Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

VIAJAR E VER

Dublin.JPG

1. DUBLIN

Dezenas de ruas, na horizontal e na vertical, frequentadas por milhares de pessoas, num espaço limitado e massificado. Centenas de estabelecimentos altamente concentrados, lado a lado, em ruas exíguas, medianamente largas, poucas vezes generosas. Hotéis, bares, restaurantes, lojas comerciais de todo o género, sem esquecer os caraterísticos pubs irlandeses. Onde há um pub há conversa e o culto da bebida, aí reinando o whisky e a cerveja. Onde os pubs imperam há música, cantos, danças, gritos, alegria, que o álcool fomenta e desinibe. Têm o seu lado positivo, pela beleza artística de alguns e pela força centrípeta que emanam e proporcionam em convívio. Um deles, mundialmente conhecido, qual ícone irlandês, o Temple Bar, é fotografado, filmado, procurado e propagandeado até à exaustão, por nacionais e turistas. Com a negatividade daí decorrente: massificação e banalização no serviço, onde nem sempre é possível entrar ou estar, dada a confusão em acotovelamentos, atropelos e vozaria. Carteiristas também os há. Urge ter cautela. Há noites em que passear ou conviver por ali, pode ser uma festa. De preferência em grupo, com um amigo, uma companhia, para “beber um copo”.
Irlandeses embriagados, durante a noite, em especial ao fim de semana, são parte integrante da paisagem humana. Muitos fora de si, necessitando de ajuda, aqui e ali interpelados pela polícia. Nas ruas pedonais, há quem cante, dance ou toque música. Quem seja chamativo com acrobacias, malabarismos ou ilusionismos. Aqui e acolá, por entre adolescentes e jovens raparigas quase adultas, de saias curtíssimas e saltos descomunais, tropeçando e exibindo-se num chamariz constante. Dia e noite, dezenas de mendigos de todas as faixas etárias, irlandeses e emigrantes. Uns, de boa aparência, indiciavam uma vida anterior com dignidade, que a atual crise irlandesa puniu. 
Eis a impressão que retive do centro de Dublin, num espaço pequeno, apertado, compacto e consumista, onde tudo flui e se dispersa, num vai e vem permanente de milhares de transeuntes e dezenas de vias públicas apologistas do consumismo. Com o consequente arrastamento de todos os grupos sociais, desde os mais bem-sucedidos e endinheirados, aos mais vulneráveis, incluindo desempregados e mendigos. Sem negligenciar músicos, passeantes, emigrantes e turistas. Em termos gerais, uma urbe de média dimensão, não monumental, nem exuberante, sem deslumbramentos ou ostentação, nem de gratas belezas para exaltar. Agradável, pacata, pacífica, avessa a correrias, dada a sua leveza e mediania. Com um rio, o Liffey, pouco apelativo.
Falta-lhe grandeza, mesmo que discreta, um golpe de asa que a conduza a outros voos. As ruas, avenidas, igrejas, imóveis em geral, na sua pequenez e modéstia, dão-lhe uma vivência mais familiar e intimista, menor dispersão e potencialidades de maior entreajuda. Seria expectável contar com mais, num aglomerado citadino cosmopolita diferenciado pelos pubs, colorido das tradicionais portas georgianas, a que acresce, como capital representativa da Irlanda, um meritório historial de nomes consagrados mundialmente. Vultos como Jonathan Swift, Edmund Burke, Oscar Wilde, Bernard Shaw, William Butler Yeats, James Joyce, Patrick Kavanagh, Samuel Becket, entre outros, merecem memórias mais consentâneas com a projeção que fazem da pátria. Por que não homenagens mais ousadas e vanguardistas, embelezando e dignificando em arquitetura e largueza de vistas o principal centro urbano irlandês? Por que não uma mestria mais arrojada e digna perpetuando os seus notáveis mais valorativamente para a posteridade? Por que não um turismo cultural e paisagístico mais qualitativo, sem esquecer a mais valia que daí adviria para a identidade e universalidade irlandesa? Mesmo os testemunhos do seu passado histórico, na sua contida dignidade, não suscitam diferenciações exclamativas de admiração e encantamento, desde a Christ Church Cathedral e St`s Patrick Cathedral, ao Dublin Castle e Trinity College. Há um culto pelo simples e discreto, pelo funcional, sem alaridos e deslumbramentos, nem megalomanias, a que não será alheio um passado não imperial e de ex-colónia inglesa, ao invés de nós, fundadores e perseguidores de impérios, de mentalidade imperial e de ricos, mesmo quando pobres. Quanto ao presente, é imperdoável não falar na agradável surpresa da visita à Guiness Storehouse. A exposição sobre esta cerveja, um símbolo internacional de marca, que acrescenta valor à marca Irlanda, é um máximo. Distribuída por sete pisos, criativos em novas tecnologias, com conseguido impacto formativo e visual, é exemplo a reter. Não só em termos de sedução, mas também de receitas.
