VIAJAR E VER
2. COPENHAGA
Urbe marítima, funcional, ecológica, de águas límpidas e ruas limpas, de percursos pedonais e aquáticos, convidativos à contemplação, ao lazer e desporto. Não monumental, nem massificada, simples, mediana e modesta no seu perfil. Trânsito não caótico, sem atropelos ou confusões, incluindo milhares de bicicletas não poluentes rolando fluentemente em morfologia plana. Não há o culto da ostentação, mas de um pretenso igualitarismo entre os humanos e a natureza, com incentivos às energias renováveis e a tudo o que seja amigo do ambiente. O que é reforçado por quilómetros de passeios pedonais ao longo dos canais de águas serenas e transparentes, por entre esculturas, meros passeantes, corredores de fundo e cultores do exercício físico, num enaltecimento da mente sã em corpo são. Sem deslumbramentos, grandezas ou monumentalidades, não rivalizando com urbes modelares como Nova Iorque, Rio de Janeiro, Paris, Londres, Roma, nem com Lisboa, Barcelona, Budapeste, Viena ou Praga, num patamar superior a Oslo, Dublin e Helsínquia, e em paralelo com Estocolmo. Diferencia-se na gastronomia criativa de topo a nível internacional, num número significativo de restaurantes premiados com estrelas da Michellin e da Restaurant, em que reservas por telefone ou internet obrigam à posse confirmada de cartão de crédito compatível, para pagamento proporcional aos lugares reservados, em caso de ausência. Restauração que atrai todo o ano comensais de elite e turistas de alto poder de compra. Oxalá que uma parte da nossa gastronomia evolua também para um patamar de alto perfil. Potencialidades não faltam.
Eis-me na capital da Dinamarca, um país que nos pode servir de referência pela positiva, pelo que dele podemos aproveitar. Pequeno, marítimo, pouco populoso, organizado, funcional, pacífico, ecológico, de patamar superior em nível de vida, educado, letrado, criador e engenhoso, eis o que podemos tentar captar, com as necessárias adaptações ao nosso contexto e realidade. De uma única fronteira terrestre, com a Alemanha, por paralelismo com a nossa, também única, com a Espanha. De caraterísticas essencialmente marítimas, como Portugal, por contraste com a continentalidade alemã e espanhola. Sabendo o que deve ao mar em riqueza e soberania, a pequena Dinamarca só subscreveu o Tratado de Maastricht quando fez nele inserir a proibição a estrangeiros de terem propriedades no seu litoral, assim reforçando a sua individualidade, desde logo face ao poderoso vizinho alemão. Sintomática, a propósito do porquê desta exigência, a resposta de um seu funcionário na União Europeia: “A rica Dinamarca não precisa da salsicha alemã como a Espanha, Portugal e a Grécia”.
Portugal tem uma mentalidade imperial, e sempre viveu, para a sustentar, de dependências e fatores exógenos, mas há que saber até onde podemos ir. Há em nós um não aceitar a pequenez territorial que nos limita. Há em nós uma tendência desproporcionada em ter como padrão potências ou países de maior dimensão e poder, mais populosos e mais prósperos, como a França ou Reino Unido, cidades como Paris ou Londres, com Lisboa. Ter como referência países como a Dinamarca, Holanda ou Áustria, entre outros, é desejável, pela sua escala, demografia e bem-estar. A Dinamarca pode servir-nos de exemplo mimético para o que nos beneficie, pois exporta mais do que importa, é organizada e qualificada para, por si, se bastar, sem precisão de se confrontar com países maiores, que apesar de o serem territorialmente e em população são, na maioria, inferiores em bem-estar e desenvolvimento.
Não sendo um país solar, foram solares os dias que eu (e família) passei em Copenhaga, três deles, em quatro, primorosamente primaveris, de céu límpido, temperados e sem excesso de calor. O ideal para a época, com milhares de pessoas dispersas pela cidade, em jardins, parques, esplanadas, barcos, à borda de água, canais, com especial incidência no canal Nyhavn, ladeado de casas coloridas e iates atracados, com o início e fim de permanentes passeios aquáticos. Além de outras atrações, como Marmorkirken (Igreja do Mármore), Radmespladsen (Praça do Município), Palácio e Guarda Real, Gefio Springvandet (fonte monumental), Galeria Nacional Dinamarquesa, Parque Tivoli, Casa da Ópera, predomina sempre o elemento marítimo, o culto da água. Como o atesta a singela escultura da Pequena Sereia, marco simbólico de Copenhaga, sentada sobre uma rocha observando nostálgica e pensativa os navios e transeuntes que é, na sua simplicidade e não monumentalidade, um logotipo alegórico da urbe e do país. Não deslumbra, não maravilha, nem é imperdível, mas é chamativa e diferencia-se o suficiente como ícone internacional dinamarquês.
