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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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De 6 a 12 de julho de 2015.


«Saudades de Deus» de Joaquim Carreira das Neves (Presença, 2015) interroga a relação com a transcendência, a partir de um diálogo entre a razão e a fé, entre a ciência e a teologia, sem receio de pôr em comum atitudes e reflexões sem preconceitos nem limitações.

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 UM DEBATE INTENSO

O debate é naturalmente intenso. Há, tantas vezes, posições extremadas, já que nos diferentes campos há tentações de apresentar conclusões definitivas sobre a relação complexa com Deus. O Padre Joaquim Carreira das Neves há muito nos habituou a pôr as questões de um modo aberto e sereno, assumindo o diálogo como uma troca de argumentos, sem a tentação de apresentar conclusões definitivas ou perentórias. Ao interrogarmos os limites, do conhecimento e da compreensão, não estamos no campo das considerações do positivismo científico, que há muito foi posto em causa. Estamos no ponto em que temos de considerar o espírito científico e o sentido crítico. O domínio da fé está para além da importância dessa atitude. Não é com argumentos de fé que cultivamos a ciência, nem é com demonstrações científicas que progredimos na fé. «Nem a religião tem direito de invadir e dar lições à ciência, nem a ciência à religião». Daí que, nesta obra, encontremos, ao longo de quinze capítulos, com base na leitura de textos referenciais do Antigo e do Novo Testamento, que o autor estudou criticamente, bases de reflexão para um verdadeiro diálogo religioso, centrado numa perspetiva de liberdade. Ao perguntar – Deus, sim ou não?, o autor põe-nos o tema das «saudades». «Ao falar de saudades de Deus, quero exprimir que, longe de Deus, arrastamos connosco uma vida de saudade no Deus em que acreditamos. Parto do princípio de que a criação vem de Deus e vai para Deus, de muitas formas e feitios. E isto acontece com todas as religiões, isto é, com todos os que acreditam em Deus – num Deus pessoal ou impessoal». E assim parte do princípio de que não pode haver uma prova, centrada na tutela das igrejas e da tradição. A religião e a ciência são realidades autónomas – influenciadas pela secularização, pela liberdade democrática, pelos direitos humanos, pelo diálogo intercultural, ecuménico e inter-religioso. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa, reconhecidas hoje pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II, constituem fatores fundamentais de humanismo e de emancipação, colocando a dignidade humana no centro da vida em sociedade e do bem comum. O exemplo do Padre João Resina (1930-2010), engenheiro químico, membro do Centro de Física da Matéria Condensada, é significativo. Uma vez, António Marujo perguntou-lhe: «Um padre que ensinou física durante trinta anos sabe se, afinal, Deus não joga aos dados?». O sacerdote respondeu: «Sou discípulo de Kant. Ele diz que há três questões fundamentais: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é lícito esperar. E acho que a primeira depende da ciência. As más catequeses tiveram sempre a mania de misturar essa questão com a apologética. Kant achava que não, eu também. Uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a física e a biologia. (…) A segunda questão é o que devo fazer, como se deve viver para se ser Homem. Pergunto à História, às culturas, às religiões. A terceira pergunta é o que me é lícito esperar, qual o sentido de fundo de tudo isto. Aí encontro a questão de Deus». A questão é claríssima, as esferas são distintas e a independência de espírito é nitidamente assumida, com todas as consequências.

 

O DEUS DOS FÍSICOS

Carreira das Neves, depois de invocar o Padre Resina e Kant, lembra igualmente António Lobo Antunes. E ouvimo-lo: «Sabe como me aproximei de Deus? Foi através dos físicos…». Em lugar de uma imagem material, «que é uma coisa que Deus não é», o escritor respondeu à pergunta sobre «quem é o Deus em que acredita», dizendo: «Deus é aquele que me diz ao ouvido que gosta de mim». Eis o ponto fundamental. Estamos no domínio da relação pessoal e da vida vivida. É a lei do amor (agapé). E é sobre essa realidade que o autor escreve «Saudades de Deus», começando nos Salmos do Antigo Testamento («Junto aos Rios da Babilónia sentámo-nos a chorar» e «Como suspira a corça pelas águas correntes»…), prosseguindo na apresentação antropomórfica de Deus, do Génesis ao Livro dos Reis, que Harold Bloom considera obra-prima da História da Literatura, ao lado de Homero, Dante e Shakespeare («O Senhor apareceu a Abraão junto dos carvalhos de Mambré, quando ele estava sentado à porta da sua tenda, durante as horas quentes do dia…»). O caminho prossegue, com o episódio do «Deus Invisível» de Moisés, com Jesus Cristo perante os discípulos de Emaús e a incredulidade de Tomé, com o Deus do amor na pessoa de Jesus Cristo, com a interrogação sobre a dificuldade de amar os inimigos («O bom pastor dá a sua vida pela ovelhas»), com os Padres da Igreja e o seu ensino - «este o rochedo liso, polido e alcantilado, que não apresenta nenhum suporte ou saliência em que se fixe a nossa inteligência…». O escritor continua a sua ação de muito mérito, no sentido de analisar as tradições católicas, o purgatório nos textos bíblicos, Maria, Mãe de Deus, a capacidade inovadora do Papa Francisco, as Novas Espiritualidades – e uma pergunta final”: Que dizer de tudo isto? «Tenho o máximo respeito por estes espiritualistas ou espirituais que não aceitam as “velhas” “religiões” com dogmas, mandamentos e regras de conduta. São uma religião sem Credo à maneira do Credo que estudámos na patrística. São uma religião intimista, sem liturgia exterior Há quarenta anos era a “meditação transcendental”». Como chegou até nós o monoteísmo cristão? Eis a preocupação fundamental do autor as escrever «Saudades de Deus». De um modo rigoroso, e invocando textos fundamentais, estamos perante um percurso que está ao alcance da inteligência crítica. Galileu Galilei ou Charles Darwin obrigaram-nos a pensar de um modo mais exigente, como hoje Stephen Hawking… Os erros (quando o eram) foram assumidos e aceites. Não se trata, porém, de deitar para trás das costas o que obriga a um sentido crítico atual. Temos de compreender que Deus é «passível de “máscaras”, criadas á “imagem e semelhança” dos homens». «Assim foi e assim será. Por isso mesmo, a figura do Papa Francisco procura redescobrir, nos nossos dias, a face mais fiel da pessoa de Jesus como resposta aos grandes problemas da humanidade». Razão tinha Agostinho de Hipona, ao dizer que o nosso coração é um eterno buscador de Deus, ou seja, só encontra paz no coração de Deus. «É eterna a busca da consciência humana pela sua verdade e identidade, Fonte a jorrar a água viva do Deus vivo»…  


