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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Cioran

Minha Princesa de mim:

 

Tenho passado estes dias, mais do que acamado, recolhido: saídas raras e breves, silêncio aceite, e solidão. Sempre pensei que maleitas e pecados não são notícia nem segredo de confissão, são simplesmente parte própria da nossa condição. A ela iremos, mais adiante. Por enquanto, quero tão só dizer-te quanto me comoveu a tua mensagem amiga: não tens com que preocupar-te, cá vou andando e pensando a sentir, ou sentindo o que penso... Preciso muito de descansar, valem-me intervalos entre contrariedades e preocupações. Refugio-me então na reconstrução de um mundo todo interior, que é feito de coisas sempre novas, e refeito até que se me tornem familiares. Ouvindo música, voltei ao Shostakovich, à 14ª... Já te falei sobre ela, em carta recente, mas morde-me hoje, mais ainda, aquele aperto obsessivo que a premonição da morte traz à vida, para lhe extrair o sentido. Repito-te que o 9º andamento/poema, O Delvig, Delvig! é um cântico de esperança e revolta contra o estalinismo... Mas, relendo o penúltimo, Der Tod des Dichters, do Rilke, compreendo melhor o comentário de David Fanning na edição, pela EMI, da gravação daquela sinfonia interpretada por Mariss Jansons e a Symphonieorchester und Chor des Bayerische Rundfunks (conjunto fundado por Eugen Jochum, de que te falarei adiante) sobre a escolha shostakoviana dos poemas para ela : O protesto contra a morte revelado por essa escolha não era apenas pessoal. Erguia-se contra o que lhe pareciam ser desonestos conceitos religiosos de consolação, mas também contra o tabu que a cultura soviética sempre associava a temas "negativos"... Na carta em que te citava os últimos versos, omiti estes: Morrera o Poeta, e esse pálido rosto rejeitava, / na própria palidez, o que não sei. / Mas ele tudo soubera do mundo, / até que esse saber expirasse, / na indiferença do dia... / Poderão eles perceber a lonjura do caminho? /  Dantes, o mundo e ele eram unidade: / lagos, vales covos e lezírias / compunham a essência do seu rosto... Esta tradução não será muito fiel, ou talvez, se assim a puderes aceitar, é mais fiel ao meu sentimento desse 10º andamento da 14ª, do que ao texto de Rilke. O drama de Shostakovich, não sei porquê, evoca-me o desespero de Cioran: Se houvesse uma saída, eu tê-la-ia encontrado... Cioran, filho de um pope ortodoxo, e que, autoexilado em Paris, percorria insone a noite da cidade, quiçá saudoso de um Deus desconhecido. Escreveu certo dia, em carta a François Mauriac: "A doce mediocridade dos Evangelhos" - teve você razão em repreender-me por esse propósito. Mas que outros propósitos pode ter um filho de pope? Desde que comecei a definir-me, fi-lo por reacção contra as verdades do meu pai, contra o cristianismo. A essa razão exterior, junta-se outra, íntima: a minha inaptidão para compreender Cristo, até mesmo para imaginá-lo. Deus, pelo contrário, nunca deixou de me assombrar e torturar. Os sofrimento que me infligiu são a honra dos meus dias, um desastre inesperado, um inferno que me resgata a meus olhos. Mas, diferentemente, Shostakovich, na sua circunstância (estalinismo perseguidor e igreja de que  desconfia) não é, afinal, um solitário, recusa ser misfit, e é por um lugar onde caiba que procura um sentido para tudo, isto é, adaptar-se. Só que o seu espaço de adaptação se abre, interiormente, pela revolta e indignação. Assim ouso citar Cioran - que de si mesmo dizia "Nunca criarei raízes neste mundo" - para o contrapor ao compositor russo: Viver é poder indignar-se. Sábio é o homem que já não se indigna. Por isso não está acima, mas à margem da vida... Vê bem, Princesa: nem o desespero ou a desistência de encontrar a porta e o caminho, nem a indignada revolta contra a implacável fatalidade que a todos nós destruirá o rosto visível, descompondo-o das paisagens (lagos, vales e lezírias) em que se acolhia e conhecia, nos libertarão desta humana condição, cuja consciência é concomitante à incessante interrogação do ser. Por isso, como várias vezes te repeti, gosto tanto daquele dito de São Paulo aos hebreus: a fé é a substância das coisas que devemos esperar... ou, se preferires a tradução directa do grego pelo cónego José Falcão, em 1965: a fé é o sustentáculo das coisas que se esperam, a prova das realidades que se não vêem. Não é uma certeza adquirida, demonstrável; antes é uma graça que sustenta, na interrogação, a esperança. Não se esconde, nem nos faz esconder, como avestruzes enfiando a cabeça na areia para nada mais verem. Tampouco deverá ser motivo de oposição ao mundo e aos outros, como se o crente fosse Narciso mirando-se no espelho da fé e perguntando: "Espelho meu, espelho meu, quem tem fé mais bonita do que eu?" A prova das realidades que não vemos - porque é evidente que as não vemos ainda - é, no nosso tempo, uma provação. E, porque a sofremos, somos iguais aos que se confessam agnósticos ou ateus, na humana condição. Viver a fé exige grande humildade, essa que é a essência da gratidão. Bruckner foi um homem de exaltada fé, por todos reconhecível e respeitada, incólume ainda aos seus sobressaltos psíquicos. Além do seu Te Deum que, como já te contei, Gustav Mahler, judeu e laico, dirigiu e tanto sentiu e admirou, e das três missas, pouca música sacra compôs... A menos que consideremos - como muitos pretendem - que as suas sinfonias são de inspiração religiosa. Nesta morna quietação dos campos, que tardia e bem vinda chuva vai mansamente consolando, escutei - depois da 14ª e, nesta, em voz de soprano, o lamento que Shostakovich compôs para A morte do Poeta - o salmo 150, na música de Bruckner: que tudo o que respira louve o Senhor! Nesta interpretação, Eugen Jochum dirige a Berliner Philarmoniker e o coro da ópera de Berlim, sendo solista a soprano Maria Stader. Jochum era - tal como Bruckner, que ele tanto admirava e cuja música tão veementemente dirigiu e propagou - profundamente católico e marcado por uma aprendizagem precoce da música litúrgica e sacra, sobretudo gregoriano e Palestrina. Ambos cedo aprenderam a tocar órgão, tal como ambos estudaram em casas de religião: o mais velho (Bruckner, austríaco nascido em 1824) na abadia agostinha de S. Floriano, o mais novo (Jochum, bávaro nascido em 1902) no liceu beneditino de Santo Estêvão, em Augsburgo. Este parentesco musical e espiritual é sensível, quanto a mim, sobretudo na gravação, dirigida por Jochum, com o coro da Rádio Bávara, dos motetos de Bruckner, joias indiscutíveis da música coral do sec. XIX. E penso como, a tantos crentes e incréus, igualmente - evangélica chuva que Deus manda sobre justos e injustos (e estes nem sempre estarão de um mesmo e só lado da fé) - de Shostakovich a Bruckner, de Rilke a Cioran, de ti a mim, e de muitos a tantos outros, pensamentos e actos nos interrogam sempre e consolam. Temos a mesma condição. Rezar é crer numa esperança secreta e íntima que, como o amor de Deus, está bem além do compreensível. Único tesouro do coração de todos. Estendo-te uma mão que não prende nem pede, não ensina, afirma ou nega. Partilha inquietação e esperança.

Camilo Maria

    

Camilo Martins de Oliveira