CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Acontece-me cuidar que morri e ainda me não fui embora. Não por qualquer obsessiva mania da morte, tampouco por medo dela, quiçá nem de morte física falo, dessa que São Francisco de Assis assim cantava: Laudato si´, mi´ Signore per sora nostra morte corporale / da quale nullu homo vivente pò skappare... Antes me cuido de um estranho sentimento de ausência presente, sem saber se é a minha circunstância que me desconhece ou eu quem se circunstancia noutro círculo. Surpreendo-me a olhar à minha volta, espectador desinteressado de propostas alheias que já não entendo. Como há tempos te escrevi, aflige-me uma sociedade desinspirada, em que se vai perdendo a memória de nós - essa que nos constitui - e também o desejo da utopia, a gana de chegar ao lugar novo de nenhum sítio, aonde talvez esteja o melhor em que nos superamos. As receitas que por aí se debatem para as crises várias que nos cercam padecem de amnésia histórica, com conformismos pseudo-académicos ou estridências vago-reivindicativas como formas politicamente correctas e disfarçadas do receio. E assim me toma um imenso cansaço, que todavia não será desespero, apenas desinteresse ou essoutro pecado que é o alheamento. Mas, mesmo se assim não fosse, alguém me ouviria ou leria? Duvido, sei bem que sou estranho aos modos deste tempo, sobretudo por pensar que nada se faz com truques, ainda que de comercialização política, e que as técnicas são apenas instrumentos, não são inspirações... Será possível esquecermo-nos de que, ao longo da história, tem sido sobretudo o desrespeito da dignidade humana - o desconhecimento do homem como medida de todas as coisas, - o grande fautor de afrontamentos, guerras ou revoluções, e causa desse veneno que se chama ressentimento e percorre gerações? Entristece-me, Princesa, quase me tira coragem, a insistência na cegueira do olhar de homens para homens... Cada vez mais as imposições, como as reivindicações, ignoram o ser-se humano para se concentrarem em números. O desamparo e humilhação de milhões de pessoas - a que diariamente assistimos - logo são tratados em função de cifrões. Já não nos tratamos como feitos à imagem e semelhança de Deus, que está e fica connosco quando nos reunimos, mas sim como peças num tabuleiro de mercados. Somos egoístas, não celebramos a alegria de ser em relação, ambicionamos o usufruto de objectos. Desumanizamo-nos. Diz bem o papa Francisco na Laudato si´ (parágrafo 204): Quando as pessoas se tornam autorreferenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objectos para comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste horizonte, não existe sequer um verdadeiro bem comum. E não resisto a transcrever-te ainda o parágrafo 205, uma exclamação de esperança, que eu tanto gostaria que fosse minha também: Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São capazes de olhar para si mesmos com honestidade, exteriorizar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem por completo a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir, que Deus continua a estimular no mais fundo dos nossos corações. Peço a cada pessoa deste mundo que não esqueça esta sua dignidade, que ninguém tem o direito de lhe tirar. Escandaliza-me o tom de omnipotência de que governantes de potências económicas e financeiras se servem para dizer aos outros que a solução da problemática questão das dívidas públicas (ditas soberanas) estará apenas no respeito devido às regras que eles próprios ditam - esquecendo-se de que não se trata aí de uma mera charada contabilística, mas do aperto e humilhação de pessoas e vidas humanas. Confrange-me o servilismo daqueles que falam, em nome de outras nações mais pequenas, na incontornável necessidade de acatar aquelas orientações - ignorando até que ponto elas podem, não só traumatizar várias gerações com pobreza e desemprego, como não constituírem saída do próprio aperto financeiro. Ainda hoje lia o título, em letras grossas, de um artigo de jornal: Os mercados estão impacientes por virar a página grega! Mas deverão ser os tais mercados - a cujo funcionamento superintendem interesses financeiros muitas vezes encobertos e nada democráticos, como se vê pelas muitas desigualdades e injustiças advenientes e pelos inúmeros "escândalos" e "surpresas", que, aliás, mais não são do que prova evidente da ganância reinante e do carácter errático dos seus "supervisores" - poderão os tais mercados ser isentos ou simplesmente insusceptíveis de reformas que os humanizem e dignifiquem todos nós? A tal página grega até pode ser uma oportunidade para o mea culpa de muitos - incluindo aqueles que, pelo incitamento ao consumo, pelas facilidades de crédito, pela mentira publicitária e pela corrupção, foram fautores de dívidas alheias! - de muitos que se acham com direito a passar ao lado do sacrifício exigido a tantos cuja culpa maior terá sido falta de cautela por se terem deixado acicatar pela emulação dos abastados, ignorarem os riscos não alertados, e de boa fé acreditarem na recompensa prometida pelas propostas que lhes eram feitas! O cancro moral da nossa cultura - essa coisa triste que é a substituição do valor humano pelo lucro - não vai provocando apenas males de dívida pública... Em muitas das nossas pátrias, que vamos alienando, é bem maior, até em percentagem dos respectivos PIB, a dívida de famílias e empresas do que a estatal. E em vez de reformas estruturais do sistema económico-financeiro e de conversão ética à fraternidade garante do respeito do interesse geral, o que estes ocupantes dos lugares que deviam ser de governo do bem comum, nos propõem, com a contundência da sua ignorância, e a vaidade de se julgarem bons alunos, é manter um sistema obsoleto enquanto os mais fracos o puderem ir pagando. Eu não sei, nem ninguém sabe, se há e qual é, na situação presente e teimando-se em não rever profundamente o sistema vigente, solução eficaz e justa para o controlo de dívidas que se vão repetindo e crescendo. Mas sei que pode e deve haver uma visão mais dignificante das pessoas e das sociedades, uma relação aos outros, não como objectos, mas enquanto seres humanos nossos iguais. Condição e princípio sine qua non das indispensáveis reformas jurídico-políticas das relações internacionais e dos nossos sistemas económico-financeiros e sociais, será a nossa capacidade de consciencializar uma ética da pessoa e sua dignidade. E gostaria de ter mais fé nessa possibilidade. Hoje, apenas medito nestas palavras do profeta Ezequiel, pensando eu no papa Francisco: É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado que te envio, para lhes dizeres: "Eis o que diz o Senhor." Podem escutar-te ou não - porque são uma casa de rebeldes - mas saberão que há um profeta no meio deles.
Esteja presente, no coração de todos, a dignidade que nos é própria. Sempre pensei e disse que também é profética a voz do povo, Dou-te a mão.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira