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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ATORES, ENCENADORES - XLIII

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A MODERNIDADE DE EMILIA DAS NEVES
NA RENOVAÇÃO DO TEATRO PORTUGUÊS

Nesta série de evocações, temos sempre presente que o conceito estético de “modernidade” em arte transcende a própria cronologia. “Modernos” são os que renovaram e mantem hoje qualidade. Isto, em termos gerais: mas é evidente que na arte de representar, antes do cinema pelo menos, o conceito não é diretamente analisável: sabemos que um texto clássico é atual pela qualidade e pela problemática - mas não podemos aplicar o conceito com rigor à arte de representar, como era efetuada no passado.

A não ser pelos testemunhos diretos que nos merecem credibilidade. E nesse sentido, uma apreciação contemporânea, imediata, de figuras como Garrett por exemplo, garantem-nos a qualidade e a modernidade epocal dos artistas referenciados nessas apreciações da época, desde que quem as formula mantenha e guarde, ainda hoje o prestígio histórico e estético correspondente.

Justifica-se pois claramente, neste série de crónicas em que se alternam referências “históricas” e referências contemporâneas, a evocação da então chamada “grande Emília das Neves” (1820-1883), atriz que esteve ligada, por mérito e talento, à renovação estética e dramatúrgica do teatro português. Garrett, em carta datada de 1849, é enfático: “bem sabe que sou e sempre hei-de ser seu verdadeiro admirador”. Tratava-se então da estreia da “Adriana Lecouvreur” de Eugène Scribe, dramaturgo e libretista então em pleno prestígio europeu e que curiosamente dedicou a personagens da História de Portugal pelo menos dois textos dramáticos relevantes, ´na época de extrema modernidade, e ainda hoje de qualidade – os libretos das óperas “D. Sebastien” de Donizetti e de “A Africana” de Meyerber, esta sobre Vasco da Gama.

Não admira que Garrett se entusiasmasse com “Adriana Lecouvreur” representada por Emília das Neves: a atriz protagonizou a estreia do garretteano “Um Auto de Gil Vicente”, peça iniciática do romantismo no teatro português, no então Theatro da Rua dos Condes em 15 de Agosto de 1838. Foi também o primeiro grande desempenho de Emília das Neves, no papel da protagonista, D. Beatriz de Saboia.

Ora, passados 8 anos, o Diário do Governo publica uma Portaria com o elenco dos artistas que integram a primeira companhia do Teatro de D. Maria II (21 de Fevereiro de 1846). São 24 atrizes e atores, o melhor que haveria na época, curiosamente divididos em “artista de 1ª classe e de 2ª classe”… E não se trata de um mera lista de elenco: os artistas são devidamente caracterizados na respetiva criação artística, bem como, em muitos casos, o teatro e a companhia de onde provêm.

Repita-se, são os melhores nomes da época, com prestígio ainda hoje evocado nos estudos da especialidade. E Emília das Neves é a primeira atriz citada com uma referência também muito da época: “Emília das Neves e Sousa, primeira dama absoluta; vinda do Condes”. Esta lista é transcrita na íntegra por Ana Isabel B. Teixeira de Vasconcelos, que precisamente salienta a carreira da então jovem Emília, “cuja vida percorreu praticamente todo o século XIX” e cujos admiradores “não poupavam esforços para a ver representar tendo mesmo comportamentos de adulação”! (in “O Teatro em Lisboa no Tempo de Almeida Garrett”, ed. Museu Nacional do Teatro - 2003, de onde transcrevemos também as opiniões de Garrett e a imagem de Emilia das Neves.

Por seu lado, Sousa Bastos, no “Dicionário do Teatro Português” (1908) identifica quase 100 peças protagonizadas, ao longo da longa carreira, por Emília das Neves: e lá encontramos de facto todo o teatro que, na transição do romantismo duro e puro para os primeiros sinais de realismo, marca a dramaturgia sobretudo portuguesa e francesa, como era habitual na época, mas também os grandes clássicos.

E finalmente: Gustavo de Matos Sequeira analisa a escritura celebrada pela Jovem Emília das Neves em 30 de Dezembro de 1846 com a então chamada Sociedade Artística do Teatro de D. Maria II. São cerca de 15 cláusulas contratuais, que vão desde a natureza e escolha do repertório à estrutura das temporadas (10 meses e máximo de 14 peças/ano), encargos de guarda-roupa, direito de “franquear o camarim a quem quisesse”, não ser obrigada a cantar em cena… e sobretudo, um honorário muito significativo para a época: “só a Srª Emília recebia por ano, pelo seu contrato especialíssimo, 2.500$000 reis com dois benefícios garantidos de 500$000 reis cada um (isto rendendo a casa quatrocentos) afora outras condições que correspondiam, indiretamente, a novos encargos” diz-nos Matos Sequeira (in “História do Teatro Nacional D. Maria II” vol. I - 1955).

Era dinheiro, na época! Por aqui se vê também o prestígio da atriz, então com 26 anos de idade!

 

DUARTE IVO CRUZ

 

LONDON LETTERS

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Let the neo-austerity debates begin, 2015-2020

Joseph Stiglitz, Thomas Piketty, David Blanchflower, Mariana Mazzucato e ainda Ann Pettifor. Estes são alguns dos famosos académicos do Labour’s Economic 

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Advisory Committee reunido por Mr Jeremy Corbyn. A revelação anima o primeiro dia da conferência trabalhista, em Brighton, recheada com a gravitas do novo líder, o wait&see da oposição interna e o criticismo da honorável Press. — Chérie! Les petits ruisseaux font les grandes rivières. O sucesso da visita do Pope Francis aos United States suscita interessantes interrogações sobre o catolicismo entre os republicanos e a fanfarra conservadora. Semeiam-se notícias da resistência no Vatican ao liberalismo do pastor da Holy See. — Well. Birds of a feather flock together. A European Union decide por fim acolher 120,000 asylum seekers, pela via de quotas nacionais, sob a abstenção de Finland e a oposição da Romania, Czech Republic, Slovakia e Hungary. Germany estremece com o escândalo das emissões motoras e o rolar de cabeças na Volkswagen e Audi. Os separatistas vencem a eleição da Catalunha e erguem o espetro da divisão ibérica. Paris e Moscow intensificam as manobras militares na Syria, em semana do United Nations Summit em New York.

