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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Michel de Certeau

 

Minha Princesa de mim:


En mai dernier on a pris la parole, comme on a pris la Bastille en 1789.
Esta frase de Michel de Certeau, publicada num artigo seu para a Études de Junho/Julho de 1968, foi posteriormente citada por Faure na Assembleia Nacional e pelo presidente Georges Pompidou. O seu autor era um reputado universitário jesuíta, fundador, com Lacan, da escola psicanalítica freudiana francesa. Michel-Jean-Emmanuel de la Barge de Certeau nasceu, em família da nobreza da Saboia francesa, a 17 de Maio de 1925. Cedo sentiu especial atracção pela Cartuxa, e ainda frequentou várias instituições religiosas, antes de se fazer jesuíta, já em 1950, pelo que só em 1963 professou usque ad mortem. Entretanto, iniciara uma notável carreira universitária e cultivara a sua vocação mística, vivendo espiritualmente muito próximo de Santo Agostinho, Silesius e Santa Teresa d´Ávila, tornando-se um especialista de história da mística e, mais tarde, doutorando-se, na Sorbonne, com uma tese sobre outro saboiano, Pierre Favre, jesuíta companheiro de Santo Inácio. (O seu percurso, pela qualidade da formação intelectual, pelo apelo da mística - que, todavia, não o afasta, antes pelo contrário, de uma atenção amiga às pessoas e questões do mundo - lembra-me o frei Serge de Beauregard, dominicano, de quem várias vezes te falei...) Quando o Padre de Certeau morreu, de cancro no pâncreas, aos 61 anos (curiosamente com a mesma idade e do mesmo mal que meu Pai, 25 anos antes dele), uma aluna sua enviou a uma professora americana, Luce Giard, da Universidade da Califórnia San Diego (ele ensinou em várias universidades francesas e americanas) um ramo de flores brancas, com um bilhete: Disse Santo Ireneu de Lyon que a glória de Deus é o Homem. Michel é prova disso. E quando, quinze anos depois, em 2002, se publicaram várias obras em sua homenagem, o Libération chamou-lhe Homem de Deus, e a freudiana Elisabeth Roudinesco, no Monde, realçou que ele desdenhava honrarias, fastos e medalhas, preferindo sempre confrontar-se, em todos os continentes, com a incandescência frágil das rebeliões extremas ou quotidianas... Mas, além dos EUA, o padre de Certeau viajou muito - e ensinou - na América Latina, em profundo contacto com os seus irmãos jesuítas, ele que, tal como um certo Bergoglio, era admirador e discípulo desse outro jesuíta - teólogo da Igreja e do Concílio Vaticano II, mais tarde feito cardeal, como o seu colega e amigo dominicano Yves Congar  :  Henry de Lubac. Ambos foram excelentes medievalistas e teólogos e, como diz André Vauchez, lançaram os alicerces de uma eclesiologia, simultaneamente nova e muito tradicional, que equilibrava o primado romano pela afirmação da colegialidade episcopal e dava mais espaço aos leigos, reconhecidos como membros activos, e a parte inteira, do povo cristão, actualizando a mensagem evangélica, por moção do Espírito Santo. Quando hoje tanto insiste na desclericalização da Igreja, o papa Francisco, afinal, repete estas palavras de frei Yves Congar, escritas em 1975: Um traço característico da renovação da Igreja é o papel activo que nela assumem os leigos, conscientes da dignidade e das responsabilidades que lhes confere a consagração baptismal, em comunhão com os bispos, os padres e os religiosos, mais do que em subordinação a eles. Sabem que as suas tarefas temporais podem ganhar um valor eterno no desígnio de Deus que confia ao homem o uso e acabamento da criação. Trabalham para transformar a sociedade humana, para a tornarem mais justa e mais fraterna. Eis uma reviravolta dada ao conceito consagrado na Supremi Pastoris (Vaticano I, 1870) que, retomado pelo direito canónico, definia os leigos como cristãos sem qualificação para participarem no poder, seja de jurisdição, seja sobretudo de ordem.  Quiçá por ter recentemente lido ou ouvido algumas confusões de insistentes "defensores da Igreja", trago à tua criteriosa atenção esta frase desse pensador jesuíta: Porque é também uma sociedade, ainda que de género especial, a Igreja é sempre tentada a contradizer o que afirma, a defender-se, a obedecer a essa lei que exclui ou suprime os estrangeiros, a identificar a verdade com o que ela própria diz, a contar os "bons" entre os seus membros visíveis, a fazer de Deus nada mais do que aquele que justifica e é "ídolo" de um grupo existente... Uma Igreja clericalista padece de acentuada propensão ao sectarismo, até pelo natural instinto de autopreservação de poderes instituídos, e atribuídos a uma classe, com o inerente receio de abertura ao movimento do mundo, isto é, da sua própria circunstância. Citando, além da frase, acima transcrita, de Michel de Certeau, uma de Santo Agostinho (não penses mal do teu irmão e esforça-te humildemente por seres aquilo que gostarias que ele fosse, e assim não pensarás que ele é o que tu não és),  o jesuíta Michel Madelin escreve: Os membros da Igreja devem viver no meio dos outros, sob o olhar de Deus. Destinada a "toda a criatura", a Palavra deve conferir aos cristãos força interior, o gosto da terra associado ao desejo de um Deus cada vez maior do que o que concebemos. Fundada por Deus, a Igreja é, no tempo, um devir entregue aos homens. Obra divina enquanto Corpo Místico de Cristo é, como essa designação aponta, uma realidade mística, eucarística, comunhão dos crentes e dos santos. Mas, também realidade histórica, é simultaneamente trabalho humano, sofrendo as contingências da nossa condição e vida, portanto sujeita a imperfeições, desvios, enganos e pecados, que não pode, nem deve, ignorar ou escamotear, muito menos caindo na tentação sectária de, para se desculpar ou defender, confundir-se absolutamente, enquanto organização humana, com o Corpo Místico.  Quando o faz, mergulha no mal, condena injustamente muitos estrangeiros e protege facínoras seus, como nos casos de pedofilia. Infelizmente, ainda verifico, Princesa, que muitos desses tais "defensores da Igreja" insistem, com mentalidade clubista, em preferirem justificar o injustificável ou culpabilizar terceiros, a humildemente reconhecerem os erros cometidos em nome de Deus e da própria Igreja. Andam por aí a dizer e escrever que inquisidores, sim, são os acusadores revoltados que apontam a clérigos várias patifarias, financeiras, sexuais e outras, "esquecendo-se esses torpes inimigos da Igreja de que a Santa Inquisição foi boa coisa, de acordo com a mentalidade do seu tempo, hoje mal entendida"! Com o mesmo descuido crítico, depois de repetidamente se terem pronunciado contra as leis de separação da Igreja e do Estado, agora, para não ficarem mal no retrato do politicamente correcto, vêm dizer que a laicidade é criação da Igreja, pois Cristo disse "Dai a César o que é de César"! Lá dizer, disse, só que numa sociedade e num contexto histórico que nada poderiam ter a ver com laicismo ou laicidade ( em pleno império romano, e em território judeu, antes pelo contrário!)... E nem se lembram de que a Igreja clericalista, durante séculos, lutou para que fosse seu o que é de César. Não esqueçamos, por exemplo, entre outros, os infindáveis conflitos, prenunciadores de outros advenientes, na cristandade ocidental, entre Papado e Império... Não devem os cristãos esquecer que a Igreja é o Reino de Deus anunciado, grão de mostarda que, semeado, dá uma árvore que estenderá os ramos para neles se abrigarem todas as aves do céu. Não exclui, acolhe. Não se paralisa, nem receia, antes cresce e vai ao encontro de todos, pois para tanto a quis Deus. Não tem de contestar a História, muito menos que dizer " foi sempre assim, e pronto!" Tem de humildemente procurar caminhos de unidade na vocação divina - que não distingue homem de mulher, escravo de gente livre, antes a igual dignidade todos chama... O Corpo Místico de Cristo é a Igreja na sua realidade invisível, vocação da humanidade inteira, e que, como tal, não pode reduzir-se ao visível edifício institucional e ritual. Este é apenas um sinal que, como todas as sinalizações, se vai desgastando e pedindo limpeza e reparações. Em boa hora o papa Francisco fomentou o sínodo em curso, para que o povo de Deus possa tomar a palavra, num tempo em que nações tradicionalmente católicas vão desertando a prática religiosa comunitária ou destoando do ensinamento canónico da Igreja em questões como a contracepção (mais de 90% das mulheres portuguesas a ela recorrem), o casamento e o divórcio, as uniões homossexuais (vg. o referendo irlandês), etc... Estejamos, Princesa, atentos ao mundo, e o Espírito de Deus nos ajude a perceber quais os sinais dos tempos. E, sobretudo, nos lembre de que o dies irae só ao Senhor pertence, no final dos tempos... Entretanto, cabe-nos testemunhar a fé, cuja substância são as coisas que devemos esperar. Dou-te a mão, na esperança da graça que nos calhe a todos.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CEUTA – 600 ANOS DEPOIS…

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Os portugueses fundearam em Ceuta a 21 de agosto de 1415 e no dia seguinte a cidade ostentava na torre de menagem as quinas e os castelos. Eis a data que marca a presença dos portugueses fora da Europa.

Ceuta foi o primeiro destino. D. João I, de Boa Memória, e seus filhos, a Ínclita Geração, os Altos Infantes (na feliz expressão camoniana), concretizam a tomada do porto dos dois mares, na entrada do Mediterrâneo. Discutem-se as razões. Há um argumento cavalheiresco e de cruzada, que significa estarmos na transição da Idade Média para um novo tempo, com reminiscências antigas ainda presentes. Não foi Aljubarrota o fim da nossa era medieval? Há certamente razões económicas para a conquista – o reino de Portugal estava depauperado, em gentes e riquezas, pela Peste e pela quebra na produção. Faltava pão e ouro. De facto, não houve uma só ordem de razões, houve uma soma de fatores – políticos, sociais, económicos, religiosos. E se Ceuta não trouxe os benefícios que dela se esperava, o certo é que representou uma posição importante, que serviu de base à empresa das Descobertas. Luís Filipe Thomaz fala-nos de três fatores para a expansão: a necessidade de uma reconversão social que assegurasse a sobrevivência de uma nobreza em crise, porque fragmentada e limitada pela burguesia em ascensão (reforçada em 1383-85) e por uma realeza com um poder crescente; a necessidade de abertura de rotas comerciais que permitisse a criação de riqueza e garantisse liquidez para sustentar a posse do património de bens imóveis; e uma política de afirmação de um Estado nacional forte que, recém-saído da crise dinástica e dirigido por um conjunto de governantes de horizontes abertos, procura evitar o cerco ou a absorção por um vizinho poderoso (Castela) e garantir a paz interna, aliviando tensões sociais e transferindo a conflitualidade para o exterior. Ceuta não acompanhará a Restauração portuguesa de 1640 e será integrada formalmente na coroa espanhola em 1668, mantendo, no entanto, a bandeira antiga que é idêntica à de Lisboa com as armas de Portugal ao centro. Apesar de D. Pedro ter dito que Ceuta era um «grande sorvedouro de gente e de dinheiro», o certo é que foi na estratégia da expansão portuguesa um importante eixo de ação.