Associada à Dinamarca e vizinhos escandinavos (Noruega, Suécia e Finlândia), há uma realidade mitificada e exaltada, de países ricos, de pessoas altas, loiras, emancipadas e liberais, dignas de imitação o que, como em tudo na vida, nem sempre é real. O alto nível de vida, sem desigualdades chocantes, para isso contribuem. Mas há uma beleza mais solar, encantatória e monumental nos países europeus sulistas. Também o contributo civilizacional do sul da Europa em redor do Mediterrâneo, prolongando-o pelo Atlântico e sua universalização, é mais significativo ao longo dos tempos, desde a Grécia Antiga, Império Romano, Descobrimentos de Portugal e Espanha e Renascimento Italiano.
Este bem-estar material e social não tem, necessariamente, correspondentes benefícios imateriais, sendo comuns, a todo o ser humano, as mesmas angústias, absurdos e interrogações existenciais. Seres emancipados, cronometrados em termos de trabalho e obrigações conjugais, repartição e distribuição de direitos e deveres, igualdade de género, liberdade liberticida e libertária em alegria e sexualidade, liberdade e responsabilidade, são associações mentais que os europeus do sul associam a estes povos. Tanto desenvolvimento não acarreta, forçosamente, uma saudável alegria de viver. Como o exemplifica a cinematografia do polémico realizador dinamarquês Lars Von Trier, ou o filme A Caça, de Thomas Vinterberg. Culpa e castigo, pecado e punição, luto, desespero, depressão, angústia, ansiedade, medos, obsessões, vazio existencial, são temas universais dominantes. É insuficiente o Ter para ser feliz. Também é necessário o Ser. Dinamarca que também associo ao descobridor e explorador Vitus Bering, ao escritor e contista Hans Christian Andersen, ao filósofo Kierkegaard, a Niels Henrik Bobr (prémio Nobel da Física), ao arquiteto Jorn Utzon (da ópera de Sidney), cineastas como Carl Dreyer e Nikolaj Arcel. Não silenciando a mundializada companhia de brinquedos Lego e a estrela internacional do design Arne Jacobsen, sem omitir Kay Bojesen e Hans Bolling. O bom gosto, alto perfil e funcionalidade, aliados a uma estética atraente, são caraterísticas reconhecidas ao design, fonte importante de rendimento para o país, o que constatei em Copenhaga.
Referências a Portugal, além da bandeira na nossa embaixada, vi-as numa lista de vinhos num restaurante, onde a novidade era a sua proveniência algarvia. Refira-se, pela negativa, a omissão do nosso idioma dos passeios turísticos de autocarro e de barco, marcando presença o inglês, alemão, francês, castelhano, italiano, polaco, sueco, russo, japonês e chinês, apesar de mais falada e universalizada que a maioria das línguas disponíveis. A ausência de estratégia, portuguesa e lusófona, é gritante…A nível linguístico deveríamos ser um exemplo, dada a universalidade do português, o idioma mais falado do hemisfério sul, o terceiro mais falado do ocidente e o quinto ou sexto mundialmente, por confronto com a estrita localização do dinamarquês, não disseminado intercontinentalmente, não obstante os seus genes vikings.
Mas não há bela sem senão, mesmo na imagem de marca da Dinamarca…
Já deitado, leve, levemente, sons musicais sucessivos infiltram-se, via almofada, nos meus ouvidos, impedindo que adormeça. Levanto-me na direção do som e vejo uma discoteca dançante sob dança colorida de holofotes e luzes frenéticas, da outra margem do canal. Dirijo-me à receção. Era madrugada de sábado. Exponho a situação. Estranham. O que me obriga a encaminhá-los para a visão e audição da poluição sonora, em mais sonoro flagrante delito, na esplanada exterior. Entre desculpas de que o hotel não prevê nem controla tais eventos, que o espaço só é usado pontualmente, denunciei e reclamei da situação, por maioria de razão e menos expectável num país que se tem como muito civilizado e amante exemplar do meio ambiente. Regressado ao quarto, com tampões doados para os ouvidos, a música diminuiu gradualmente. Antes pedi para falar com alguém da gerência, de manhã, reclamando uma compensação. O que foi feito, com renovadas desculpas e uma atenção nas despesas, o que tive de relembrar, sob pena de esquecimento, aquando do pagamento final. Apercebi-me, por outro interlocutor, que a discoteca tinha sido reservada por congressistas do hotel, por sugestão deste, para uma festa de despedida. Manifestei o meu espanto. Contra-sensos na capital do pequeno e rico reino da Dinamarca.
Impressões de viagem a Copenhaga, Dinamarca, em Abril de 2014
Texto original revisto em 13 de Julho de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício