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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

Niall Fergunson.JPG

Minha Princesa de mim:
 

Já tinha fechado e enviado a minha última carta, quando me caiu à frente uma frase de Heródoto: De todos os infortúnios que afligem a humanidade, o mais amargo é que temos de ter consciência de tudo e controlo de nada... Assim o terá dito, no século V antes de Cristo. Hoje, em pleno século XXI depois de Cristo, concordarei com esse não termos controlo de nada, mas pergunto-me, sinceramente, se teremos consciência de tudo. Como já te tenho dito, chego mesmo a impressionar-me com o facto de, em tempos de tantas e tão velozes notícias, muitos de nós serem alheios ou indiferentes aos incessantes flagelos e ameaças que afligem o mundo e que, afinal, até se vão aproximando de nós... Se é já lamentável a indiferença perante a desgraça de multidões de pessoas nossas iguais na condição humana, é assustadora a ignorância em que nos mantemos das causas, condições e efeitos possíveis de actos e factos malignos que por aí se vão propagando e, dum ou doutro modo, nos atingem. O historiador britânico Niall Ferguson, de quem já te falei, faz, no seu The Great Degeneration, esta curiosa comparação: No "spaghetti western" The Good, the Bad and the Ugly, há uma cena memorável que resume a economia mundial de hoje. Blondie (Clint Eastwood) e Tuco (Eli Wallach) encontraram finalmente o cemitério onde, sabem, está sepultado o ouro que buscam - uma imensa campa da Guerra Civil. Eastwood olha para a sua pistola, olha para Wallach e exclama a imortal frase: "Neste mundo há duas espécies de pessoas, meu amigo. Aqueles que têm pistolas carregadas ... e os que cavam!"  Assim também,na ordem económica pós-crise, há dois tipos de economias. As que têm vastas acumulações de activos, incluindo fundos soberanos (correntemente mais de 4 triliões de dólares) e reservas de divisas fortes (5,5 triliões só para mercados emergentes), são as que têm as pistolas carregadas. As economias com grandes dívidas públicas (que hoje somam quase 50 triliões em todo o mundo), pelo contrário, são as que têm de cavar…  E para ti transcrevo outro passo do Fergusson: Do ponto de vista de um historiador, os riscos reais no mundo não-ocidental hodierno são revolução e guerra. São precisamente estes os eventos que devemos esperar nas circunstâncias actuais. As revoluções são causadas pela combinação de picos dos preços alimentares, uma população jovem, uma classe média em ascensão, uma ideologia disruptora, um antigo regime corrupto e uma ordem internacional enfraquecida. Todas essas condições se encontram hoje no Médio Oriente, e é claro que a revolução islamista já está a avançar, ainda que sob o enganador rótulo ocidental de "Primavera Árabe". O que aí nos deve preocupar é a guerra que quase sempre se segue a uma revolução de tal grandeza. Eu, cá por mim, penso que ela já vai alastrando pelo Médio Oriente e norte de África, e nos manda um aviso muito sério: as multidões de desalojados e refugiados já não ficam só por essas regiões, mas - acrescidas de muitos africanos em busca do "sonho europeu" ou fugidos de outras perseguições - vão desembarcando nas nossas costas ou se afogam no que já se chamou Mare Nostrum. Uma vez mais, a nossa indiferença perante a desgraça alheia também nos obnubila a visão do nosso próprio futuro. Vai-se espalhando o terrorismo, não há país ou região do mundo onde não se cheire o terror, e muitos até já o sentiram actuar ao vivo. Tem ele modalidades várias, história tão antiga como a dos homens, é simultaneamente brutal e subtil, terrível no sofrimento visível que inflige, mais terrível ainda no silêncio insidioso em que cresce e se alimenta... Que sabemos dele? No caso do reputado Estado Islâmico, por exemplo, como explicar aquele jihadismo? Será que ele convém - e se apoia - ao interesse estratégico de certos países, alguns até "aliados do Ocidente", como o Qatar, a Arábia Saudita, a Turquia ou o Paquistão? Será que, nesse caso, se fomenta um "fundamentalismo" sunita, para perturbar o inimigo ou distrair terceiros, como, num passado ainda próximo, ingleses, por exemplo, foram