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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O nosso bêbado naufrágio

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O menino que as ondas beijam

Expôs na praia

A inocente luz da sua morte

 

O menino fez frente ao mundo

E provou serem suspeitas todas as rosas

 

O seu corpo pequenino

O seu coração naquele sono

Afinal só queria amor

 

E as suas faces molhadas eram dor

Abandonadas ao negro corvo

Aquele que por nossas mãos

 

Apunhala o ar da vida

Carregando sem repulsa, medalhas,

Coroas, louvores.

 


  Teresa Bracinha Vieira

  Setembro 2015

 

 

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA, MARQUÊS DE SAROLEA

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Ortega y Gasset

Minha Princesa de mim:

Voltei esta noite à escuta de José Ortega y Gasset, percorrendo passos da sua obra La Rebelión de las Masas, composta de crónicas que foi redigindo e publicando nos anos 20 do século passado. É um dos meus livros de cabeceira, donde respigo os tais passos que esta noite me ocorreu ir procurar. Saem todos estes do capítulo VIII, Por qué las masas intervienen en todo, y por qué solo intervienen violentamente. A meu ver, estes trechos da escrita de um dos mais lúcidos pensadores do nosso tempo e cultura (é verdade que os da minha geração, mesmo eu, já pertencemos um pouco ao passado) ajudam-nos a perceber as raízes da pobreza da maioria dos debates políticos actuais, que pecam por mesquinhez, excesso de clubismo, falta de memória, de visão do mundo e de respeito pelos outros, quero dizer, pela inteligência de todos nós. E para não falarmos na exígua "competência técnica", em matéria de economia e finanças, de tantos que vão insistindo em que a gestão política é fundamentalmente fazer contas... Não aponto pessoas, alerto para a cultura de vários medíocres "pensamentos pronto a vestir" em que nos querem mergulhar. A reflexão, o nobilíssimo acto de pensar, vai caindo em desuso, o que ouvimos por aí são receitas para tudo, já feitas e repetidas, correctamente banais. E declaradas, na dramatização televisiva corrente,  em jeito professoral e tom grave... Alguém se lembra de um discurso político mobilizador de energias humanas? Ou será que todos apenas nos recordamos de "ping-pong" com uma bola que não pára de crescer e se chama dívida? Com uns anglicismos pelo meio? Lembro-me muitas vezes do professor Luís Ribeiro Soares, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Não foi meu mestre, eu andava ainda no liceu e era simplesmente amigo do seu filho Francisco. Anos 50 do século passado... Por nascimento em família de muitas naturalidades e culturas europeias, eu já falava várias línguas, mas fui memorizando este conselho sábio que aquele filósofo, medievalista notável, melómano e também poliglota me ia dando: "Não te esqueças, Camilo, de que quanto mais línguas falarmos mais teremos de pensar bem o que vamos dizer"... Aquele homem prezava a originalidade do pensamento, o gosto de novos pontos de vista, não por vaidade ou capricho, mas por intrínseco respeito por si e os outros, como que em acção de graças pela capacidade humana, inata, de pensar pela própria cabeça. Como o nosso Ortega e Gasset: Concluímos que aconteceu algo sobremaneira paradoxal, mas que na verdade era naturalíssimo: por claramente se mostrarem abertos o mundo e a vida ao homem medíocre, a este se lhe fechou a alma...  ...Já sei que muitos dos que me lêem não pensam o mesmo que eu. Também isso é naturalíssimo e confirma o teorema. Pois mesmo que a minha opinião resulte, em definitivo, errónea, sempre ficaria o facto de que muitos desses leitores discrepantes não pensaram cinco minutos sobre tão complexa matéria. Como irão pensar o mesmo que eu? Mas ao crerem-se com direito a terem uma opinião sobre o assunto, sem prévio esforço para forjá-la, expressam a sua exemplar pertença ao modo absurdo de ser homem que chamei "massa rebelde". Isso é, precisamente, ter obliterada, hermética, a alma. Neste caso, tratar-se-ia de hermetismo intelectual. A pessoa encontra-se com um repertório de ideias dentro de si. Decide contentar-se com elas e considerar-se intelectualmente completa... ... O homem-massa sente-se perfeito... ... ao homem medíocre dos nossos dias, ao novo Adão, não lhe ocorre duvidar da sua própria plenitude. A sua confiança em si é, como a de Adão, paradisíaca. O hermetismo nato da sua alma impede-lhe o que seria condição prévia para descobrir a sua insuficiência: comparar-se com outros seres. Comparar-se seria sair um pouco de si mesmo e trasladar-se para o próximo. Mas a alma medíocre é incapaz de transmigrações... ... Característico da nossa época não é que o vulgar creia que sobressai e não é vulgar, mas que o vulgar proclame e imponha o direito da vulgaridade ou a vulgaridade como um direito. O império que sobre a vida pública hoje exerce a vulgaridade intelectual quiçá será o factor mais novo, menos assimilável a algo do pretérito, da situação presente. Pelo menos, na história europeia até à data, nunca o vulgo tinha acreditado ter  «ideias» sobre as coisas. Tinha crenças, tradições, experiências, provérbios, hábitos mentais, mas não se imaginava na posse de opiniões teóricas sobre o que as coisas são ou devem ser...  ... Hoje, pelo contrário, o homem médio tem as «ideias» mais taxativas sobre quanto acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu o uso da audição. Escritas há nove décadas, estas palavras de Ortega conservam, hoje ainda, argúcia e acutilância. Não só porque o andar dos anos lhes terá retirado o elitismo de uma certa desconfiança dos intelectuais relativamente às massas e seus  "discursos"  (não esqueçamos que aqueles anos 20 foram tempo de grandes errâncias de povos que desembocaram em fascismos, comunismos, nazismos e repúblicas populares). Mas sobretudo, penso eu, porque podemos hoje circunscrever o seu alvo, concentrando-o nas classes políticas e mediáticas reinantes. O que ele referia às massas, Princesa, aplica-se hoje às "elites medio-políticas"... Paradoxalmente, a democratização começou a desdemocratizar, isto é: por perda de memória histórica, de critério racional e de normas éticas, sobretudo,  a cultura das massas - que devia ser exigente de esforço e responsabilidade para ser cultura autenticamente democrática - tornou-se num rodopio de lugares comuns, mais da família dos comentários futebolísticos (quem não sabe "à brava" de futebol?) e das revistas "sociais" do que propriamente do debate informado e crítico da coisa pública. A manifesta degradação da cultura humanística das actuais classes dirigentes e fautoras de opinião tem contribuído, não só para a generalização da ignorância e a banalização de critérios e juízos, como para a deterioração da civilidade. Pois, na verdade, a falta de cultura e exercício mental limita a capacidade de diálogo e relacionamento. Escreveu Ortega, há quase um século: Civilização é, antes de tudo, vontade de convivência. É-se incivil e bárbaro na medida em que não se conte com os outros. A barbárie é tendência para a dissociação. E assim todas as épocas bárbaras foram tempos de desmembramento humano, pululação de grupos mínimos, separados e hostis. Se atentarmos no que o filósofo ibérico diz da democracia liberal, compreenderemos melhor como ela só poderá desenvolver-se através do esforço sério de reflexão sobre a res publica e constituição de ideias e propostas consistentes para ela, bem como pelo honesto cotejo dessas com as que outros, em igual espírito de convívio sério e construtivo, apresentarem. O passado recorda-se, o presente analisa-se, o futuro inventa-se e dialoga-se. Concordas, Princesa? A forma que, em política, tem representado a mais alta vontade de convivência é a democracia liberal. Ela leva ao extremo a resolução de contar com o próximo e é protótipo da «acção indirecta». O liberalismo é o princípio de direito político segundo o qual o poder público, não obstante ser omnipotente, se limita a si mesmo e procura, ainda que à sua custa, deixar lugar no Estado que impera para que possam viver os que não pensam nem sentem como ele, quer dizer, como os mais fortes, como a maioria. O liberalismo - convém recordá-lo hoje - é a suprema generosidade: é o direito que a maioria outorga à minoria, e é, portanto, o grito mais nobre que soou no planeta. Proclama a decisão de conviver com o inimigo; mais ainda, com o inimigo débil. Era inverosímil que a espécie humana tivesse chegado a uma coisa tão bonita, tão paradoxal, tão elegante, tão acrobática, tão antinatural. Por isso não deve surpreender que prontamente essa mesma espécie pareça resolvida a abandoná-la. É um exercício demasiado difícil e complicado para que se consolide na terra. Como qualquer irmão Dupont ou Dupond, direi mesmo mais: será um exercício impossível enquanto teimarmos em tratar a actividade política como se ela fosse uma comercialização de votos, e as populações votantes, os eleitores, como meros destinatários de "slogans" publicitários em que a aparente clareza e convicção da receita escondem a vacuidade do pensamento. Os narcisos que povoam a nossa atmosfera política tornam-na tóxica. Aliás, se não fossem narcisos, não andariam por aí obcecados pelo espelho que, para eles, se chama "comunicação social" ou "sondagens". Espelhos que, para eles, como para a bruxa da Branca de Neve, também mentem quando dizem que não são eles, afinal, os mais bonitos. A etérea leveza do seu ser ou, se preferires, a volatilidade das governanças, não é só falta de confiança em si (não confundas com falta de "lata"), é uma aflitiva falta de cultura humanística, de rigor intelectual e de densidade moral. Tudo se torna "baumanianamente" líquido, o tempo necessário à reflexão e exame de consciência esgota-se na corrida ao retrato que traga votos.  Que cada um pense, mais profundamente, no que é e acredita. E saiba rever-se sempre. E tenha a coragem de reconhecer que o outro, o diferente, não está ali só para o ouvir. Mas para ser ouvido também. E que todos, finalmente, saibamos ouvir os mais fracos. Dou-te a mão.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira