Cartas de Palmo e Mão VIII
por Teresa Bracinha Vieira
Inês,
Queria dizer-te que não chames a ti a cinemateca da memória pois que as guerras dos ressentimentos torvam ardilosamente tudo o que afinal já foi desapiedado e duro. Bem sei o quanto a primeira ilusão de doçura é posta em causa, e com que facilidade! Enfim, razões antigas, razões de queixa, também terás: debalde não te acodem agora, antes mostram-se como estrias fundas que te obrigam a uma espécie de hermenêutica da reconstituição do quanto estava em jogo.
Querida Inês,
De vários ângulos nos chegam aos olhos sítios infaustos: sentires em guerras. Até parece que se foi bem olhada antes da primeira escolha, para a qual, seguimos tão virgens, tão desvendamento. Depois, um cacimbo de vida, com chuva miúda e fria, e tu, persistente à expectativa não resolvida.
Queria tanto boa Inês, quis tanto, podes crer, levar-te, afoita, lá onde dormem as surpresas até que as toquemos. Lá onde ao conversar, os olhos vão e vêm e vêem. Falo-te daquele local, onde tudo tinha vida, como as esculturas que saem das mãos dos escultores e os deixam assustados com os seus poderes, ao vê-las. E dançavas tu, corpo-a-corpo com aquele que querias amar, como se o ritual de passagem fosse o princípio e a finalidade do teu tempo.
Na altura, perdeste-te, por teres aceitado o poder dele sobre ti: soubeste assim que o temias; soube assim que estavas em perigo. E eu de vestido cor de açafrão, muito sozinha, voei com alívio de uma família que não me faria volta, e eis que exposto já estava o xadrez que perdia por distracção, que era, essa sim, o grande silêncio onde toda a tempestade começa e acaba.
Vem. Estou quase a chegar à tua porta. Temos ambas que meditar nos segundos-asa das fotografias não tiradas no dia de hoje. Sabes tu que o âmbar engole insectos? Vem, desenhemos os sonhos para que, por surpresa, se não evaporem, para que o âmbar os não pressinta.
Tua amiga de sempre
Isadora
Julho 2015