Guilherme d'Oliveira Martins

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Voltaire

 

Minha Princesa de mim:

 

Reservo esta tarde para descansar o espírito. Tive notícia de mais uma súbita e precoce separação de um jovem casal amigo, lembrei-me do "amor líquido" do Zygmunt Bauman, e escrevi o 21º soneto de amor mordido. E voltei à "luzes". O Éloge Historique de la Raison, de Voltaire, apresenta-se como discurso pronunciado numa academia de província por conferencista alhures identificado como M. de Chambon, em 1774. (O mesmo pseudónimo assina o opúsculo Sur la paix perpétuelle). Começa assim:

Meus Senhores:

Erasmo fez, no século XVI, o Elogio da Loucura. E vós mandais-me que vos faça o Elogio da Razão. Esta razão, com efeito, só é festejada pelo menos duzentos anos depois da sua inimiga, o mais das vezes bastante mais tarde; e há nações entre as quais ela ainda nem sequer foi vista.

O objectivo desse texto, em que a Razão e sua filha Verdade vão brevemente percorrendo algumas culturas no tempo e no espaço, é simplesmente celebrar o triunfo das "luzes": Fez-se, desde há doze anos, uma revolução nos espíritos...  ... A luz espalha-se certamente por todos os lados, diz o autor a Helvétius, em Junho de 1765. A Razão e a Verdade podem habitar entre os homens em tempos de justiça e tolerância. Nem sempre - entre nós, católicos, sobretudo chez les conservateurs intégristes - se apreciou justamente o chamado iluminismo. Bem sei, minha grande amiga, que a sua própria designação é já um desafio à Igreja que se pretendia cânone supremo do pensamento e saber humanos. Mas tal não é justificação, antes pelo contrário, para recusarmos a frescura de uma atitude que poderá questionar ideias feitas ou crenças sedimentadas, mas que é, mais do que isso, um reconhecimento da razão como dom universal de Deus ao género humano. E nota bem que o primado da razão não significa superioridade inata de qualquer afirmação contra e sobre todas as outras, antes nos chama à ponderação independente e equitativa, é fonte de critério, entendimento e tolerância. Voltaire e Diderot eram grandes admiradores de pensadores britânicos, como Locke ou Newton, privilegiavam a observação como arranque para a formulação de ideias e juízos. O iluminismo enquanto atitude moral foi-se estendendo a outras áreas da actividade humana. Ainda esta manhã, lendo o Art in History de Martin Kemp, professor em Oxford, registei esta afirmação do pintor e connoisseur Jonathan Richardson, em 1719, no seu A Discourse on the Dignity, Certainty, Pleasure and Advantage of the Science of the Connoisseur. "Para ser um bom Connoisseur, um Homem tem de ser tão livre de Preconceito quanto possível. Mais ainda: deve ter um Claro e Exacto modo de Pensamento e Raciocínio; deve saber como pegar nas coisas e conseguir Ideias justas; e Finalmente deve ter um Juízo não apenas Sólido mas Recto."E apontei ainda o dito de Edme-François Gersaint, ao tempo galerista de arte em Paris: " O genuíno amador, quero dizer, o autêntico connoisseur, está menos preocupado com o nome de um pintor ou a raridade dos seus quadros, do que com a qualidade do seu trabalho"... Em 1772, Voltaire escrevera, inspirado pelo empirismo de Locke, e contra o conceito cartesiano de ideias inatas, o breve Aventure de la Mémoire: O género humano pensante, isto é, a centésima milésima parte do género humano, no máximo, acreditou durante muito tempo, ou pelo menos o repetiu muitas vezes, que não temos ideias a não ser pelos nossos sentidos, e que a memória é o único instrumento pelo qual possamos juntar uma à outra duas ideias e duas palavras. E encerra aquele texto com uma frase em latim: Non magis musis quam hominibus infensa est ista quae vocatur memoria (Isso a que se chama memória não é mais inimigo das musas do que dos homens). Esta paráfrase de um tema para dissertação proposto na Sorbonne assenta no mito clássico - que aliás Voltaire não leu bem - dos amores de Júpiter, senhor da natureza, com Mnemósina, deusa da memória, donde nasceram as nove musas de todas as artes. Não sei porquê  -  talvez porque é passeio por lembranças a leitura amiga dos clássicos  -  dei comigo a reler Lucrécio, mais precisamente o Livro III de A Natureza das Coisas (De Rerum Natura), escrito na primeira metade do sec. I antes de Cristo: Nunc animum atque animam dico conjunta teneri... Afirmo agora que o espírito e a alma estão unidos entre si, e por si formam uma só natureza; mas a cabeça e, por assim dizer, a senhora de todo o corpo é a razão, a que chamamos espírito e mente. Fica ela situada no meio da região do peito. É aí que rebentam o pavor e o medo e, em sua volta, as alegrias que nos afagam; é aí, pois, que mente e espírito têm sede... Transcrevo, com alguns levíssimos retoques, a tradução dos versos 136 a 144 por Maria Helena da Rocha Pereira, ouvindo o concerto para piano de Schumann, interpretado por Dinu Lipati, com Karajan a dirigir a orquestra do Festival de Lausanne. O tal que, segundo o próprio compositor, seria algo entre o concerto, a sinfonia e a sonata... E pensossinto que tem esta música a ver com as citações acima feitas, pois obedecemos a uma razão que é sensações e memória, sentimento e discernimento. Somos inelutavelmente complexos; tenho para mim, sempre lembrado do dito de frei Jean Cardonnel, que a estupidez é a essência do pecado, paixão pelos nossos limites. Deu-nos Deus a razão para que a usássemos com independência e tolerância, abríssemos janelas e horizontes, fôssemos caminhando para a comunhão do entendimento. Não para que levantássemos dogmas como barreiras. Aliás, minha Princesa de mim (que ênfase, Deus meu!), o pretensiosismo está nos antípodas da inteligência... Quiçá a afirmação mais estúpida que por aí se vai ouvindo é essa que diz de alguém: "é superiormente inteligente, é uma grande inteligência!" Todos nós temos a nossa dose de estupidez e de inteligência, esta não é um valor absoluto e unívoco: uma bordadeira tem a inteligência da arte que faz, e o pastor tem a da reunião do rebanho, como não a tem um grande compositor ou pianista, nem o famoso advogado ou o sábio biólogo ou astrofísico. Cada um de nós a seu modo entende as coisas e a natureza delas, com mais ou menos eficácia prática ou acuidade especulativa. E todos, por graça de Deus, vivemos em Pentecostes. Quando falo em inteligência não comparo sabedorias, penso na virtude moral que é o esforço de entendimento de cada um. Estúpido mesmo é aquele que se julga possuidor do conhecimento e da verdade, supinamente estúpido esse que, ainda por cima, pretende impor aos outros a sua percepção, e não tolera discordâncias. É-me detestável o pretensiosismo obtuso que, entre outras estupidezes, por exemplo, durante séculos manteve Galileu condenado, só porque tinha usado a razão, tanto para escapar à armadilha enganadora dos sentidos, a partir dos quais, pelo esforço racional, criamos as ideias (quando olhamos para o céu, o que vemos é movimento do sol, como da lua, e não nos apercebemos logo de que, se esta gira à nossa volta, é a terra que roda em torno do sol...), como para colocar noutro plano (exegético e hermenêutico) o entendimento de uma narrativa bíblica. E são, para mim, igualmente ofensivas da nossa inteligência as pretensas "análises" das dívidas ditas "soberanas", quando se limitam à invocação de princípios e regras de juízo e prática, como se fossem universais e não derrogáveis, ideias (inatas?) insusceptíveis de revisão pelo pensarsentir, inquiridor e construtivo, das realidades agora enfrentadas. Tal como lamento a teimosia em se considerar o Charlie Hebdo exemplo máximo da liberdade de expressão, esquecendo a intolerância de um jornal que não entende o que outros muito respeitam. Sabes bem, Princesa, que nem me passa pela cabeça que se deva proibir ou sequer censurar tal publicação, mas sinto-me com direito a opinar que ela me parece pouco racional e, pela sua intolerância agressiva, ofensiva da boa convivência. Claro que lê quem quer, mas a atitude está lá, e eu tenho pena. Enquanto teólogo medievo, São Tomás de Aquino, como sabes, debruçou-se sobre a Bíblia, e conheces os seus comentários de S. Paulo e do evangelho segundo S. João. Mas também foi aos escritos e pensamento de Averroes, ao neoplatonismo e a Aristóteles. Considerava e respeitava a razão, entendeu bem que ela é um dom de Deus a todos os homens, e a "Suma contra os Gentios" não é um panfleto anti-outros - como hoje são tantos escritos e "debates" conduzidos por preconceitos ideológicos, políticos e demais, facciosos e intrinsecamente intolerantes - essa "Suma" é, acima de tudo, uma obra filosófica assente no princípio de que é possível o diálogo com incréus e infiéis, baseado na razão que, também ela, antes de ser cristã, é humana e comum a todos. Há certezas da fé que não se explicam racionalmente, não têm prova científica,  são verdades místicas, aceitam-se, não se discutem. Tal não significa que sejam estúpidas: Pascal viu muitas coisas com arguta inteligência e, todavia, era um céptico, descrente da razão humana, confiante apenas na fé que salva. Mas se a Santíssima Trindade, as duas naturezas, divina e humana na só uma pessoa de Cristo, ou a presença real deste na eucaristia, não são demonstráveis, o mandamento universal do amor - que está no cerne do cristianismo - é algo que todos pensamossentimos, desejamos e devemos procurar. E dele vamos racionalmente deduzindo regras de comportamento e sociedade. Volto a Lucrécio, romano antigo, materialista e ateu, que situava a razão no centro do peito, ali onde a mente e o espirito têm sede... Repito a audição do concerto de Schumann, e dou-te a mão. Por ter algo de sonata, de sinfonia e, propriamente, de concerto, entendemos, tu e eu, que, neste mundo, nas coisas feitas verdadeiramente com cabeça, há sempre palavra e lugar para todos...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Papa Francisco


Minha Princesa de mim:
 

 

Lá te vou escrevendo umas cartas, falo contigo como se, afinal, comigo falasse... Algo descuidado, acontecer-me-á, aqui e ali, algum esquecimento, uma falha, um erro qualquer. Não receio a falta de lembrança (esqueci-me e pronto!), intimida-me, por vezes, poder pensar que me lembrei do que nunca conheci, nada é mais humano do que o engano... Parece-me que foi no Also spracht Zarathustra que Nietzsche escreveu que os deuses tinham todos morrido de riso quando um deles disse que era o único. O monoteísmo é habitualmente confundido com as três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo, islamismo), muito embora ele se possa adivinhar como vocação de outras religiões (no hinduísmo, por exemplo, é o mesmo Deus essencial que se revela nas epifanias de Shiva, Brama e Vishnu) ou ser uma conclusão filosófica ou intuição metafísica desenquadrada de qualquer revelação divina, como o Ente Supremo de Robespierre e das constituições francesas de 1791, 93 e 95 e, ainda, o Grande Arquitecto do Universo de várias famílias maçónicas. A grande descoberta do Deus Único - seja por revelação ou por conceito - está radicalmente ligada a outra singularidade, que Diderot (em Le Rêve de d´Alembert ?) considerava ser o Homem: Um ser passageiro que acredita na imutabilidade das coisas... Nietszche - no seu A Verdade e a Mentira em sentido extra moral, texto que ditou, em 1873, a Carl von Gersdorff e nunca pensou publicar - conta uma fábula: No desvio de um qualquer canto do universo inundado pelos fogos de inúmeros sistemas solares, houve certo dia um planeta no qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais orgulhoso e mais mentiroso da "história universal", mas não passou de um minuto. Após vários suspiros da natureza, o planeta congelou-se e aos animais inteligentes apenas restou morrerem. Eis a  fábula que poderíamos inventar, sem conseguirmos pôr mesmo, mesmo, a claro o aspecto lamentável, nebuloso e fugidio, o aspecto vão e arbitrário dessa excepção que constitui o intelecto humano no seio da natureza. Olha, Princesa: só Deus, revelado ou intelectualizado, poderá saber porque é que me ocorreram estes pensamentos e lembranças a talho da leitura da encíclica Laudato si. Aliás, como me veio à cabeça um texto - que também não se refere a questões ecológicas - do filósofo chinês e marxista Yang Guorong intitulado Regresso à Existência Concreta : o Problema Crucial Ético Actual, em que se cita Confúcio (Não consigo viver em grupo com pássaros e animais, só posso viver com outras pessoas), para introduzir o tema ontológico do Homem como ser relacional... Já te contei, Princesa, como, no liceu, jovem estudante de 16 anos, respondi ao desafio do professor de filosofia, que nos pedia uma intuição metafísica, dizendo-lhe que o Homem é um ser em relação. Desconhecia então quem fosse Martin Buber, o filósofo judeu que - passo a transcrever Yang Guorong, melhor, um passo da sua comunicação à conferência sobre A Condição Humana, organizada pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em Lisboa, em 2000 - no seu bem conhecido "I and Thou", distingue a relação entre pessoas (I - thou) da relação entre uma pessoa e outro ser (I - it ). Nesta relação, o objecto é colocado num tempo-espaço específico. O objecto (it) pode apenas ser utilizado, mas não pode comunicar comigo. Pelo contrário, a relação entre pessoas (I - thou) é recíproca, imediata e aberta. Por via da relação com outrem, "eu" passo a ser "eu". Noutra carta, já eu te referira essa ideia de que Deus me é mais íntimo do que eu mesmo me sou. Lembro-o agora, porque Yang também recorda que Buber desenvolve o conceito do "eterno Outro" (eternal Thou) e coloca-o no centro da relação entre pessoas (I - thou). O chamado "eterno Outro" é a passagem para um ser transcendente no sentido religioso. E acrescenta o filósofo chinês: Do mesmo modo, segundo Levinas, a relação de responsabilidade entre os outros e eu implica o infinito. A minha responsabilidade para com os outros implica a existência do infinito. Enquanto marxista, Yang Guorong faz também, necessariamente, referência à história e às relações de produção: Desde a economia agrícola primitiva à indústria moderna em grande escala e à indústria informática contemporânea, a produção e reprodução de bens materiais está presente ao longo de toda a história da Humanidade...  ... Num determinado sentido, podemos considerar a produção e reprodução de bens materiais como a entidade social da existência humana. Mas eu não sei, Princesa, não sei mesmo, se tanta sabedoria e inquirição esgota a minha sede. Sei que não me contenta o olhar, como o voo das andorinhas que, de manhã cedo, vejo bailar no horizonte que elas então me tornam próximo, bem chegado às janelas abertas do meu quarto... Nem me amansa o coração como a ladainha monótona e cheia de graça das rolas feiticeiras da minha madrugada. Fala melhor o Poverello, nesse poema escrito no inverno frio de 1224/25, em dialecto da Úmbria, um baixo-latim, como a nossa língua quando, menina, ainda balbuciava. Ora lê:

      Altissimu, onnipotente, bon Signore,

      Tue so´le laude, la gloria e l´honore et onne benedictione.

      Ad te solo, Altissimu, se konfano,

      Et nullu homo ène dignu te mentovare.

      Laudato sie, mi Signore, cum tucte le tue creature,

      Spetialmente messor lo frate sole,

      Lo qual´ é iorno, et allumini noi per lui.

O sol, que nos traz o dia e alumia - e aquece a alma e a vida - deus soberano dos incas e tantos outros, único dos egípcios de Akhenaton, essência da Amateratsu nipónica, é sua senhoria nosso irmão, primeiro entre todas as criaturas do Altíssimo omnipotente, que com todas elas deve ser louvado e agradecido... Ou todas elas com Ele, cujo nome homem nenhum é digno de pronunciar, Ele que todas elas chama e agrega! Esse Senhor Deus que descobrimos e recebemos deu-nos o riso franco da alegria e o amor da vida, mesmo para além do desespero. Bem sei, Princesa de mim, que não é fácil - e até pode parecer inconsciência, masoquismo, injustiça ou sadismo - cantar laudes num mundo carregado de erros, sevícias e negativismo. Mas que outro caminho teremos, se não sairmos em busca da alegria? Depois da exortação Evangelii gaudium, o Papa Francisco vem lembrar-nos a alegria de sermos em relação, de darmos graças e cantarmos louvores ou, se preferires, a alegria franciscana da humildade perante o Criador e a sua obra, esta natureza que nos foi confiada, tal como a dignidade de todos os homens, cuja fraternidade nos obriga à justiça. A encíclica alerta-nos e desafia-nos para o cuidado da nossa casa comum, a terra nossa irmã e nossa mãe, assim cantava Francisco de Assis:

      Laudato si´, mi´Signore, per sora nostra matre terra,

      La quale ne sostenta et governa

      Et produci diversi fructi com coloriti flori et herba...

Chama-nos a uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. Integral, sim, porque o respeito agradecido da Criação, o cuidado da natureza e da nossa relação com ela, não é realizável sem vinculação à preocupação com todos os  homens, sobretudo os mais desamparados e vulneráveis, vítimas da ganância alheia e das injustiças e iniquidades dos sistemas económicos. A utilização ou exploração da natureza para a produção de bens necessários pertence à "entidade social da existência humana", não é apenas uma relação de mim a um objecto, mas de mim com os outros e a nossa comum dignidade. Parafraseando Confúcio, eu só vivo em grupo com outras pessoas, por isso a natureza é, nesta encíclica, a nossa casa comum, a morada que Deus nos deu. Esse mesmo Deus, que é único mas tudo em todos, o eternal Thou de Martin Buber, e que encontramos no íntimo de nós e no âmago da relação entre pessoas. Neste turbilhão de muitos sinais de rádio que é a minha cabeça, um apito me diz que o papa Francisco será popular, mas à maneira dele : quiçá por nos lembrar a todos a dignidade igual da nossa condição e nos chamar à alegria da esperança, acreditando sempre que o que é curto, mesquinho e mau pode vencer-se pela generosidade do melhor que há em cada um de nós. Terminando esta, dou-te, na mão que te estendo, este trecho da carta sobre Victor Hugo que Eça de Queiroz escreveu ao diretor de A Ilustração: O Cristianismo foi feito assim, com imagens, com parábolas, com declamações. Todavia no tempo de Jesus, antes dele, houvera homens como Hillel, Shammai, e o nobre Gamaliel, cujas prédicas continham já todas as sementes do Cristianismo : mas quê! eram doutores, argumentadores políticos, homens práticos. Ninguém os escutou. Surge um inspirado, lá do fundo da Galileia, que vem falando vagamente de piedade, de amor, de fraternidade e do Reino delicioso de Deus  --  e o mundo maravilhado deixa os velhos cultos e as velhas ocupações e vai atrás dele, preso para sempre...

Camilo Maria  

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Nouveau Réalisme: A poética do real

 

‘What do we propose instead? The passionate adventure of the real perceived in itself and not through the prism of conceptual or imaginative transcription.’, Pierre Restany em ‘The New Realists’, 1960

 

Ao concentrar-se no início da década de sessenta, é importante referir o Nouveau Réalisme pela sua influência que teve junto do grupo português KWY e sobretudo pela aproximação à vida quotidiana através da escolha e manipulação de objectos de uso comum. Desenvolveu-se em França, a partir de 1960, a par da Pop Art, e contou com a participação e envolvimento de figuras como Yves Klein, Arman, Pierre Restany, Daniel Spoerri, Jean Tinguely, César, Christo e Niki de Saint Phalle.

Pierre Restany, crítico de arte, deu o nome ao grupo evocando o realismo literário novecentista que declara uma realidade social urbana banal, quotidiana através de objectos manipulados pelo artista e não através de descrições aturadas (Nouveau Réalisme assim como Nouveau Roman ou Nouvelle Vague). O grupo desejava aproximar a arte e a vida e relacionar-se directamente com a realidade. Os novos realistas consideram o mundo como a obra de arte fundamental e cabe ao artista descodificar os seus elementos com mais valor, evidenciando uma consciência política, apreendendo a profundidade e a interpretação subtil dos conteúdos. (Argan: 1992)

 

‘Sociology comes to the assistance of consciouness and o f chance, whether this be at the level of choice or o f the tearing up o f posters, of the allure of an object, of the household rubbish or the scraps of the dining-room.’, Pierre Restany em ‘The New Realists’, 1960

 

Os artistas utilizam os objectos mais variados: cartazes publicitários, imagens cinematográficas, fotografias de revistas ilustradas, luzes de néon e plásticos de todo o tipo. O evento refere-se sempre a um contexto real e a partir daí o artista evidencia certos aspectos expressivos e determina uma ruptura na rotina do consumo. A nova vida moderna é representada por objectos do real concretos seleccionados, combinados e revestidos através de acções poéticas como divisão e acumulação (Arman), compressão ou expansão (César) e embalagem (Christo). O artista vive agora da colecção e da escolha. É atribuído um novo sentido às coisas coleccionadas não só porque são retiradas de contexto como também são manipuladas. O artista conserva em vez de consumir. Sendo assim, a vida moderna é um produto pronto a consumir. (Argan: 1992)

Sem a menor variação, os quadros monocromáticos de Yves Klein exercem influência sobre o fruidor para que possa viver segundo uma só cor – azul, cor-de-rosa, dourado. Klein, para tornar esta ideia mais evidente, recorre até a pincéis vivos, modelos nus molhados de tinta que estampam a sua marca na parede. (Argan: 1992)

Niki de Saint Phalle depois de inventar as shooting paintings (Tirs), onde ridiculariza o uso exaustivo dos gestos existencialistas que deram lugar à pintura informal, cria as primeiras Nana – mulheres feias, destorcidas, monstruosas que invertem o culto da beleza e da fertilidade da mulher. Com a criação de Crucifixion Niki antecipa Hon, a mulher-catedral exposta no Modena Museet de Estocolmo em 1966, onde se eleva a figura da mulher fértil à dimensão sagrada. (Groom: 2008)

Em Portugal, o ambiente Pop inclui a Nova Figuração, associada diversos artistas como pertencentes ao KWY, mas também António Palolo, Eduardo Batarda, o cartazismo de Nikias Skapinakis e a organização narrativa das memórias de Joaquim Rodrigo.

KWY, apesar de se ter formado no final dos anos cinquenta, teve repercussões assinaláveis durante toda a década seguinte. Entre Paris e Munique, Lourdes de Castro, René Bertholo, João Vieira, Costa Pinheiro, José Escada e Gonçalo Duarte criaram um grupo de intervenção – KWY, com as letras ausentes do alfabeto português (‘Ká Wamos Yndo’). O grupo associou-se também ao búlgaro Christo e ao alemão Jan Voss. A sua existência efectivar-se-ia pelas representações colectivas em exposições (Saarbrüken, 1960; Lisboa, 1960; Paris, 1961; Bolonha, 1962), pela acção editorial e pelas responsabilidades partilhadas na produção dos exemplares serigrafados dos doze números concretizados da revista.

KWY representa, assim, um projecto com total liberdade gráfica e editorial, definindo-se através da ausência de um programa ético-estético, pressupondo uma separação de finalidades ideológicas (Candeias, 1997). Deseja atingir a total liberdade na aplicação do material e do gesto, surgindo como um novo modelo de actuação artística mais eficaz, evitando que assumisse um sentido de tendência escolar ou estilística comum. A prática da serigrafia na revista tenta romper com valores canónicos do que se afirmava ser arte maior em proveito de uma visão que adere à cultura popular (Serra: 2006).

Em ‘Revista KWY: Da abstracção lírica à Nova Figuração’, de Ana Filipa Candeias, lê-se que em termos de composição gráfica, KWY, pode ser caracterizada principalmente pela sua factura artesanal e experimental, com uma excepção – KWY 6 – que marca uma tentativa de fazer transitar a revista de uma concepção manual e de circulação quase privada, para uma nova concepção de revista pública, mediática e mecanizada – sem aliás obter o sucesso esperado, conforme se poderá deduzir pelo retorno à concepção primeira, com KWY 7.

Lourdes Castro e René Bertholo (fundadores da revista) iniciam a década de 60, com trabalhos no campo da ‘Assemblage’ e de ‘Nova Figuração’ e, plasticamente, são os últimos números da revista que indicam essa transição para uma poética neo-figurativa. A revista tem um carácter cosmopolita e globalizador, incluindo artigos e trabalhos de grupos e artistas vanguardistas europeus como por exemplo Pierre Restany, os Nouveau Réalistes, António Saura, o Grupo 58, Ben Vautier e Robert Filliou. Pierre Restany, chegou mesmo a referir-se a KWY, numa antologia de textos (datados de 1978) com vista ao lançamento dos ‘Nouveaux Réalistes’, como sendo uma revista de vanguarda existente em Paris, nos anos de promoção daquele movimento.

 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Minha Princesa de mim:

 

Britânico e francófilo, homem de letras, Anthony Daniels publicou, na revista New Criterion (fevereiro de 2015), uma resenha crítica do já famoso romance de Michel Houellebecq Soumission. Deves lembrar-te de como, depois de o termos lido,  conversámos e te disse quanto esse livro me tinha trazido de volta a temas que já tratei, tão impressionado ando, há anos, com a crise da nossa civilização, que me aflige sobretudo por verificar que ela radica numa perda progressiva da nossa identidade cultural, arrastada pelo esquecimento da nossa própria memória e pelo leviano esvaziamento de valores que nos orientem e animem, sem que tenhamos adquirido o espírito crítico e sentido profético necessários à invenção de novas inspirações. As nossas sociedades estão, hoje, desinspiradas. É triste. O Anthony Daniels é, de sua profissão, médico psiquiatra, com longa e privilegiada convivência com pessoas e mundos : trabalhou em África, no Zimbabwe e na Tanzânia, como em hospitais públicos e prisões, no Reino Unido. Traduzo passos do artigo referido:

Houellebecq é um escritor animado por um só tema subjacente : o vazio da existência humana numa sociedade de consumo destituída de crença religiosa, de projecto político, de continuidade cultural, onde, ainda por cima, graças à abundância material e à segurança social, não existe nenhuma autêntica luta pela existência que pudesse dar um sentido à vida de milhões de pessoas...   ...Na visão do mundo de Houellebecq, isso confere uma intensa inutilidade a toda a actividade humana, que não passa de uma luta pela aquisição de bens de consumo supérfluos incapazes de nos trazer a mínima felicidade, ou sequer de nos distrair do próprio vazio. E, recusando classificar o romance Soumission como um violento panfleto anti-islâmico, dirá que ele antes é uma meditação, uma chamada de atenção para nós mesmos, como eu também tanto tenho insistido em que se faça: Uma reflexão sobre as razões pelas quais esta civilização é tão vulnerável aos assaltos de uma força intelectualmente tão insignificante como o islamismo que, de acordo com qualquer critério de razoabilidade, não tem absolutamente nada de válido para dizer aos homens do século XXI. Por outras palavras, é um convite implícito à introspecção, à reflexão sobre o que não está bem connosco, em vez de com eles... Num destes dias, li num jornal  - não recordo em qual, talvez no suplemento Culture & Idées de Le Monde - um longo artigo sobre jovens jihadistas  europeus, que largam as suas casas, famílias e amigos, para irem engrossar as fileiras do Daech na Síria e no Iraque. Distraidamente, ainda assentei uns números : 25% de menores, 35% do sexo feminino (!), 40% de convertidos. Se a memória me não falha, referia-se ali que o número destes (convertidos ao islão) ia crescendo entre as mulheres e os mais jovens, e que o recrutamento se vem fazendo cada vez mais, não tanto nos subúrbios pobres e de imigrantes (mouros e outros), mas nas classes média e alta da burguesia... Descubro ainda, num apontamento que tirei, a afirmação de que não estão ainda bem estudadas as causas ou motivos dessas adesões à causa do Estado Islâmico. Sabe-se, todavia, que todos esses jovens têm em comum o "estarem em perda de referências e em ruptura com o seu meio ambiente, pelo que se encontram em grande fragilidade psíquica, mas que o discurso jihadista, mais do que corresponder a um desejo de religião, vem antes preencher uma falha identitária, um desejo de aventura, a necessidade de abraçar uma causa"... Estas cartas que te escrevo podem ser, por vezes, um desabafo ou uma confidência, mas saem-me sobretudo do gosto de conversar contigo, com a liberdade de quem se põe a pensar partilhando. Quando, posto em sossego, dou largas à cabeça, vou picando e associando temas, isto é como cerejas... Até me lembrei agora do Marquês de Pombal e do que fez aos Távora, salgando-lhes os campos e apagando-lhes ou destruindo os brasões. Vimos um destes (lembras-te?), escapado à fúria que queria obliterar a memória de um nome e de uma família, numa laje tumular no Convento dos Cardais, em Lisboa. A condenação (até) da memória, a damnatio memoriae que já os romanos aplicavam como pena a título póstumo, ou os revolucionários franceses quiseram levar às últimas consequências, destruindo lembranças e referências que encerravam uma identidade construída durante séculos de história, ao ponto de inventarem mesmo um calendário novo. O afã mesquinho dos que buscam revestir-se de apelidos sonantes, só para não se reconhecerem no nome dos seus antepassados, ou vão apagar nomes de ruas e sítios, na ilusão de que podem condenar a história. Como se fossem eles os mais que perfeitos... Eu, como sabes, que me manifestei em oposição ao Estado Novo, no tempo da vigência deste, continuo a irritar-me com uma "democracia" em que tantos políticos conseguiram, ainda nas suas vidas, dar o seu nome a mais escolas, ruas, pontes e sanitários, do que o fizeram "ditadores" durante décadas. Será fezada na perpetuação da própria glória, ou simplório narcisismo? Melhor (ou pior) : será que o que já não aprendemos, ou esquecemos ou apagamos de memória colectiva é hoje substituído pela efémera vaidade de aparições televisivas e logo obsoletas? Também se arrasaram cidades para apagar memórias, ou se queimaram a biblioteca de Alexandria, como, muito mais tarde, livros árabes no auto da fé de Córdova em 1500. Sabes, minha Princesa de mim, o que hoje mais me dói é a leviandade com que as nossas sociedades ditas civilizadas têm vindo  -  paulatinamente, primeiro, e já em velocidade acelerada  --  a destruir a nossa memória de nós. Pusémo-nos fora de moda, e até, em romances pretensamente "históricos", com pretensiosismo "científico" fantasiamos cristos e credos, identidades e nações, e confundimos ideais com caprichos, amores com potenciadores de actividade sexual. Fernando Báez, o venezuelano autor da Nueva Historia Universal de la destrucción de libros, em entrevista dada a Suzi Vieira para a revista Books, lembra bem que a destruição de património cultural iraquiano pelo Daech  - que ele tem vindo, como perito, a acompanhar - pode camuflar também operações de venda clandestina de bens culturais (que, claro está, servem para financiar o "movimento" e os seus líderes): ...lemos nos media que estátuas mostradas nos vídeo eram, afinal, cópias em gesso. Isso é verdade para uma parte dos objectos detruídos no museu de Mossul, mas não para todos... ...Estamos diante de uma real destruição iconoclasta da antiga cultura assíria. Os terroristas servem-se dela para enviarem uma mensagem de intimidação aos cristãos e ao Ocidente...  ...O que a História me ensinou é que nunca se destrói um livro como objecto físico, mas como laço memorial, ou seja, como um dos eixos da identidade de um homem ou duma comunidade. Nós somo os que se lembram do que são. Não há identidade sem memória. E os símbolos dessa memória são os livros e os bens culturais. A sua destruição é sempre a expressão de uma tentativa de aniquilar uma memória percebida como ameaça directa ou indirecta para outra, considerada superior. Por detrás de cada destruição cultural, podemos vislumbrar uma intenção de forçar uma amnésia, que permitirá o controlo de um indivíduo ou duma sociedade. Perdoa-me, Princesa, todo este arrazoado: é bem verdade que já não sei avaliar, no meio de tanta trapalhada, se sou senior ou se estarei senil... Diz-se por aí que os que vão nascendo agora podem contar viver 150 ou muitos mais anos... Deus os guarde. E me dê a mim, além do pão de cada dia, a alegria de ser, sobretudo quando penso, parafraseando o Poeta, que para tão grande amor é curta a vida. Vou-te dando a mão e sentindo que é de mãos dadas que melhor vivemos a memória de nós.

 

Camilo Maria

  

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE PALMO E MÃO VI

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Minha amiga única:

Estou a ler um livro enquanto me direcciono para a casa dos nossos amigos em Richmond. O meu marido virá ter comigo à estação sob esta contínua chuva de Inglaterra. Estamos ambos exaustos de tanto trabalho e preocupações sufocantes que em Portugal temos suportado nestes últimos anos. Contudo, como sabes, o nosso amor tem tido sempre o espírito e a razão das tais: amor, pensamento, amizade e paixão, tudo confundido e esclarecido no espaço do erguer.

Por aqui estaremos dois ou três dias apenas, e, em muito viemos para falar da India, a nossa India, a grande verdade que a ela nos leva constantemente até ao interior de não sabermos se ela é Deus ou fera; se nasceu para morrer ou para errar, sentindo humanidade pelo bem e pela imperfeição; ou se apenas percorre labirintos e nos deixa espreitá-los.

Mas escrevo-te, como prometido, dizendo-te assim o que pelo telefone não seria capaz de transmitir quando ontem falámos. E sim, a incapacidade tinha de ser encarada por vós e tanto quanto possível elucidada. Os beijos têm contexto, e como dizes, sentires de estética também. Por isso, Inês, a verdade deles não é uma questão de opinião maioritária ou de quase unanimidade. Pelo contrário: de alguns, nunca conseguiremos libertar-nos da suspeita que louvá-los foi algo convencional ou excessivo. De outros nenhum juiz se aproximará. Mas, lembra-te sempre carinhosa amiga, que só o essencial faculta a justificação e depois dela a pergunta continua. Vai, segue-o como homem mortal, sei que repararás na clareza das leis da natureza.

Para ti = uma mão de água-benta


A tua amiga Isadora

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Por Teresa Bracinha Vieira

Junho 2015

ATORES, ENCENADORES (XXX)

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Maria Lalande (in http://encontrogeracoesbnm.blogspot.pt/)

 

FRANCISCO RIBEIRO E OS COMEDIANTES DE LISBOA

Não vamos transformar esta série de artigos num levantamento histórico, mesmo de história moderna do espetáculo em Portugal: mas é justo e necessário para compreensão da estética e da política do teatro português contemporâneo, enquadrar o teatro que hoje se faz, e os artistas que o fazem, numa perspetiva de antecedentes históricos, designadamente a nível de repertório moderno da época e de hoje, desde que de qualidade: com a “agravante” que essa contemporaneidade, em tantos exemplos, era na época perfeitamente “vanguardista”.

E mais: o mérito de quem o fez em Portugal surge hoje reforçado pelo ambiente difícil, distanciado, no mínimo desconfiado ou repressivo com que esses espetáculos chegavam ao público – e quando chegavam… Nesse sentido, ainda falarei aqui de algumas iniciativas hoje “históricas” mas na data extremamente relevantes e importantes. 

Referi, no artigo precedente, a importância de Francisco Ribeiro na estruturação e atualização do teatro em Portugal, ao longo do século passado. E já na altura vimos que não se tratou, então como agora, de uma simples evocação “histórica” – do espetáculo e da própria literatura dramática. Já não seria pouco, dada a época. Mas o que importa salientar é que a atualidade dos autores, de facto em muitos casos desconhecidos na época, conciliou-se com uma renovação de elencos, de estilos e de estéticas que abrangeu a arte teatral portuguesa como um todo. E de tal forma, que não perdeu hoje atualidade.

Está nessa perspetiva a evocação do companhia dos Comediantes de Lisboa,  dirigida nos anos 40/50 por Francisco Ribeiro e pelo irmão António Lopes Ribeiro. E isto porque se mantêm atuais muitos dos autores e das peças na altura estreadas, mas sobretudo, essa perspetiva de renovação que constituiu o cerne dos programas, mesmo quando reencenavam autores já na altura clássicos, e cito como tais as peças de Ibsen, de Tolstoi, de Camilo, de D. João da Câmara, de Dumas Filho – e muitos deles constituíam revelações, no que respeita  ao teatro encenado em Portugal. Isto não obstante outras iniciativas então empreendidas, e é justo evocar a renovação que também trouxe à cena a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro.

Mas o repertório dos Comediantes de Lisboa era de facto moderno e  na época inovador. Inclusive, pela revelação de dramaturgias então pouco ou nada conhecidas em Portugal. Basta lembrar que o primeiro espetáculo dos Comediantes de Lisboa foi uma peça americana, o ainda hoje evocável “Não o Levarás Contigo” de Kaufman e Hart, depois divulgado na versão cinematográfica. E se passarmos rapidamente o repertório traduzido dos Comediantes de Lisboa, encontramos peças como a “Fanny” de Marcel Pagnol, a “Eletra” de Giraudoux, o “Pigmalião” de Bernard Shaw,  “O Círculo” de Somerseth Maugham, e ainda textos de Marcel Achard e tantos mais.

Mas mais interessante será a insistência em dramaturgos portugueses contemporâneos, o que desde logo reforçava a dificuldade de os apresentar em público. E nesse aspeto, apraz-me salientar a estreia do “Baton” de Alfredo Cortez, pela qualidade do texto mas também pela revelação que na época constituiu, depois de anos de proibição.

O tema da peça será delicado – mãe e filha apaixonadas pelo mesmo homem, numa retoma, agora num ambiente social e urbano  desenvolvido de alta burguesia, antes referido por Cortez num meio rural em “O Lodo”. A peça acaba por propor uma solução de renúncia ética e social, mas nem por isso causou menos turbulência na época. “Sátira burguesa” dizem  António José Saraiva e Óscar Lopes na “História da Literatura Portuguesa”.

Ora, importa então referir que a peça, proibida em 1938/9, acabou por ser, anos  decorridos,  um dos mais assinaláveis espetáculos dos Comediantes de Lisboa, a partir da encenação de António Lopes Ribeiro e da interpretação de João Villaret no papel de “Tatinho - rapaz novo, efeminado”, diz a didascália, e percebemos bem o que  representaria essa caracterização do personagem, no Teatro da Trindade, em 1946!

Mas ficou também a qualidade do restante elenco, desde Lucília Simões a Maria Lalande, José Gamboa, Josefina Silva, Lucia Mariani, e outros mais, de primeiro plano já na altura: e muitos deles, ainda os vi anos depois  representar, só que em personagens bem mais idosos …         

 

DUARTE IVO CRUZ   

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