de Autor” de Pirandello, estreada em Roma dois anos antes (e só representada em Portugal no final dos anos 50): o que só por si atesta a renovação que Alfredo Cortez trouxe para a dramaturgia portuguesa.
Acrescente-se enfim que entre as centenas de atrizes e atores que estrearam as peças de Alfredo Cortez, encontramos sucessivas gerações de nomes que marcaram e sua época e hoje são recordados: alem dos que já citamos, evoque-se Raul de Carvalho, Vital dos Santos, Barroso Lopes, Ilda Stichini, Luz veloso, Alexandre de Azevedo, Palmira Bastos, Maria Lalande, João Villaret, Antómio Lopes Ribeiro …
E, no que refere ao cinema, o filme “Ala-Arriba” (1942), realizado por Leitão de Barros sobre argumento e diálogos de Alfredo Cortez, exibido na Bienal de Veneza ganhou a Taça Bienale: e permito-me uma auto-citação, que retiro da edição do Teatro Completo de Alfredo Cortez (ed. INCM 1992):
”O texto de Ala-Arriba não é uma peça (…) é um verdadeiro guião cinematográfico poderosamente plasticizante na sua descrição, vigoroso no travejamento, épico e lírico na admirável linha literária. O rigor rítmico de cinema (…) mais minucioso ainda do que no teatro, é respeitado em perfeita simbiose: lemos o guião e recordamos, cena a cena, plano a plano, a força poética desde belo filme, que a esplêndida musica de Rui Coelho – também autor da ópera Tá-Mar (sobre a peça homóloga de Cortez) - reforça e sublinha”.
DUARTE IVO CRUZ