soprando lutas étnicas e religiosas no Médio Oriente? Ou antes é fruto de ressentimento histórico, relativo sobretudo à pretensa superioridade da civilização ocidental que, propensa à hegemonia universal da cultura de raiz europeia e cristã, ou iluminada e racionalista, desperta confrontos e choques com outras? Ou mais proximamente, como outros alvitram, serão as suas causas de ordem económica e social, sobretudo quando a globalização expõe mais visivelmente as desigualdades e injustiças, desde as que vemos nas nossas cidades e países até à cena mundial? Haverá um pouco de tudo isto, mais uma certeza: a de que há males difíceis de corrigir, quiçá impossíveis de eliminar, pois nascem e crescem em culturas de egoísmo, desleixo e indiferença. Pouco adiantará, talvez até seja contraproducente, qualquer islamofobia, como de nada serviu nem serve o chamado antissemitismo (e não nos esqueçamos de que os árabes são semitas também), ou qualquer forma de antagonismo, sobretudo radical. Infelizmente, quando se semeou o mal ou nos conformámos com a sua sementeira, sempre fomos agentes ou aprendizes de feiticeiro... E há feitiços que podem assombrar gerações, por isso as antigas maldições eram lançadas sobre os próprios e as suas descendências. Presentemente - penso eu, Princesa - em concomitância com a legítima defesa militar, impõe-se a necessidade de políticas apelativas ao diálogo entre todos os que constituem a circunstância actual dos movimentos terroristas, de forma a cercar estes e extinguir os seus focos. Tal passa também pela acalmia de provocadores - que estão no meio de nós ou se dizem do nosso lado - e pelo reconhecimento amigo do outro na sua diferença. Isto é: ou estendemos a mão a quem também quer conversar, ou desistimos. O acordo nuclear agora assinado com o Irão é positivo sinal de que vale a pena ir conversando. Por outro lado, tampouco será errado observar atentamente o que se passa em circunstâncias diversas da nossa, com a inteligência necessária a não confundirmos com providencial benesse qualquer  wishful thinking apressado da nossa ganância, ou simplório desejo de resolver um aperto financeiro... Pensa, por exemplo, Princesa, nos namoros que a China, acenando com notas, por aí vai despertando : até se processam privatizações por transferência de empresas para o domínio do capitalismo do estado chinês. Assim, devemos juntar, à cultura dos vícios acima apontados, a da precipitação ou imediatismo, cujos factores podem ser, paradoxalmente, o preconceito (sobretudo ideológico) e a ganância, tantas vezes disfarçada de realismo ou pragmatismo político. O debate sobre uma situação nova, problemática, ab initio ou mesmo ex ante, pelo prisma de "princípios" anteriormente estabelecidos, tem prejudicado, não só a isenção necessária a qualquer análise objectiva e inteligente (inteligente, no sentido de procurar entender), como levado a afrontamentos que, em nome de suposta clarificação, desde logo trazem complicação e confusão... Tal como a corrida a metas de curto prazo, por ganância ou ingenuidade "tecnocrática" é precipitação num barranco de cegos. Se errare humanum est, também se reconhece o homem - como disse Saint-Exupéry - quando este se mede com o obstáculo. Ser humano é ser-se capaz de conversão, de recomeço, não só no plano religioso, na relação com Deus e o seu mistério, mas, na nossa casa comum, no plano civil, no diálogo com os outros. As grandes obras, empreendimentos, constroem-se, não se resolvem logo. Muitas vezes, Princesa de mim, recordo o que esse grande teólogo e perito conciliar, o dominicano Yves Congar, escreveu no seu Mon journal du concile : A obra realizada é fantástica. E todavia tudo está por fazer. Fala-se por aí muito no chamado acordo sobre a dívida grega. Despidos de preconceitos, admitamos que a enormidade e constância crescente da dívida grega - que, com as de outros parceiros europeus, deve merecer atenção muito séria, sem excluir sequer a possível ou inevitável revisão do modelo económico-financeiro vigente e da própria União Europeia - não é imputável ao Siriza - partido esquerdista, dizem e será, bem sei - mas a outros que compuseram governos anteriores (ou de fora da Grécia os apoiaram) e que, noutros países da periferia europeia, têm homólogos que dão pelo carinhoso nome de "arco da governação"... E também, não esqueçamos, ao tandem franco-alemão que, em Outubro de 2010, se opôs aos programas de assistência temporária a estados membros da UE, enquanto os países de Merkel e Sarkozy não pudessem impor, primeiro, perdas aos credores privados daqueles estados. E já em Maio do mesmo ano, ambos, mais a Holanda, tinham feito o necessário para atrasar uma indispensável reestruturação da dívida grega, para protegerem os seus (deles) bancos, detentores de obrigações helénicas. Estes rapazes gregos actuais - que, curiosamente, entre os que têm assumido a "pasta das finanças", contam reconhecidos economistas de escolas britânicas - apenas prometeram a um povo inquieto ou revoltado por anos de "austeridade" anterior, que lhe piorou a vida, que tentariam bater o pé e discutir outras soluções possíveis. Não o terão feito da melhor maneira, mas sublinhe-se que tampouco lhes foi concedido - a eles e a muitos outros europeus - o tempo e o modo exigíveis para a consideração de um problema que, tal como tem sido posto, e nas condições presentes, não só todos sabemos que é insustentável e insolúvel só por si - nem a Grécia, nem outros estados, poderão pagar a sua dívida pública, e ainda agora o FMI vem reclamar perdão parcial ou longo período de carência para a dívida grega - como é causa de muito sofrimento de populações inocentes. Na verdade - e como, notável excepção entre os "lideres" mundiais, tem repetidamente lembrado o papa Francisco - não estamos, fundamentalmente, perante  problemas contabilísticos, aliás gerados por inúmeros e diversos factores e erros, mas sim de situações dramáticas que devem interrogar o nosso sentido de justiça distributiva, dignidade e solidariedade humana... Ainda ontem, em almoço  de amigos, pedi a um "castigador" dos gregos que, no remanso do seu gabinete, considerasse uma questão aparentemente simples: no decurso dos processos de constituição de dívidas insustentáveis, quem terá lucrado mais: se os que propuseram, venderam e forneceram, ligando créditos às operações; ou, ainda, os financiadores que, com garantias de seguros e cobertura jurídica, institucional e política, foram cobrando juros; se os receptores de bens, ajudas e financiamentos vários, hoje devedores - muitas vezes por má gestão económica ou ilusão política, outras por se terem deixado corromper... Quem certamente, mesmo nos casos em que tenha tido benefícios, pouco lucrou e nunca foi decentemente consultada, foi a massa de gente a que hoje se quer exigir que pague a mentira, ganância e incompetência de políticos e financeiros. Não estamos perante um problema de contabilidade, nem de direita ou de esquerda, de austeridade ou despesismo. As contas têm de bater certas, a gestão financeira tem de ser feita em função do bem comum e do interesse geral. Portanto, as decisões pertinentes, os empreendimentos, e a sua indispensável fiscalização devem ser democráticas, quer no quadro nacional, quer a nível da União. Estamos perante uma questão ética e política. Vai longa esta carta, e também sabes que não gosto de te falar de questões políticas ou técnicas, tratei de muitas - nem sempre bem - em sede própria, talvez mais por dever do que por gosto. E será agora numa crónica da série "Olhar e Ver", que escrevo para o blogue do CNC, que voltarei a esta presente questão. Será a 25ª dessa série, sucedendo à anteriormente publicada e curiosamente intitulada "O Encoberto".  Alonguei-me hoje neste desabafo contigo, por me irritar tanta lengalenga sobre preguiçosos e aldrabões do sul contra virtuosos trabalhadores do norte, e outras tretas... E penso nesses casos de empresas do norte que investem no sul, onde pagam salários mais baixos por produtividades iguais ou superiores, e ao sul vêm vender os seus produtos por preços igualmente elevados, e passar as suas férias e reformas a custos bem inferiores. Não há "Europa" possível - muito menos zona euro - sem mais democracia e entendimento humano e menos desigualdade e mentira. Dou-te um beijo, Princesa.
 

Camilo Maria
   

Camilo Martins de Oliveira