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A fine and dry day em London. Também a bela cidade costeira outrora dita Brighthelmston, no East Sussex, está solarenga. O Labour Party reúne aqui a sua usual conferência anual e domina as atenções mediáticas. Esmagadas ficam as paralelas convenções do UKIP e Lib Democrats. Se RH Tim Farron revela dificuldades de afirmação partidária após o desastre eleitoral de 2015, já o RH Nigel Farage permanece igual a si próprio numa missa onde até os militantes surgem tatuados com a sua imagem para obscurecer épicas querelas com o único MP em Westminster: Mr Douglas Carswell. Mas ontem foi dia de uma grande entrevista de Mr JB Corbyn à BBC. Tão bem esteve ali o recém-eleito líder trabalhista que logo os social media especulam com eventual visita ao spin doctor. “The best interview by a Labour leader in over a decade,” pontua o Baron John Prescott, Deputy Prime Minister na Blair era. De substantivo que se diz no Andrew Marr Show? Que está aberto o combate contra a austeridade dos Tories e o debate sobre o arsenal nuclear do UK. A visão de Jez? "I want to achieve a decent, democratic society where nobody is forgotten and we don't as a society pass by on the other side while the poor lie in the gutter."

Nesta linha de regresso das ideologias há mais, em força mas de sinal diametralmente diverso. Dr Theodore Dalrymple acaba de cunhar uma nova máxima que proponho para comum adoção. "There is no social phenomenon without its bureaucratic opportunity," sinaliza The Skeptical Doctor, como é também conhecido nos meios conservadores britânicos Mr Anthony Daniels, além do seu famosíssimo pen name, autor de polémicos livros como The New Vichy Syndrome. Why European Intellectuals Surrender to Barbarism (2010), Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass (2001) ou Threats of Pain and Ruin (2014) e de uma miríade de artigos em magazines como a mui vitoriana The Salisbury Review. Sigo as céticas teses desde os idos anos 90, pós Lady Margaret Thatcher, quando me seduz com uma simples lei da ciência que Aristotle classifica como the philosophy of human affairs: “In politics as in medicine, first do no harm.”

Ora, refletindo sobre a crise dos refugiados no eurocontinente, este libertário (entre libertários) argumenta que a reação da EU aos migrantes confirma que “fine words butter no parsnips. Openhandedness and moral exultation have been quickly replaced by recrimination, border controls, and barbed-wire fences. The categorical imperative has met particular circumstances.” Not bad at all para este exímio defensor da responsabilidade individual e alguém há muito sustentando que na raiz dos mais graves problemas contemporâneos estão uma cultura nihilista e comportamentos destrutivos de quantos do not know how to live. I.é: a decadência ocidental. — Hmm! A chain is only as strong as its weakest link.

St James, 28th September      
Very sincerely yours,
V.

A VIDA DOS LIVROS

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De 28 de setembro a 4 de outubro de 2015.

O colóquio «Antero e a Cultura Crítica do século XIX» celebra os 150 anos da polémica do «Bom Senso e do Bom Gosto», momento fundamental no debate de ideias em Portugal e na procura de uma abertura de horizontes no sentido europeu e cosmopolita.

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SERÁ POSSÍVEL VIVER SEM IDEIAS?
Pode dizer-se que é em 1865, a propósito da chamada Questão Coimbrã, que se inicia o que Unamuno designará como «século de ouro português». Com razões fundas, José-Augusto França integrou esse momento na dinâmica do Romantismo português, considerando a polémica como um momento de transição: «o que se critica na escola de Coimbra não é a posição literária ou poética assumida, o seu estilo ou as suas ideias, ou mesmo a sua ideia –“mas a guerra faz-se à independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência”» («O Romantismo em Portugal», p. 857). O que está em causa é a necessidade de ideias. «Mas, Exmº Senhor, será possível viver sem ideias? Esta é a grande questão». E assim Antero assumia, perante António Feliciano de Castilho, a tradição das «luzes europeias»: «quem pensa e sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa (…): é Paris, é Londres, é Berlim» - no entanto «as três grandes nações pensantes são risíveis diante da crítica fradesca do Senhor Castilho». Um certo nacionalismo acomodado do romantismo decaído fora incapaz de pôr em xeque o atraso nas ideias. Afinal, o que estava em causa era a «defesa da liberdade e da dignidade do pensamento» contra as literaturas oficiais e a lógica burocrática. Estamos, pois, num capítulo da história do Romantismo. Lembremo-nos do percurso dos jovens iconoclastas. Antero de Quental estivera à cabeça da Sociedade do Raio e saudara o príncipe Humberto de Itália, como o «filho do primeiro soldado da independência italiana», com Teófilo Braga abandonara o salão nobre da Universidade em protesto contra uma legislação velha saída do Santo Ofício, exigindo «garantias para quem queria ser livre, digno e justo». O reitor demitiu-se e foi Antero o autor do Manifesto libertador. Como dirá Eça, vinham de lá dos Pirenéus «largos entusiasmos europeus», logo adaptados como próprios de uma juventude impetuosa e rebelde. E se dermos atenção às leituras dessa irrequietude encontramos Vico, Stuart Mill, Hegel, Michelet, Quinet, Renan e Proudhon… A diversidade é óbvia, a coerência é difícil. Do que se trata é de defender uma nova função da literatura. É o contraponto relativamente a quem considerava o poema patriótico de Tomás Ribeiro «D. Jaime» num ponto mais alto que «Os Lusíadas». Castilho incensou essa linha poética – o que suscitou a contestação irónica de Ramalho Ortigão, num tempo em que este se situava nas hostes do ancião. Também João de Deus não deixará passar em claro este estranho elogio. E Germano Meireles fala ironicamente de «trovadores de brisas»…


VINDOS DO ROMANTISMO
O certo é que, no início, o Romantismo mais sincero e exigente animara os jovens da nova geração. E Victor Hugo torna-se referência para Teófilo: em nome da construção de uma epopeia da humanidade e do resgate das fatalidades cósmicas e históricas em nome da liberdade. Teófilo Braga não tinha, porém, uma poesia muito fértil, Herculano critica-lhe os «desvios das simbólicas, das estéticas, das sintéticas, das dogmáticas, das heroicas, das harmónicas…». Camilo sente-se atarantado com a estética do Sr. Braga. Ao invés, a solidez poética de Antero de Quental é inequívoca. Castilho, perante «Odes Modernas» (de 1865), elogia-o, contudo, de um modo tão vago que enfurece o jovem poeta. Herculano enaltece «Flebunt Euntes», que Antero lhe dedicará, Camilo é também destinatário de sete sonetos – onde a dúvida está bem marcada («Conquista, pois, sozinho o teu Futuro, / Já que os celestes guias te hão deixado»). Mas o severo sentido crítico é evidente e como antes não se conhecera, contra o mundo burguês, os ricos, os tiranos, o clericalismo… Antero dirá que há um fundo romântico nas Odes, uma singular aliança «do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francês». Fala, contudo, da «missão revolucionária da poesia», diz que «a poesia moderna é a voz da revolução». E o poeta recusa «viver fora da história e do progresso». Com ironia, diz que, em Portugal, «sob os nossos tetos reina o contentamento dos simples». Filho de um dos bravos do Mindelo, Antero procura, no fundo, dar vida à tradição humanista dos seguidores da «boa razão», em termos que compreendam a revolução social («O novo mundo é todo uma Alma nova, / Um Homem novo, um Deus desconhecido»). O que transvasou o copo na chamada «Questão» foi a carta de elogio de Castilho publicada em posfácio no volume «Poema da Mocidade Seguido de Anjo do Lar» de Pinheiro Chagas. O velho mestre ataca terminologia dos novos (como Herculano fizera), mas o zelo excede-se já que pretende recomendar o seu compadre Chagas para a cátedra de Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras.


A LÓGICA DO ELOGIO MÚTUO
Afinal, a lógica do «elogio mútuo» escondia interesses que em muito ultrapassavam à mera lógica literária. Antero responde com a argumentação já referida, não seria possível viver sem ideias, as nações pensantes não podiam ser escondidas pela crítica fradesca… E numa segunda carta defende a liberdade e a dignidade do pensamento e considera que contra as literaturas oficiais tudo é preferível. E Teófilo salienta que «uma das primeiras condições da arte é a verdade», o que define o território da polémica para além do idealismo. Entretanto, Castilho pressiona amigos seus para virem a lume defender a sua parte. Camilo entra a contragosto, criticando mais Teófilo, e deixando Antero (que lhe dedicara parte das «Odes») numa certa penumbra… E aqui entra Ramalho Ortigão a atacar nos jovens de Coimbra o seu carácter «palavroso e mistifório». A imprudência dos termos leva Antero a subir ao Porto para defrontar Camilo e Ramalho. O primeiro demove-o do intento relativamente a si com palavras mansas e leva-o ao confronto com Ramalho, que tinha fama de ser bom espadachim. A verdade é que na Arca de Água é Antero que vence graças a uma cutilada no braço do adversário. Aqui se iniciará a mitologia que levará ao grupo dos cinco no Palácio de Cristal. Entretanto, os amigos de Castilho mobilizaram-se. Tomás Ribeiro chegou a dizer no Parlamento: «Temo que o norte em vez de sábios e profundos pensadores nos dê Hunos e Ostrogodos». O certo é que entre os velhos e os novos havia a distância da compreensão do tempo, do inconformismo que venceria a indiferença e o quietismo. «O movimento de 1865 é um movimento romântico. Ele irá dar, é certo, ao realismo – mas não imediatamente, apesar da diligência do espírito de Teófilo» - como afirma J.-A. França. «A visão do tempo (histórico), o sentido do moderno, da Ideia, faz que a batalha de Coimbra se apresente, no fim de contas, como uma luta entre dois romantismos» (p. 867). O que está em causa é a necessidade da independência do artista. Só as ideias são garantia de futuro. Para Antero, mais do que a polémica ou a literatura estava em causa «a maior liberdade de pensamento e os progressos do espírito». Daí a recusa do isolamento e a exigência de um sentido europeu. De 1865 a 1871, de Coimbra ao Casino Lisbonense, haverá uma evolução em que o fundo romântico, que se sente no «Bom Senso e Bom Gosto», evoluirá no sentido realista de que se ocupará Eça de Queirós nas Conferências. Antero introduzirá a Ideia hegeliana e uma consciência mística. Como dirá a Oliveira Martins: «A ideia poética sai tanto mais abundante e livre quanto mais clara e lógica é a ideia filosófica». O drama de Antero decorre desse paradoxo. Mas a sua grande lição advém do apelo para que «uma das primeiras condições da arte (seja) a verdade»…


                                                                                                  Guilherme d'Oliveira Martins

O ALERTA DAS JORNADAS DO PATRIMÓNIO

Por Guilherme d’Oliveira Martins (*)

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Tenho pena que nos debates europeus sobre as saídas da crise se fale tão pouco de Cultura, de Educação e de Ciência. Muitos pensam falsamente que se trata de temas secundários, no entanto falamos do cerne da inovação e da criatividade, únicas respostas ao primado ilusório do imediatismo, da vulgaridade, da indiferença e da mediocridade que nos trouxe até onde nos encontramos. As Jornadas Europeias do Património de 2015 realizam-se com um pano de fundo dramático – o drama dos refugiados, a prevalência dos egoísmos nacionais, a incapacidade de encontrar respostas comuns que defendam a justiça e a humanidade, bem como as destruições absurdas de bens do património comum, como temos assistido em Palmyra. Como poderemos falar do Património Cultural e da sua defesa se não começarmos por cuidar das pessoas? Julien Green disse um dia que «ignorar o passado é encurtar o futuro» - e a verdade é que na tragédia humanitária a que assistimos falta consciência de passado e de presente. A noção dinâmica de Património Cultural obriga à tomada de consciência de que são as pessoas que estão em causa e que a Humanidade está ameaçada quer com as mortes dos refugiados, quer com as destruições das marcas dos nossos antepassados. Estamos perante a noção indivisível de dignidade humana. O nosso Alexandre Herculano dizia: «Nossos pais destruíram por ignorância e ainda mais por desleixo: destruíram, digamos assim, negativamente; nós destruímos por ideias, ou falsas ou exageradas. Destruímos ativamente, destruímos porque a destruição é uma vertigem desta época. Eu ficaria feliz se pudesse, ao menos, salvar uma pedra, só que fosse, das mãos dos modernos hunos». O programa era e é simples: não destruir ou deixar estragar o que existe, restaurar o que tem valor, divulgar, conservar, tornar acessível… Investir não é lançar dinheiro sobre os problemas – é escolher o que permite preservar com os meios disponíveis e da melhor maneira o que tem valor.

Nuno Bragança disse um dia: “A relação dos portugueses com Portugal é muito estranha. Estão todos de acordo em dizer mal de Portugal – e isto é uma constante que já vem de há muitos anos -, todos recusam um Portugal que obviamente existe porque eles são como são. As pessoas em Portugal têm a tendência para culpar os outros de defeitos que elas próprias também têm” («Raiz e Utopia», nº 3-4). E em “Direta” afirmava ainda: “O passado de uma nação é como o passado de uma pessoa; quanto mais remoto ele é, mais importante pode ser. Só quando uma pessoa – ou uma nação – se conhece a si própria, se pode assumir, e então escolher». Interessará, por isso, nessa relação entre passado, presente e futuro, segundo o escritor, “encontrar o passado que está presente no presente”. Falar de património cultural é isto mesmo: ter consciência de que a memória viva do que recebemos da História exige o respeito pela responsabilidade que temos de fazer da criatividade e da inovação o enriquecimento do que recebemos e legamos a quem nos sucede. A crise, cujos efeitos sofremos, deve-se ao predomínio da ilusão – em vez da capacidade de criar valor.

Identidade de várias identidades e de várias culturas, a Europa tem de recusar o egoísmo e a irrelevância que têm prevalecido. Por exemplo, «se, como é inquestionável, uma cultura nacional – ou regional – se exprime pela língua, é indispensável assegurar que as línguas serão protegidas e estimuladas através do ensino escolar desde o nível básico, da tradução, da edição, da legendagem, da dobragem, da produção audiovisual e multimédia» - como disse Helena Vaz da Silva. No entanto, para que a diversidade cultural seja preservada, é indispensável que o respeito pelas várias línguas seja garantido plenamente, sob pena de se criarem focos de tensão cultural e política. Estamos a falar de educação, de informação e de comunicação em todos os seus aspetos. Não se salvaguarda a cultura defendendo, por princípio, indiscriminadamente todas as culturas. Defende-se a cultura procurando definir medidas para cada situação e pondo-as em prática no tempo próprio. Torna-se necessário trabalhar em sólidas bases. A política do património cultural, centrada na integração, no conhecimento e na ação, deve ser articulada, como fator de coesão territorial, de integração social e de desenvolvimento sustentável, dentro das fronteiras e para além das fronteiras. E urge assumir um conceito dinâmico de fronteira, como um fator de aproximação e não de separação, como ensinava Jacek Wosniakowski. Daí a importância da criação de um quadro que permita a convergência dos ordenamentos jurídicos, de redes de bancos de dados, de sistemas de arquivos compatíveis, de catálogos partilhados, do uso de várias línguas, do desenvolvimento de itinerários culturais e da coprodução de multimédia sobre a história e o património partilhados. As Jornadas Europeias do Património põem a tónica na defesa e salvaguarda dos marcos da cultura, materiais e imateriais – os monumentos, os arquivos, as paisagens, os costumes, as tradições. Tudo obriga a deveres e responsabilidades dos cidadãos. Este ano o tema «Património Industrial e Técnico» das JEP leva-nos à consideração do diálogo entre a tradição e a modernidade, entre o artesanato e a tecnologia, numa perspetiva em que não basta a lógica da conservação, devendo entender-se a defesa do património cultural como fator ativo de desenvolvimento. A Convenção de Faro do Conselho da Europa (24.10.2005), cujos dez anos comemoraremos em breve na capital algarvia com a Universidade, abre caminhos que têm de ser seriamente desenvolvidos, articulando a defesa do património e a consideração inteligente da criação contemporânea – numa lógica de enriquecimento mútuo. Urge mobilizar recursos, realizar inventários fidedignos e estudos credíveis e envolver todos. Os Estados, a sociedade civil e a comunidade internacional têm de partilhar responsabilidades. Eis o alerta!

 

(*) Presidente do Centro Nacional de Cultura. O CNC teve a coordenação geral das Jornadas Europeias do Património, do Conselho da Europa, entre 2001 e 2005.

 

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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«From Animals into Gods» de Yuval Harari

Minha Princesa de mim: 

Quando me perguntam se tenho saudades de meu Pai  -  que perdi tão novo  -  respondo apenas que dele guardo sempre  o gosto imenso de ser humano. Aprendi com ele esse milagre que tanto me tem ajudado a viver a nossa condição : sentirmo-nos leves e pesados, pesados e leves... Habitantes do nosso tempo, curiosos da nossa eternidade. Fugindo sempre e só da impossível fuga, ganhando quando perdemos, quiçá perdendo quando julgamos ganhar. Sabendo que o que define o nosso estado é a impermanência. Ou, se quiseres pensá-lo assim, que o limite do nosso ser agora é a esperança. E seja qual for o lado pelo qual nos surpreendamos, só o amor dá sentido à fé. E à vida. Sem amor, é desgraçada a vida. A alegria de viver - que meu Pai tão radiantemente tinha - é o gosto de amarmos, de coração agradecido, tudo o que o ar que respiramos envolve. Tinha uma alma franciscana: já várias vezes te contei essas lembranças tão vivas, vindas do remoto da minha infância, de meu Pai comprar gaiolas inteiras de pássaros nos mercados, e de as abrir no grande terraço lá de casa, sobranceiro ao jardim, para que as aves voassem livres... Muitas delas iam voltando depois, para comerem a alpista que lhes deixara, dormirem ou construírem os seus ninhos. Às vezes iam à palma da mão que, aberta, lhes estendia o que procuravam. E também te falei do Rosinho, esse pombo que uma fotografia mostra empoleirado no meu ombro e que meu Pai podia despertar a qualquer hora do dia ou da noite, para o mandar arrulhar ou, até, dançar : «Canta, Rosinho, canta! Dança, Rosinho, dança!» E esse amigo, na plataforma do pombal, arrulhando, ia volteando como se cortejasse uma pomba! Este homem - que a todos os animais domésticos, como a todas as flores, plantas e árvores, do nosso jardim ou da quinta,  estendia uma ternura comunicativa - era, todavia, grande caçador e aficionado de corridas de touros. Hoje ainda, muitas vezes me interrogo sobre a minha própria paixão tauromáquica, eu que, menino ainda, percorri centenas e centenas de quilómetros para ir a corridas, com meu Pai! Que misterioso mandato genético me fará vibrar tão intensamente com a lide taurina? Nunca o percebi bem, sei só que faz parte de mim, como esses sentimentos antigos que não conseguimos objectivar nem discutir. Mas falo-te nisso agora, porque me ocorreu uma explicação, quiçá parcial, ao ler há dias o From Animals into Gods: A Brief History of Humankind do professor Yuval Harari, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Sendo, certamente, discutíveis, a caça e a tauromaquia são dificilmente compreensíveis por critérios próprios à cultura do nosso tempo actual. Só podemos entendê-las pela perspectiva do antiquíssimo de nós. Ainda agora, a conceituada revista Science publicou um extenso artigo sobre o homem enquanto insustentável predador. Quer isto dizer que, milénios depois do sucesso da revolução agrícola, que transformou o homo sapiens, de simples colector de raízes, folhas e frutos, e caçador de animais, em cultivador agrícola e pastor ou criador de gado e animais domésticos, ele ainda é - e mais do que nunca - um predador terrestre, marítimo e aéreo. Dizem cientistas e investigadores que ele apanha 14 vezes mais peixe do que os outros predadores marítimos, e mata 9 vezes mais animais selvagens de porte (lobos, leões, ursos, etc.) do que estes entre eles. Paralelamente, sabemos que a domesticação tornou a vida de certas espécies na mais infeliz e baça à superfície da terra : normalmente, um vitelo criado em exploração intensiva de gado bovino, é alimentado em espaço fechado, onde não possa mover-se, para que a sua carne seja tenra e suculenta, e é abatido com cerca de 4 meses, altura em que, pela única vez na vida, se mexe e acompanha outros vitelos, a caminho do matadouro. E que dizer dos nossos conhecidos aviários? Assim vamos cumprindo o mandamento bíblico de submeter ao homem e suas necessidades a terra inteira e tudo o que nela vive... Pode ser chocante. Mas poderá ser de outro modo? E como? Yuval Harari traça um percurso fascinante  -  e latentemente inquietante  - da evolução do homo sapiens sobre o nosso planeta e em relação a todas as espécies que neste vivem ou viveram, incluindo, portanto, as desaparecidas ou exterminadas, como várias primitivas espécies animais de enorme porte (que eram ameaças constantes para o homem) ou primatas humanoides como os Neandertal, que surgiram na Europa e foram sendo eliminados pelo Sapiens que, oriundo da África Oriental, se espalhou pela terra inteira. A supremacia desta nossa espécie dever-se-ia ao que se chama revolução cognitiva, essa capacidade de nos diferenciarmos do mundo e transformá-lo, de inventar linguagens e imaginar mitos e regras que nos permitem comunicar e organizar, socializar. A consciência de si individualiza, abre a distância do subjectivo para o objectivo, torna-nos simultaneamente solitários e relacionais. Não mais dominados apenas pelo instinto, já nada poderá ser-nos unívoco, há sempre dúvida, interrogação, alternativa. Quantas vezes, Princesa de mim, ter-te-ei repetido essa frase do Ortega e Gasset no seu De la aventura y la caza: El hombre es un transfuga de la naturaleza? Quer dizer que transitamos, não só individualmente para a morte, mas enquanto condição, espécie humana, retomando o subtítulo do professor Harari, from animals into gods... E este longuíssimo processo, minha amiga, não se desenrola linearmente, por caminho sempre recto... A cada passo - e lá volto eu ao Ortega - somos nós e a nossa circunstância. Pelos tempos que correm - perdoa-me o reacionarismo - a circunstância será talvez, como se diz em gíria bolsista, muito volátil... Olha, pensa nas dietas, por exemplo, no que atarefados ignorantes, na malchamada comunicação social, todos os dias te vão dizendo o que podes ou deves, ou não podes e muito menos deves comer... Ai flores, ai flores do verde pinho! Como são variáveis os gostos e as afirmações, como serpenteia e até se contradiz o nosso pensamento! As regras que nos orientam e obrigam, os princípios e critérios que condicionam as nossas sensibilidades e juízos, todas essas arquitecturas mentais são, afinal, criação nossa. Não há "direito natural", o direito, todos os direitos, são definições nossas. A natureza regula-se pela emergência e curso das suas forças físicas, químicas, biológicas, pelo desenvolvimento dos seus factores genéticos. É esse o seu "direito", não tem outro. Excepcional, porque pensa e pode agir fora do determinismo natural, o homo sapiens foi imaginando, pelos tempos, as nomenclaturas e as regras que lhe servissem os entendimentos da natureza e fossem definindo os modos do seu comportamento. Assim foram surgindo esses ecossistemas que transcendem a ordem meramente biológica e a que chamamos culturas e civilizações. Mesmo quando referimos os nossos mitos e princípios constituintes - ou, acreditando numa revelação divina, até os atribuímos - a um ou vários entes superiores, teremos, objectivamente, de reconhecer, inclusive pelas suas muitas manifestas diferenças, que estes são nossos e outros de outros. Se esses princípios, verdades e valores, fossem naturais - no sentido de natureza determinada e determinante - seriam universais, iguais. Mas não são, antes se têm diversamente modelado e definido. A consciência de tal realidade fundamentará a tolerância, o diálogo e a paz. A recusa dela pode levar - e historicamente tem levado - ao totalitarismo e à guerra. E estou eu a invadir-te com esta conversa toda, só porque gosto de corridas de touros e tu não. Compreendo que te firam a sensibilidade, e até te acendam brios de defesa dos direitos dos animais, hoje tanto na moda, mas, mal ou bem, frutos da mente humana... O meu fascínio pela lide taurina habitará talvez aquela parte de mim que ainda não "transfugiu" da natureza. Sou o homo sapiens que vive num mundo que lhe é simultaneamente sustento e hostilidade, do qual ele tem consciência e no qual terá de lutar e fazer pela vida, para tanto se servindo sobretudo da faculdade que o distingue e lhe dá vantagem: a inteligência, que lhe permite adivinhar outros comportamentos e iludir ameaças e ataques. Assim sinto minha a festa tauromáquica. Sorrindo-te e rindo (de mim), ao som dum paso doble te atiro, do centro da arena, um beijo saleroso


Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Arquitetura Moderna em Portugal e o I Congresso Nacional de Arquitetura.

 

‘Não concebo o ato de criação como um dinamismo cego ou como um facto gratuito. Só se consegue valor numa obra se nela confluírem tudo o que represente uma conquista da realidade para a sociedade que a recebe e que essa conquista esteja encarnada numa forma que reuna as condições necessárias para ser atuante no seio daquela sociedade’
Antoni Tàpies, 1955

 

O final da década de quarenta apresenta-se como o grande momento de reflexão da arquitetura moderna em Portugal (que, com plenitude, nunca chegou a manifestar-se). E assiste-se ao que se pode designar de rutura moderna. Foram as Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAP: 1946-56) que mais contribuíram, com o seu carácter global e de oposição (eram evidentes as ligações ao MUD), para uma procura da vanguarda, através da tomada de consciência da realidade contemporânea. Inicialmente, os artistas sentiam cumplicidade pela luta contra o regime e expunham como sinal de resistência. Era o momento certo para aplicação das ideias funcionalistas e socializantes do movimento moderno. Porém, desde logo, o olhar neo-realista afirmado nas EGAP, nos primeiros anos, acrescentava uma atenção maior aos factos humanos puros. Esta consciência social atualizar-se-á numa intervenção que evita o internacionalismo idealizante, buscando inovação em esquemas populares, visando o cidadão comum. A época do pós-guerra trás sobretudo um favoritismo, pelo desenho funcional, direto e simples – era necessário construir rápido, em série e com economia de meios – e a resposta mais completa e adaptada a esta circunstância é o Estilo Internacional.

Desde 1946, os arquitetos rompem com a arquitetura nacionalista. Muitos querem pôr em prática a arquitetura moderna pura - mas poucos estabelecem uma visão crítica.

O I Congresso Nacional de Arquitetura (Lisboa, 1948) transforma e acelera o tempo e faz nascer uma geração de arquitetos com novas intenções, não apenas políticas, mas sobretudo sociais. Agora sim, acreditava-se em mudar a sociedade através da arquitetura e em reconquistar a liberdade de expressão. O Congresso teve importantes conclusões entre as quais se destacam: renovação do Sindicato de Arquitetos, assumindo Keil do Amaral a presidência; fundamentação da nova arquitetura a partir dos grupos profissionais ICAT (Iniciativas Culturais Arte Técnica) e ODAM (Organização dos Arquitetos Modernos); renovação do ensino para melhor corresponder às necessidades contemporâneas; fortalecimento da classe dos arquitetos com reconhecimento público da sua missão social; valorização do planeamento urbanístico; concessão de prioridade aos programas de habitação social, equipamento e indústria - com renovação do código linguístico e dos respetivos regulamentos; recusa dos bairros sociais salazaristas; apoio da ideologia arquitetónica do racionalismo europeu dos anos vinte e trinta (Gropius e Le Corbusier) e da nova arquitetura brasileira de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Reidy.

Ora, o Congresso abriu sobretudo caminho a uma correção/revisão da arquitetura moderna, através do abandono de uma dimensão abstrata e distante da dimensão humana – o modernismo puro com as suas intenções sociais, depressa se tornou pesquisa meramente formal. São as artes plásticas dominadas pelo neo-realismo e arquitetos como Keil do Amaral e Távora, que põe em prática uma arquitetura social, mais humana, revisionista do movimento moderno – um tradicionalismo comunicante com a vida local, pela divulgação aturada da arquitetura regional.

 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Minha Princesa de mim:

Nasceu cinzenta mais uma manhã neste outonal Agosto. Vão-se repetindo, melancólicas, estas primeiras horas de dias que esperávamos claros de sol. No Verão, gosto de luz quentinha e de preguiça, de sentir crescer e encher o ar que respiramos essa alegria sossegada e amiga de toda a gente. Se o céu teima em mostrar-se grisalho, vou em busca de alguma exuberância. Este ano, tem-me dado para me animar com óperas do Rossini. Ontem ainda me ri, e muito, com Le Comte Ory. Hoje, divirto-me a ouvir La Cenerentola, com a Cecília Bartoli na protagonista. No libreto de Jacopo Ferretti, a borralheira Angiolina (a angélica)  personifica o subtítulo de um conto que tem como remoto antepassado o Cendrillon, do setecentista Charles Perrault, também designado por O Sapatinho. Aqui, esse "petit soulier" é substituído por La Bontá in Trionfo - assim cumprindo o desejo que Rossini sempre manifestou de não incluir elementos sobrenaturais na ópera. A bondade triunfante é a valorização do mérito do amor do próximo sobre qualquer outro milagre ou feitiço. Não há fada-madrinha, nem truques, nem calçado que sirva só num pé: é Alidoro, filósofo e mestre de Ramiro, príncipe de Salerno, que, disfarçado de mendigo, descobre a gata borralheira, pela caridade que ela lhe faz, ternura que ele planeará recompensar, conduzindo-a até ao seu senhor. O milagre verdadeiro é o amor que temos, ou o bem que queremos e fazemos. A pobre borralheira assim tem fé e esperança. E, na primeira ária que canta, pareceu-me reconhecer aquela máxima francesa: Aide toi, le Ciel t´aidera. O Céu conforta o nosso bem:

          Una volta c´era un re,

          che a star solo s´annoiò;

          cerca, cerca, ritrovò!

          Ma il volean sposare in tre.

          Cosa fa?

          Sprezza il fasto e la beltà,

          e a la fin scelse per sé

          l´innocenza e la bontà.

Era uma vez um rei, aborrecido de estar só; procurou, procurou e encontrou! Mas queriam casá-lo com três. Que fez? Despreza o fasto e a beleza, e por fim para si escolhe a inocência e a bondade. Repara, Princesa, como é contagioso o bem: não é só a caridade ou amor dela que triunfa, mas ainda a felicidade que, para si mesmo, ele descobre e escolhe. Ao escrever-te esta carta, adivinho o teu riso, ao leres que esta história me lembra a Julia Roberts no Pretty Woman... Em todos nós há zonas sombrias, erros da vida. Mas em cada um, sempre, mesmo escondida ou adormecida, vive uma inocência criadora de bondade e beleza. Quando deixamos abrir-se essa flor, acende-se, em nova luz, o nosso olhar, e há mais verdade humana no nosso sorriso. Surgiram, no decurso da História e por todo o mundo, desde a China do século IX a. C. até aos irmãos Grimm e seguintes, contos vários, com títulos diversos e diferentes enredos, todos eles, afinal, retomando esse milagre da conversão possível do ser humano, como, por exemplo na peça Pigmaleon, do Bernard Shaw, que deu o filme My Fair Lady. Creio já te ter dito, Princesa de mim, como tantas vezes me tem ocorrido essa imagem da fénix renascida, não só em 4ª feira de Cinzas, mas até na Vigília Pascal, quando ouço aquele O felix culpa! de Sto. Agostinho... De cinzas somos feitos, como o borralho. E a princesa que se descobre na menina de ignorada bondade é a Cinderela (de cinder ou cinza, em inglês), Cenerentola (de cenere),  Cendrillon (de cendres), Cenicienta (de cenizas), Aschenputtel (do alemão Aschen, cinzas, como no vocábulo inglês, de raiz saxónica, ashes), etc. Qual fénix, também do cinzento desta manhã me nasceu o gosto alegre da música de Rossini. Sou um gato borralheiro, preguiçoso e talvez feliz. Dou-te um sorriso, ressonando.

  Camilo Maria      
 

Camilo Martins de Oliveira

 

Samuel Taylor Coleridge (1772-1834)

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Li a “Rima Do Velho Marinheiro” de Coleridge, numa tradução de Gualter Cunha, publicado este livro pela Relógio d’Água. Não obstante as diversas opiniões acerca das traduções efectuadas a um poema/texto tão difícil de colocar fora da sua língua mãe, creio ter retido algo desta importantíssima viagem e que gostaria de comunicar.

