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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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Minha Princesa de mim:

Li La Pharisienne de François Mauriac na minha juventude, uns quinze anos depois de o romance ter sido publicado pela Grasset, na França ocupada, em 1941. Lembrei-me muito dessa história hoje - por isso me pus a escrever-te, não sei ainda bem porquê, talvez o descubra à medida em que contigo for desabafando... Essa lembrança é-me recorrente, vê tu bem, há quase sessenta anos! E quando penso no muito que escrevi, consciente ou inconscientemente, tão intimamente próprio da minha sensibilidade e do meu entendimento da vida, logo me ocorre o último parágrafo desse livro de Mauriac, que há tantos anos fui buscar à biblioteca de minha Mãe: Elle ne se dérobait pas lorsque je faisais allusion aux événements passés; mais je compris qu´elle était détachée même de ses fautes et qu´elle abandonait le tout à la Miséricorde. Au soir de sa vie, Brigitte Pian avait découvert enfin qu´il ne faut pas être semblable à un serviteur orgueilleux d´éblouir le maître en lui payant son dû jusqu´à la dernière obole, et que Notre Père n´attend pas de nous que nous soyons les comptables minutieux de nos propres mérites. Elle savait maintenant que ce n´est pas de mériter qui importe mais d´aimer. Na verdade, talvez nos tenham educado a praticar a nossa religião como quem faz um curso de ganhar o céu e assim cumpre regras, aprende doutrinas e exercícios, para passar exames e creditar pontos.  Afinal, será com o tempo da vida que vamos aprendendo o modo da humildade, essa consciência da própria imperfeição que a todos nos veste como pele nossa. Talvez por isso sejamos melhores avós do que fomos pais, e ganhemos o gosto e o trato da ternura, porque finalmente percebemos que nada  poderá fazer-nos tanto bem nem nos tornará tão santos como a entrega confiante à misericórdia de Deus. Nenhuma vontade humana, nem esforço ascético, nos transformará como esse abandono a um amor maior que, de coisas amadas, nos torna amadores também. Tal abandono é o do publicano que se refugia no fundo do templo, e cuja oração apenas repete Kyrie eleison!, misericórdia, Senhor! Situa-se no polo oposto ao do fariseu que avançou para a dianteira da nave e dá graças por não ser como os publicanos e pecadores. Em L´Agneau, romance que retoma algumas das personagens de La Pharisienne, Mauriac põe estas palavras na boca do rebelde Jean de Mirbel : Horrorizais-me, vós, cristãos, ou, melhor, horrorizar-me-íeis se eu não achasse sobretudo grotesca a vossa obsessão com serdes contados entre o pequeno número dos que não estão votados ao desespero eterno. Pergunto-me se haverá algo de mais ignóbil no mundo que o estado de espírito de Pascal que se embriaga com essa gota de sangue derramada só por ele! Referência literal a uma frase do pensamento 736  (Je pensais à toi dans mon agonie, j´ai versé telles goutes de sang pour toi) da mais famosa obra do filósofo francês  --  Pensées que, aliás, é uma colectânea póstuma de apontamentos por ele deixados e só mais tarde ordenados (no caso presente, a numeração corresponde à estabelecida por Jacques Chevalier já na 2ª metade do sec. XX)  --  não terá justamente a ver com a intenção de Pascal. Este, nesse passo do seu pensarsentir, contempla a agonia de Jesus no Monte das Oliveiras, que o evangelho de Lucas (22, 42-44) conta assim: "Pai, se quiseres afasta de mim este cálice! Todavia, faça-se a tua vontade, não a minha!" Apareceu-lhe então um anjo vindo do céu que o reconfortou. Entrado em agonia, rezava mais intensamente, e o seu suor tornava-se em grandes gotas de sangue que caíam na terra... E o pensador seiscentista medita: Jesus procura companhia e alívio da parte dos homens. Tal é único em toda a sua vida, parece-me. Mas não recebe nenhum, porque os discípulos dormem. Jesus estará em agonia até ao fim do mundo: não se deve dormir durante esse tempo...   ... Jesus, vendo todos os seus amigos adormecidos e todos os seus inimigos vigilantes, entrega-se inteiramente a seu Pai. Mas o que me parece interessante na observação de Jean de Mirbel é essa suspeita sobre a sinceridade evangélica (ou a honestidade do anúncio da boa nova da redenção) de muitos cristãos. Reconheçamos que a linha que separa a tentação de uma concepção exclusivista (por vezes sectária e até classista) da Igreja, da de uma visão  mais universal da economia salvífica, é muito ténue e esticada por subtilezas próprias a diferentes culturas e épocas, bem com a escolas teológicas diversas. Eu mesmo, "fan", até literário, do evangelho de S. João, sinto dificuldade em interpretar a chamada "oração sacerdotal", o capítulo XVII daquele livro, que talvez seja também a primeira reflexão teológica sobre o efeito redentor da agonia de Jesus Cristo: "Pai, é chegada a hora: glorifica o teu Filho, para que o teu Filho te glorifique e, segundo o poder que lhe deste sobre toda a carne, ele dê a vida eterna a todos os que lhe deste! Ora, a vida eterna é que te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e àquele que enviaste, Jesus Cristo. Quem são esses todos que lhe foram dados para que lhes ser feito o dom da vida eterna? São, põe S. João na boca de Jesus, os "que tiraste do mundo para mos dares, os que eram teus e tu me deste, e eles guardaram a tua palavra"...   ... "Vigiei e nenhum deles se perdeu, excepto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura". São, pois, primeiro, os discípulos de Jesus que todavia acrescenta: Não rezo só por eles, mas também por aqueles que, graças à palavra deles, acreditarão em mim, para que todos sejam um. Como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que eles também sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. E este discurso, no evangelho de João, vai desenvolvendo a ideia de que a Igreja, em união com Cristo, é o sinal dos tempos novos, o sacramento da reunião final de Deus com os homens. E para todos nós, crentes ou incréus, tal pensamento sempre é mais reconfortante e humano do que qualquer exclusivismo que pretenda que alguém fique de fora do abraço final da Misericórdia. E essa exclusão não é monopolista: tanto há ateus, ou simplesmente agnósticos, que se recusam a dar lugar, inda que discreto e calado, a qualquer presença da hipótese do Misericordioso na condição humana das suas vidas; como há crentes que reduzem essa possibilidade ao enfiar de um modelo de fato ou máscara confessional. Pois eu, que sou: católico "praticante", leigo e não teólogo;  anticlerical  à  medida de  qualquer clericalismo, enquanto este for forma discricionária do poder do clero institucionalizado sobre o povo de Deus ou a realidade do mundo; alérgico a superstições, crendices, rituais e práticas próximas ou próprias da idolatria; eu, que sou isso tudo, continuarei, assim espero, a ter a fé das gentes simples, dessas que sabem que só devem esperar a misericórdia de Deus. E continuo a ter dificuldade em entender a lentidão com que evolui (?) a sapientíssima "doutrina"  desses que entendem justificar a recusa da participação eucarística a milhares de cristãos, em nome de princípios que nunca experimentaram nas suas vidas (por mim, completo agora 50 anos de casado, sei do que falo) mantendo que a autoridade de clérigos, tantas vezes devassos, como sabemos, se reserve o direito "divino" de revogar, declarando-os nulos ou inexistentes, uns matrimónios, frequentemente por sentenças dificilmente justificáveis mesmo perante um liberalíssimo tribunal cível... Perdoarás a este teu grande amigo  -  que há tantos anos conheces fiel à sua fé e amores e à Igreja em que tanto (?) barafusta  -  falar-te agora de uma huasteca, creio que do século XVIII  -  folia crioula do México, de que a Santa Inquisição não gostou, mas ainda hoje se canta  - e que, nesta tarde tão abafada de calor africano, vou ouvindo num disco do Jordi Savall. Chama-se El Cielito Lindo e reza assim:

      Ciento cinquenta pesos

      daba una viuda,

      pa´que le pongan cuernos,

      Cielito Lindo,

      al señor cura.

      Se los pusieron,

      y como era viejito,

      Cielito Lindo,

      se le cayeron.

      Ciento cinquenta pesos,

      Cielito Lindo,

      daba otra viuda,

      solo por la sotana,

      Cielito Lindo,

      de cierto cura.

      Y el cura le responde

      con gran contento,

      que no da la sotana

      si él no va adentro.  

Não vou tirar lições de moral daqui, porque não as há. Terá havido, no tempo e na cultura em que esta canção foi composta, alguma malandrice, uma ironia cínica talvez... mas não houve mentira. Esta estava do outro lado, onde a hipocrisia pretende justificar inexistentes virtudes. Esquecendo que talvez nem sempre seja pouco virtuoso o que o olhar misericordioso de Deus poderá entender. Estou velho, já não vou mudar de mulher nem outros amores. Menos ainda desta ternura pela imperfeição da condição humana: os meus netos têm-me ensinado a crescer. Os homens são como as árvores: nascem para dar sombra. Um beijo com a frescura dela

                                   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira