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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES (XXXV)

Eduardo Brazão - ilustração de Columbano Bordalo Pinheiro
Imagem: Eduardo Brazão - ilustração de Columbano Bordalo Pinheiro

EVOCAÇÃO DO PRIMEIRO EXPERIMENTALISMO TEATRAL

Na última crónica, referi duas iniciativas que marcaram a cultura e a prática do espetáculo em Lisboa no início do seculo XX: o Teatro Livre, de 1904, e o Teatro Moderno, de 1905, ambos por iniciativa do ator Luciano de Castro. E relacionamos essa referência histórica com um espirito de inovação e experimentalismo, digamos hoje assim, que preconizava, em termos da arte do espetáculo, as mudanças politicas, sociais e culturais que ocorreriam escassos anos depois.

E precisamente: no verão de 1911 surge uma breve e algo insólita iniciativa de espetáculo cultural que, na sua singeleza, apontava para um sentido de renovação e modernização, o qual, mesmo sem continuidade imediata, haveria de concretizar, em termos da arte do espetáculo, uma manifestação de experimentalismo notável para a época, em termos de renovação, repita-se, de repertório e de espaços.

Refiro o chamado Teatro da Natureza, dirigido pelo cenógrafo Augusto Pina, que se rodeou, para o efeito, de um conjunto de atrizes e atores de qualidade, sob a direção artística de Eduardo Brazão, à época no auge da sua carreira. E alguns nomes ainda hoje merecem destaque: Adelina e Aura Abranches, que já aqui evocamos, Luz Veloso, que iniciava uma carreira de décadas no Teatro Nacional e não só, Alexandre de Azevedo ou Rafael Marques, que viria a ser nome de sala de espetáculos…

Há aspetos de modernização que merecem ainda hoje referência. Desde logo, a experiencia de teatro ao ar livre, o que já de si era na época inovador, ainda por cima num recinto extremamente popular em Lisboa, o Jardim da Estrela, e com um repertório sobretudo clássico, o que também não seria habitual. Talvez por tudo isso, a experiencia não se prolongou: em qualquer caso, há nesta iniciativa um espirito de modernidade que apraz recordar mas que, precisamente, era desadequado para a época e talvez sobretudo para o local.

O repertório, de indiscutível qualidade, não se adequava à iniciativa de um espetáculo popular pelo local e pelas condições cénicas. O tom era predominantemente clássico, mesmo quando recorria a versões modernas.

Assim, o espetáculo de estreia foi “Orestes” de Ésquilo: não nos parece hoje o mais adequado a uma experiencia de teatro popular ao ar livre, em pleno verão num jardim público de Lisboa – e isto, sem embargo da exigência de qualidade que a iniciativa desde início revela. E este foi o critério dominante do repertório.

Glória Bastos e Ana Isabel B. Teixeira de Vasconcelos recordam este repertório, sobretudo clássico: o “Orestes”, uma adaptação camoniana denominada “Bodas de Lia” da autoria de um hoje esquecido Pedroso Rodrigues, “Sulamite, drama bíblico do Cântico dos Cânticos sobre o rei Salomão (e) a Écloga III de Vergílio, Palémon”. E reproduzem a reação profundamente negativa do público do Jardim da Estrela, de certo pouco habituado a um repertório clássico com esta exigência: segundo a revista Vida Artística (Julho 1911) “partiram-se vedações, invadiram-se lugares alheios, interromperam-se os artistas, soltaram-se graçolas irritantes, fizeram-se coisas enfim vergonhosas para quem as praticou e presenciou”… (in “O Teatro em Lisboa no tempo da Primeira Republica” ed. MNT 2004).

Muito embora: a experiencia, relaciona-se como já disse, com o Teatro Livre e com o Teatro Moderno. Trata-se com efeito de um movimento de modernização que prosseguirá designadamente nos diversos “Teatros Experimentais” que aqui temos referido – mas não só: a modernização do teatro-espetáculo é um facto que merece evocações, pois dela veio muito da modernização da cultura e da sociedade portuguesa.

“Caleidoscópio Estético”, chamou-lhe José Oliveira Barata (in “História do Teatro Português” ed. Universidades Aberta 1991). E na verdade, ao longo do século e tal como noutro lado escrevi, “assinala-se a transformação de grupos e companhias independentes e experimentais em projetos estáveis, sólidos e consistentes de profissionalismo de exigência cultural” (in “História do Teatro Português” - Verbo ed. 2001)


DUARTE IVO CRUZ