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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Acerca do expressionismo em Portugal.

 

‘Ser como esta gente!

Ser ainda menos gente!

Ser mais toda-a-gente

Que toda esta gente!’

José Régio, ‘Novos Poemas de Deus e do Diabo.’

 

A maioria dos agrupamentos artísticos portugueses, do princípio do século XX, ainda se caracterizavam por um naturalismo que representava paisagens e situações da vida quotidiana – assumindo ainda uma atitude levemente realista ligada às técnicas da Escola de Barbizon. Em 1900, esta produção tornou-se insignificante face ao teor vanguardista da arte internacional. A partir dessa data, mais do que a qualidade apreciava-se a novidade, mais do que a emoção exigia-se a provocação, pedia-se acima de tudo uma nova verdade, um novo ideal. Aqui em Portugal, os movimentos de ruptura fixaram-se com alguma dificuldade.

Nasceu, assim dessa necessidade, o Modernismo nos Salões Humoristas. Só através da caricatura era permitido exercitar um traço liberto e sugerir novos ritmos do quotidiano. Nomes como Cristiano da Cruz, Amadeo de Souza-Cardoso, Guilherme Santa-Rita, José de Almada Negreiros e Eduardo Viana, realizaram uma obra mais próxima dos novos ideais vanguardistas antes da Grande Guerra.

Logo a seguir à guerra, a arte portuguesa virou-se para um certo conservadorismo reabsorvendo e continuando os trabalhos do início do século. Ora, os anos trinta trouxeram novas abordagens e novas atitudes. No resto da Europa, o expressionismo já tinha perdido força e só agora chegava a Portugal.

Mário Eloy (1900-1951), Dominguez Alvarez (1906-1942) e Hein Semke (1899-1996) captaram e representaram o real através de uma visão introspectiva e por vezes perturbadora. São os expressionistas mais importantes. Contudo não se pode deixar de referir que no contexto português, o expressionismo não teve grande aderência e expandiu-se em grande parte só à pintura e à escultura. Não acrescentou muito ao que já estava explorado, limitando-se a seguir o exemplo alemão.

O temperamento desequilibrado de Mário Eloy orientou a sua opção pelo expressionismo. Antes da longa estadia em Berlim, esteve em Paris – onde as obras do período neoclássico de Picasso, o marcaram definitivamente. Essa influência é marcante na valorização dos volumes das figuras que protagonizam as suas pinturas. A sua admiração pelo expressionismo de Kokoschka, leva-o a produzir pinturas dominadas pelo verde. Eloy procura, sobretudo a síntese da forma em cada pincelada, tentando sempre afirmar uma clara intenção. Os seus múltiplos auto-retratos são motivo de introspecção. Na sua obra são habituais os retratos e cenas de imaginação fantástica, talvez porque a realidade nunca conseguiu uma integração total no seu eu. O uso dos verdes, dos azuis e dos ocres permitem o estereótipo das personagens e dos espaços.

Também Domingues Alvarez estranha o mundo. O seu expressionismo traz marcas longínquas de El Greco – no alongamento dos rostos e dos corpos. O pintor é natural do Porto mas de ascendência galega. Deixou-se conquistar por uma expressão ingénua que o conduz à representação dos lugares como se de cenas infantis se tratassem: geometrias elementares e sintetismos de cor.

Nesta década de trinta, caberá a um alemão refugiado em Portugal, desde 1932, o papel de mostrar a escultura como veículo expressivo de convicções próprias suportada por características expressionistas. Compreender a obra de Hein Semke, ao longo de mais de cinquenta anos, é inseri-la nas experiências expressionistas alemãs do início do século XX - com especial destaque para Die Brücke e para a obra escultórica de Barlach. Semke não é só escultor, mas também pintor e ceramista. O seu expressionismo manifesta-se na ruptura social, no primitivismo formal e na arte ligada a temas religiosos. Ao chegar a Portugal sente ser este o local ideal para viver longe dos conflitos que afligiam a Europa. Semke era o primitivo dos anos trinta. Optando por cânones não naturalistas, desproporcionava e esquematizava as figuras. Centra-se assim, em valores humanistas, desprezados pela sociedade contemporânea. As suas esculturas transmitem solidão, dor, crueldade – representando a perplexidade perante um mundo de extremos, desde a placidez campesina e provinciana de Portugal, à violência da Grande Guerra, com a Europa a ferro e fogo.

Também Carlos Botelho (1899-1882) e Júlio (Saúl Dias, 1902-1983), cada um a seu modo, se deixaram seduzir pela onda expressiva – no primeiro caso em paisagens urbanas, procurando retratar ambientes e sentimentos, e no segundo numa ligação estranha e expressiva entre os sentimentos e a poesia. Botelho exprime a segurança do traço e Júlio dá-nos uma imagem de aparente ingenuidade (encontrando-se com Mily Possoz), que no entanto tem a força de uma mensagem, na qual escrita e traço se confundem. É, aliás, pouco referido o exemplo do irmão de Júlio – o poeta José Régio (1901-1969) – em cuja produção artística se nota também a influência expressionista, bem patente, por exemplo, nas ilustrações de ‘Novos Poemas de Deus e do Diabo’ .

Em Portugal, a placidez, pressentida por Semke, dificulta o desenvolvimento do veio expressionista – o que não significa que não encontremos muitos afloramentos de maior ou menor interesse: Bernardo Marques ilustra com mestria, entre impressões e expressões; Ofélia Marques segue a mesma linha; Sarah Affonso tem momentos de rara intensidade expressionista; o próprio Almada Negreiros, apresenta diversos apontamentos dessa mesma coerência; José Tagarro revela uma força especial que nos permite dizer que ficou aquém da obra de génio que sempre anunciou. Dir-se-ia que o Apocalipse (feliz em Viena, dramático em Berlim) e a ideia de Secessão tornam-se difíceis de entender – como o sentirão na pele os surrealistas, numa experiência tardia e plena de dúvidas – entre o clássico ‘cadavre exquis’ (de António Domingues, António Pedro, Fernando Azevedo, João Moniz Pereira e Vespeira), a hesitação de António Pedro, a pressa de Alexandre O´Neill, o rigor de José-Augusto França e a desconcertante omnipresença de Mário Cesariny.

 

Ana Ruepp