Excluídas, desde logo, urbes emblemáticas como Nova Iorque, Paris, Londres ou Roma, Dublin não rivaliza com outras suas congéneres capitais europeias, como Lisboa, Praga, Viena ou Budapeste, de igual modo em países de pequena ou média dimensão territorial ou populacional. Não rivaliza nem ultrapassa Estocolmo. Supera, para mim, e nesta perspetiva, Helsínquia. Rivaliza com Oslo. Apesar das suas particularidades, e cada caso ser um caso, aproxima-se mais de urbes metropolitanas não capitais, como o Porto.
Por sua vez, os irlandeses são prestáveis e simpáticos. Dos povos nórdicos, pelo que conheço, os mais parecidos com os do sul da Europa. Mais alegres e prestativos que os ingleses. A comida é melhor que a incarateristicamente usual alimentação inglesa.
Há quem veja grande semelhança entre Portugal e a Irlanda. Fosse a Irlanda solar e de bom clima, em vez de chuvosa e fria, substituísse a cerveja pelo vinho, aí teríamos um novo Portugal e o inverso. Trata-se de uma caricatura, de um exagero, com o seu quê de real, ressalvadas as distâncias. Têm como património comum o mar, porque ambos países marítimos, a que acresce a insularidade irlandesa.
A língua de Camões, Pessoa e Machado de Assis foi-me audível, várias vezes, de turistas e emigrantes portugueses e brasileiros, essencialmente via Brasil. Mas não a vi escrita, nem a ouvi falada, em avisos e informações de autocarros turísticos e na visita que fiz à National Gallery de Dublin. Em alemão, francês, inglês, italiano, castelhano, japonês, por vezes em holandês e sueco, isso sim. Mas não em português… Dia 12 de Agosto de 2013, na National Gallery, tentaram disponibilizar-me um áudio-expositivo em castelhano, dada a ausência no meu idioma. Tentando supri-la com uma educada e satisfeita observação: “Sir, please, but we have spanish”. Lamentando a omissão, optei pelo inglês. Expus as minhas razões, compreendidas pela minha interlocutora, que se mostrou recetiva a que as expusesse por escrito, o que fiz em inglês. Sendo o português um dos idiomas mais falados, com perspetivas crescentes de internacionalização, à frente do alemão, francês, italiano, holandês, sueco, japonês, russo, polaco, entre outros, manifestei o desejo que ocupasse o lugar que merece, por direito próprio.
No dia anterior, no início da visita à Guiness Storehouse, foi o castelhano a língua sugerida, num opcional roteiro em grupo, por falta de guias de português. Agradecendo, eu e demais família recusámos, argumentando que a omissão do nosso idioma não era suprida por outro, por muito respeito que nos merecesse. A termos que optar, ser-nos-ia mais compreensível o inglês. Fizemos a visita familiarmente com o benefício de nos ter sido facultado na bilheteira um mapa em versão portuguesa do percurso, que também existia na Christ Church Cathedral e St`s Patrick Cathrdral. A Nando e o café Costa surgem como marcas e nomes nacionais globalizados de emigrantes lusos de sucesso. Progressos graduais que não justificam a indiferença geral de emigrantes e turistas lusófonos quanto à língua comum. Senão mesmo de um complexo de inferioridade (o que assim aparenta ser, pelo menos no que toca à maioria dos portugueses).
Curiosa a tentativa de renascimento do gaélico, notória no aeroporto. Embora não seja pelo idioma, mas sim pelo catolicismo, que a República da Irlanda, vista do exterior, mais se particulariza, por confronto com o restante norte europeu. Em particular em relação ao vizinho Reino Unido, de que foi colónia. O que não inviabilizou a adoção e aproveitamento do inglês como língua de projeção global por excelência. Com notórios benefícios para o anterior tigre celta, não obstante a crise que vive.
De Dublin memorizo ainda um impressivo Caravaggio (Prisão de Cristo) e um retrato de mulher, de Goya, na National Gallery. Ou O`Connell Street, principal eixo de trânsito norte-sul, tido como a grande avenida, conquanto com largueza na largura e enfezada no comprimento.
A que acresce um tempo muito marginal em chuva, aprazível para a ilha, tornando a estadia mais confortável, afastando os receios não confirmados, neste contexto, de que na Irlanda chove todos os dias.
Enfim, duas opções são plausíveis quanto a um eventual regresso. Uma é não regressar, ficando Dublin em arquivo, dado outras urbes serem mais encantatórias, excitantes e vanguardistas, com novidades e atrações permanentes para ver, rever e voltar, às quais se regressa sempre. A alternativa é regressar, saboreando Dublin sem pressas, ao sabor do momento, tirando partido do já conhecido, a conhecer ou a rever, sem falta de tempo, nem tempo perdido.
Sem encantamentos exaltantes nem deslumbramentos exclamativos, eis Dublin no seu modesto esplendor.                                                                                                                      
Impressões pessoais de Dublin em Agosto de 2013  
Texto original revisto em 29 de Junho de 2015  
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CORSINO FORTES (1933-2015)

12_09_42_Escritores.JPG

Foto de Noé Sendas, Cidade da Praia, 2004

 

Corsino Fortes, poeta maior da cultura cabo-verdiana e da língua portuguesa, cidadão exemplar, democrata de sempre, Embaixador, antigo governante, era um amigo de há muito do Centro Nacional de Cultura, sendo um dos elos fortes de uma relação riquíssima ao lado de Germano de Almeida, Vera Duarte ou de Fátima Bettencourt. Todos nos lembramos do memorável encontro que tivemos na cidade da Praia, no âmbito do ciclo «Os Portugueses ao Encontro da Sua História» em que Corsino Fortes representou a Associação de Escritores Cabo-verdianos. Colaborador da revista «Claridade», presente na antologia «Modernos Poetas Cabo-verdianos», é autor de «Pão e Fonemas», «Árvore e Tambor», «Pedras de Sol e Substância», «A Cabeça Calva de Deus», obras fundamentais para a compreensão da saga do povo de Cabo Verde. Foi o primeiro Embaixador de Cabo Verde em Portugal (1975-1981) e aqui reforçou amizades e ligações afetivas muito fortes e inesquecíveis. Estamos a ouvir a sua voz suave, a sua camisa imaculadamente branca, como lembra o nosso querido Germano de Almeida. Era o mais generoso homem que poderíamos conhecer. Quando eu chegava à Praia arranjava sempre um tempo para falarmos… A sua poesia é feita de memória e de ponderação certa de cada palavra. No fim da vida, apaixonou-se pela poesia japonesa e pelo uso parcimonioso das palavras. E o seu último livro, saído poucos dias antes da partida, deve ser lido com respeito religioso: «Sinos de Silêncio: Canções e Haicais». Querido Corsino Fortes – um grande abraço, não te esquecemos!


Guilherme d’Oliveira Martins

GRACILIANO RAMOS

graciliano.JPG

O alagoano e escritor de nomeada Graciliano Ramos quando foi preso em 1936 sob a alegação de que seria comunista, diz um dia numa carta à sua mulher: “Estou resolvido a não me defender. Defender-me de quê? Tudo é comédia e de qualquer maneira eu seria um péssimo ator.”

Esta atitude, dizemos, constitui um forte enrijecimento da liberdade interior face à realidade de que somos todos os demais escravos das técnicas impostas pela produção e pela reprodução do igual e seu vazio. Estamos no terreno da mimese. Cada artista que deixe claro que é pela arte que o mundo da liberdade é possível e que se entenda o quanto a arte se impõe  também como antítese da sociedade.

Hermenegildo Bastos no seu livro “O pássaro-Inspeção” ( EBRASA – Editora de Brasília, 1970)

intui claramente o quanto este pássaro leva a cabo um verdadeiro ajuste de contas da escrita com ela própria, isto é da necessidade de expurgar da arte incontinências ou confusos limites na percepção das palavras, e dele estes percursos interiores


(…)5
poesia, inacreditável simetria.
os futuros
(sua vegetal percepção)
sabem.

6
demasiado tudo.
humanas coisas, seu falar
demasiado.

do planalto central
eu medito o centro
         dentro e fora
porque as mãos independem,
e eu
não sou apenas
o que faço.

E dou a mão a Graciliano de novo quando afirma “ Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever deve fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.” 


E de Hermenegildo o possível diálogo

A poesia já está pronta

fora do poeta

como a vida

                     completa

 

O poeta vai e fere a poesia

quebra-a, destrata-a

mas não a esgota

 

Daí essa coisa gritante

que é ter o poeta

de fazer novos

poemas sempre

 

mas não como o rio dá peixe

sim como o peixe

na sua prática de rio

reinventa o nado

 

Está resolvido Hermenegildo a igualmente se não defender como Graciliano aquando da sua prisão. A sua não defesa é feita através da sua escrita por nós lida do lado de fora, do lado de cá do nascimento, quando se expõe a roupa lavada na corda ou no varal, agora como um mosaico de oportunidades.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Julho 2015