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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Ana Hatherly e a palavra ilegível.

 

‘A palavra escrita (…) venda e desvenda o sentido do gesto.’ Ana Hatherly em ‘A Palavra-Escrita’

 

A obra de Ana Hatherly (1929-2015) enfrenta a impossibilidade e a incomunicabilidade. Apesar de em 1959, ter publicado o primeiro poema concreto em Portugal (a poesia concreta desenvolve a tensão das palavras no espaço, criando somente uma estrutura visual para poemas) Ana Hatherly depressa mostrou uma necessidade em criar uma poesia mais subjetiva, liberta, intuitiva e ambígua. As múltiplas dimensões da sua obra em prosa, poesia, desenho, pintura, performance, cinema desejam sobretudo dar profundidade à palavra escrita.

Hatherly, na sua poesia visual, aproxima o desenho da escrita, aproxima a sensibilidade da inteligibilidade. O sensível (associado ao gesto) identifica-se com uma experiência mais corpórea, associando-se à intuição. O inteligível (associado à palavra) liga-se ao raciocínio e não depende de uma relação direta com o mundo. O sensível é singular, único, pessoal e intransmissível. O inteligível aspira à universalidade. A escrita ilegível de Hatherly introduz outra dimensão à palavra. Hatherly mostra a escrita e não o escrito. A escrita torna-se ilegível porque só assim poder ser observada gestualmente e só assim se pode reinventar a maneira como se lê. Mas a mão escreve uma escrita incontrolada. A linha vagueia na página branca, e ora é escrita, ora é desenho. E a obra de Hatherly é híbrida, simultaneamente racional e sensorial – possibilitando o alargamento da grandeza comunicativa, não estando dependente de um só significado.

Os desenhos escritos são automáticos e intensificam a existência da dobra na linha. Deleuze escreveu em ‘The Fold’ (2010) que um dos emblemas do barroco é a dobra ou prega – não nos esqueçamos que a investigação académica de Hatherly em muito contribuiu para uma revisão da leitura da poesia barroca em Portugal. Deleuze declara que a dobra é uma estrutura que existe para exprimir a intensidade de uma força espiritual que se exerce sobre o corpo. E aparece como uma figura de passagem entre a matéria e a alma. Deleuze afirma ainda que o barroco produz dobras infinitamente. Ora, também os desenhos ilegíveis de Ana Hatherly se vão desdobrando lentamente até ao infinito. As dobras desenhadas assemelham-se a letras, porém manifestam-se sim através das pregas que a linha vai formando e que ao mesmo tempo são matéria e alma. As dobras provocam aqui oscilações e vibrações através da fluidez e da elasticidade da linha desenhada e que transporta o espírito que a motivou. O trabalho é vigoroso e repetitivo – existe a vontade pela compleição do todo e pelo preenchimento de todos os vazios. A dobra luta contra a dureza da linha e introduz as forças primitivas e espontâneas da matéria animada e viva.

Já a performance ‘Rotura’ (1977) de Ana Hatherly, apresentada na Galeria Quadrum trás à memória Lucio Fontana. Hatherly rasgava folhas de papel de cenário dispostas num labirinto feito por 13 painéis.

 

‘The discovery of the Cosmos is that of a new dimension, it is the Infinite: thus I pierced this canvas, which is the basis of all the arts and I have created an infinite dimension.’, Lucio Fontana

 

Lucio Fontana (1899-1968) começou a perfurar as telas de maneira a criar um novo conceito espacial – o universo do plano da pintura foi assim excedido. Os cortes tornavam-se irreparáveis e representavam um espaço filosófico. A tela é cortada para introduzir porosidade, interioridade e penetrabilidade. E o gesto cortante de Ana Hatherly, em ‘Rotura’, é também espacial pela profundidade que introduz. Também as palavras ilegíveis da sua poesia mostram o outro lado, a outra verdade da palavra, o do gesto que a faz. E tal como Fontana, Hatherly manifesta a ambivalência da obra de arte – não é escrita, não é desenho, não é escultura, não é instalação, não é ambiente ou não é tecnologia. Novas dimensões estão assim associadas a este gesto cortante – o nada, o infinito, o alargamento do espírito, a liberdade do corpo, o medo de criar, a ansiedade pelo incerto.

 

‘O poeta é um pintor do mundo invisível.’, Ana Hatherly

 

Sendo assim, na poesia visual de Ana Hatherly está muito presente a dicotomia entre o ser e o devir, entre o corpo e a alma, entre o sensível e o inteligível – e por isso, verifica-se que não é só o inteligível que possui a primazia, porque a verdade também se acede por meio do gesto que cria uma linguagem incontrolada, inacessível e estranha.

Ana Ruepp