Este texto que inicia o percurso do Romantismo na Europa, conta a história de um navegante que, retornando de uma expedição à Antártida, mata com a sua besta, e, sem finalidade alguma, um albatroz cujo voo lhe indicara o caminho do norte, após o seu navio se ter perdido na neblina e no gelo austral. Não respeita este marinheiro as criações de Deus ao matar um albatroz e a maldição não se faz esperar. A partir desse gesto gratuito, ou inadvertido, uma série de desgraças têm lugar. Tórridas calmarias, sedes mortais, pesadelos e terríveis visões marinhas, navios fantasma que têm de enfrentar, e outros horrores, são alguns dos tormentos pelos quais todos na embarcação de destino funesto, sofrem dia após dia, e, ao marinheiro que abateu a ave, aguardou-o uma vida pior do que a morte mesmo depois de retornar ao seu próprio país.

Acode-nos os Lusíadas de Luís de Camões a esta outra extensa tradição histórico-literária que nos remete às explorações marítimas e à sua importância na história do homem. Seguramente o estabelecer de um cotejo entre o épico camoniano e esta rima ou balada de Coleridge é acutilante trabalho analítico, nomeadamente na relação do homem com o mar.

 

                                                                                           O mar é a religião da Natureza.

                                                                                                              Fernando Pessoa

 

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O crítico Stopford Brooke afirmou:

“Tudo o que merece ficar de Coleridge poderia ser reunido em vinte páginas e estas vinte páginas deveriam ser encadernadas em ouro!”

O Gigante Adamastor ajuda-nos a entender a aparição de mortes horrendas em clareiras de visão extremas como são descritas neste livro. Recolhemo-nos aos pensamentos das naturezas invisíveis que habitam lugares desconhecidos na nossa alma. A mente humana sempre e de alguma forma ousou os mistérios e nunca os alcançou. E o mar, o mar de Ulisses, o jovem e fulguroso mar, o mar da epopeia, o mar de Trafalgar, o nosso incessante mar, tão bem sentido e escrito pelo grande Borges, aqui abre luta à nossa coragem, ao nosso interpretar.

Este poema romântico do inglês Samuel Coleridge leva-nos também à proximidade com a queda e a redenção dos homens. Um rapaz que se dirige a um casamento, acaba fascinado por esta história trágica que lhe é contada pelo velho marinheiro de destino diferente de sua tripulação. Assim se narra também como a alma de todos a bordo do barco é disputada por dois espíritos: a morte e a vida-em-morte (death and life-in-death).

Digo: cada vez que lemos um texto deste tipo aprendemos algo que não tínhamos entendido antes. Corre sempre à frente de nós uma outra realidade por estrear, uma outra busca, e afinal é isto o que sempre esperamos de um bom livro.

 

Teresa Bracinha Vieira

Setembro 2015

ATORES, ENCENADORES – XLII

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AGUSTINA BESSA-LUÍS E O TEATRO DE REVISTA

Como sabemos, as ligações de Agustina Bessa-Luís ao teatro são vastas e sólidas - e no que se refere à sua própria criação, extremamente qualificadas, numa aplicação do seu enorme talento literária às artes de espetáculo. Lembremos a qualidade e heterogeneidade temática e mesmo estética da sua dramaturgia, desde a estreia em 1958 com “O Inseparável ou o Amigo em Testamento” (1958), a que se seguiu uma obra teatral variada mas, insiste-se, sempre qualificada - “A Etrusca” (1961), “A Bela Portuguesa” (1986), “Estados Eróticos Imediatos de Soren Kierkgaard” (1992), “As Fúrias” (1994) ou “Garrett - O Ermita do Teatro” (1998): e estas duas últimas sublinham uma abordagem filosófica, aliás sempre presente na vasta obra da autora.

“O Inseparável” só foi estreado em 1969. Na altura, escrevi que a peça “não é uma obra fácil nem para o público, nem para os intérpretes, muito menos para o encenador“ - Augusto de Figueiredo, que aliás elogiei, bem como aos intérpretes Hermínia Tojal, Graça Vitória, Fernanda Figueiredo, Andrade e Silva, Carlos Duarte, António Machado (in EN - 4 de Agosto 1969). Eugénia Vasques, por seu lado, refere a expressão “existencialista (de) teatro marcadamente narrativo” desta primeira peça de Agustina (in “Mulheres que Escreveram Teatro no Século XX em Portugal” – 2001).

Podemos acrescentar ainda, no que toca às artes do espetáculo, os filmes ou textos televisivos com a colaboração direta ou decorrentes de adaptações de Agustina, designadamente os de Manoel de Oliveira (e também de João Botelho) com destaque, pela hibridez, entre espetáculos, para o guião e os diálogos do “Party - Garden Party nos Açores” (1996). Mostra tudo isto, insista-se, um sentido de espetáculo da criação agustiniana, que encontramos a cada passo nos próprios romances, com as caracterizações de personagens, as dialogações, a “encenação” global subjacente… E os exemplos seriam infindáveis.

Assim, no romance “Prazer e Glória” (1988) Agustina tece uma teoria geral do texto dramático relativamente à arte de representar: “por um sistema de acústica e ampliação de som que transmite todas as modulações da voz, o ator poderá exprimir o seu desempenho, sem ter de o transformar em caricatura. Era nisso que pensavam os gregos, ao construir os fossos teatrais, cujo registo de som resultava perfeito, e um murmúrio podia ser ouvido no último degrau” (capitulo VIII).  

Mas hoje, o que aqui trago é a evocação de Agustina como diretora do Teatro Nacional de D. Maria II, de 1990 a 1993, e designadamente, como veremos adiante, de “Passa por Mim no Rossio - Antologia de Revista à Portuguesa” com texto e encenação de Filipe La Féria, que esteve em cena no D. Maria durante longos meses. E bem se justificou esse excecional sucesso, como veremos adiante.

Antes, assinale-se que o repertório do TNDMII no quadro diretivo e na responsabilidade cultural de Agustina marcou sobretudo uma atualização dramatúrgica de grande qualidade, designadamente de autores contemporâneos pouco ou nada (na época – e ainda hoje?) conhecidos em Portugal. Recordamos peças como “Retrato do Artista Quando Velho” de Tomas Bernard Minetti; “Mete-se um Pau na Boca” de Enzo Forman: o “Dueto a Solo” de Tom Krupenski; a “Zerlina” de Ermman Broch: e noutro plano estético e epocal “O Leque de Lady Windermere” de Oscar Wilde. Estamos a falar das peças encenadas pela companhia do TNDMII no período da direção de Agustina: e podemos assinalar também, um importante programa de intercâmbio com outras companhias e espetáculos nacionais e estrangeiros.

Com isto, entramos na evocação de um espetáculo algo insólito mas de repercussão excecional, e que foi precisamente a já aludida revista “Passa por Mim no Rossio” de Filipe La Féria no TNDMII (1991-1992). Note-se entretanto que não foi esta a única revista encenda no Teatro Nacional: a própria Companhia Rey-Colaço Robles Monteiro, concessionaria durante perto de 40 anos, produziu uma dezena de vaudevilles e revistas entre 1931 e o início da década de 60. E neles encontramos, como autores/atores, nomes referenciais do teatro português do século XX: por exemplo João Villaret, Maria Lalande, Adelina e Aura Abranches, Álvaro Benamor, Amélia e Robles eles próprios, Pedro Lemos, Paiva Raposo, Erico Braga, Helena Félix… em suma, o melhor que houve, durante décadas, nos atores e encenadores portugueses.

Mas o mérito do texto de Filipe La Féria decorre também da evocação de sucessivas revistas que, desde a primeira, em 1856 (“Fossilismo e Progresso” de Manoel Roussado) marcaram o teatro e a cultura portuguesa. Dentro de uma linha própria do género, de referência direta ou indireta à realidade contemporânea, o texto de La Féria retoma quadros, cenas, diálogos, personagens de 40 revistas que cobrem um século e meio de teatro e de crítica mordaz à sociedade portuguesa - e isto, sem perder atualidade.

Mérito de La Féria, como autor do texto, mas mérito também de Agustina Bessa-Luís, a qual, no programa, “justifica” esta incursão revisteira no teatro oficial: “A revista é ainda um meio de sacudir os espíritos calados e de ilumina-los de riso. Os portugueses vão ao teatro para provarem que têm razão. Porque a razão é coisa tão fantástica que só o teatro a consagra e a ama”…

Foi realmente um grande espetáculo. E vale a pena recordar nomes do teatro declamado que integraram, com qualidade inesquecível, este elenco de revista: citamos Eunice Muñoz, Catarina Avelar, Irene Isidro, João Perry, Varela Silva, Ruy de Carvalho, Curado Ribeiro, Lurdes Norberto, Henriqueta Maia, e outros mais. (cfr. “Passa por Mim no Rossio” - programa do espetáculo e texto da revista – 1991-1992)

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

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The last days of Downton, 2015

Et voilá! O proletariado tem um herói para repensar as suas teses contemporâneas e a burguesia dispõe de inesgotável tema para motejo. Rivalizando com o regresso da série Dowton Abbey, Mr Jeremy Corbyn estaciona como invariável tema de conversa.

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- Chérie! Fuis le plaisir qui amène repentir. Tantas são que, após Elisabeth II se sagrar com o mais duradouro reinado de sempre, agora é o RH Tory David Cameron que se estabelece como The luckiest Prime Minister da British History. HM Opposition Leader opta pelo silêncio quando os demais cantam o National anthem na cerimónia dos 75 anos da Battle of Britain. O espanto é clamoroso. — Well. Clothes do not make the man. A European Union empurra para o próximo mês a decisão do que fazer na migrant crisis. Germany acolhe então a Oktoberfest. O Pope Francis está nas Américas: quatro dias na Cuba de Signor Raul Castro e cinco nos US dos 17 candidatos republicanos ao Oval Office. O inefável Mr Donald Trump permanece na liderança após mais um oco debate televisivo sintetizável na linha yes, you did vs no, I don’t.

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Autumn first days em London. O implausível domina o ambiente em Westminster em vésperas das conferências partidárias. A retórica populista no Labour serve já não apenas para gáudio dos Conservatives, entre portas alertados para severo risco de menosprezarem um formidável adversário na conquista das massas, como também motiva os Liberal Democrats liderados pelo discretíssimo Mr Tim Farron a apresentarem-se como "the only party of credible opposition." No entretanto, HM Government negoceia com diversas autoridades em England a devolução de serviços públicos, e responsabilidades sociais, quantificáveis em biliões de libras. Scotland agita-se igualmente em torno da exigência de um segundo referendo a eventual independência. A crise dos migrantes avoluma-se no mar do Kent. Todavia, em pré-anúncio de onda de greves, RH JB Corbyn discursa para sindicalistas e quer renacionalizar a rede de comboios.

O Syriza ganha as eleições em Greece. Os resultados dão ao partido de Mr Alexis Tsipras uma vitória clara e idêntica votação à obtida em January, quando ascendeu ao poder em Athens, mas com uma alteração qualitativa de vulto: a ala radical do movimento é afastada pelo eleitorado, incluindo o colorido economista Mr Yanis Varoufakis. A coligação governamental prossegue, assim, para executar o novo programa de austeridade acoplado ao já terceiro resgate financeiro. À sombra da bela Acropolis, o centro político perdura enublado à esquerda (com o PASOK) e secundarizado à direita (com a New Democracy). A manutenção da aliança que apoia o reeleito Premier no parlamento grego causa ainda desconforto às forças europeias, deveras apostadas em condicionar o futuro imperfeito do povo helénico. O presidente do European Parliament, Herr Martin Schulz, classifica a liga da Coalition of the Radical Left com os Independent Greeks (de extrema direita) como ideologicamente bizarra. A capitulação naquela noite de July em Brussels e o olvidado referendo ao austeritarismo ostentam agora a faixa da legitimidade ambicionada pelos Deutsch sprechende Parteien und Politiker. Porém, a luta continua.

"It is time to adapt or die," afirma o afável Sir Robert, Earl of Grantham (Mr Hugh Bonneville) na sexta e última série de Downton Abbey. O primeiríssimo episódio foi ontem à noite para o ar na ITV e abre com uma espetacular caçada a cavalo, no ano 1925, para retomar a aristocrática estória dos Crawleys. A habitual tela de atores contracena com novas personagens e pontuais celebs. Entre os regulares up & downstairs encantam os soberbos Mr Carson (Mr Jim Carter) e Lady Violet, The Dowager Countess (Dame Maggie Smith). A Great Depression está ao fundo no guião de Sir Julian Fellowes. A austeridade do tempo entrará algures em cena a par da determinação dos protagonistas que, desde 2010, prendem milhões à pantalha durante os serões de domingo no reino; aliás, enquanto somam aplausos, prémios e distinções à volta do globo, entre os quais o Special BAFTA. Os transicionais 20s surgem em todo o esplendor da época interguerras, quando os sinais de mudança são por uns encarados de frente e por outros servem para semelhar a desavisada avestruz. As fronteiras sociais movem-se surdamente. — Hmm! Knowing any man's mainspring of motive you have as it were the key to his will.

St James, 21st September       

Very sincerely yours,

V.

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