CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Afinal nasci, como o meu homónimo tio, num berço de muitas heranças e línguas. Mais modestamente, fui balbuciando português e francês, sendo este idioma a língua franca lá de casa. Falava-a, com a sua materna portuguesa e o castelhano, o meu lusitano Pai. Minha Mãe também, mas substituindo as línguas ibéricas pelo alemão e o holandês. Estes dois linguajares eram correntes em casa dos meus avós maternos, com o francês como língua de classe e relação. Falando francês meus pais se conheceram, curiosamente como os pais de minha Mãe que, no último quartel do século XIX, se encontraram num baile, em Paris, ambos de nacionalidade holandesa, ele de ascendência ítalo-espanhola, ela limburguesa de raiz germano-austríaca. Coisas... Enfim, com tanta confusão, ou não, eu acabei por falar, falar mesmo, só francês até aos cinco anos. Aos seis, puseram-me na escola, portuguesa, onde, temente, tremente e gaguejante, fui aprendendo a função do discurso em que hoje te escrevo. Só mais tarde -- já com noções de línguas germânicas, mais latim e grego -- me puseram a estudar inglês. Mandaram-me para Inglaterra, com dezasseis anos e o inglês do curso liceal, em boa altura, talvez, para poder começar a perceber diferenças entre ilhas e continente... Na residência do colégio que me acolheu, sofri, ao segundo ou terceiro dia, um "cocktail", em que criados uniformes iam passeando bandejas de bebidas e pequenas "sandwiches". Olhei, desconfiado, para o sortido da primeira que me puseram ao alcance e sorratinei "no, thank you". Um espanhol, seguinte a mim, serviu-se de uma daquelas tapas, aparentemente deliciado. E logo eu chamei, com um gesto de mão, o servente, e disse "excuse me, I will have one too..." O fardado britânico voltou a apresentar-me a dita bandeja, todavia sentenciando "Sir, when you say no, you mean not". Engoli, primeiro o dito, e a sandezinha depois. Foi nesse preciso momento que comecei a aprender inglês. Na verdade, Princesinha - até já preciso de usar um diminutivo bem português - cada língua é uma forma de discorrer, e cada discurso uma cultura. O Fernando Pessoa que diz "A minha Pátria é a língua portuguesa" nada tem de nacionalismo patrioteiro, é tão só um homem, muito inteligente, que, tendo sido educado em inglês, escolhe o português para finalmente se exprimir, envolve-se de cultura portuguesa... A Mensagem é bem sinal disso. E um rafeiro como eu, que tantas vezes se sente solitário, estranho ou inconfortável pode perceber, talvez, como o desejo de uma identidade é quiçá tão forte que, num homem de génio como Pessoa, o torna universal. Apesar dos heterónimos, ou quiçá por força deles também, na medida em que tenham sido procuras de identidade. Mas não te escrevo para falar de subjetivismos... Acordei para a leitura de um livro de Sudhir Hazareesingh, professor de ciências políticas em Oxford, nativo das Maurícias, onde desde menino lidou com as culturas francesa e inglesa: How the French Think: An Affectionate Portrait of an Intellectual People. O livro surge-me como manifestação da saudade do amante de uma certa tradição intelectual francesa, pois considera que, desde finais do século XX, o pensamento francês perdeu muitas das qualidades que o tornavam universalmente atraente. O autor atribui tal degenerescência à mudança da formação das elites francesas, designadamente aos excessos da educação tecnocrática, que propiciam uma incapacidade de pensar criativamente, uma propensão para o formalismo, a suficiência e o corporativismo. Curiosamente, este ensaio relativamente longo foi objeto de resenhas em prestigiados jornais e revistas britânicos, tais como o Financial Times, The Economist eThe Independent. Afinal, continua bem viva essa milenar paixão dos ingleses pela França, donde lhes veio muito vocabulário e algumas ideias, com quem foram concorrendo em afrontamentos e alianças, e, sobretudo, last not least, onde descobriram um discurso intelectual inverso ao deles e modos de olhar, ver e ser, que, por serem tão diferentes, sempre muito apreciaram... Em The Independent , escreve John Lichfield: Uma velha adivinha belga pergunta " Que diferença há entre um responsável britânico e um responsável francês?" O britânico diz "Esta ideia está muito certa em teoria, mas sê-lo-á também na prática?", enquanto o francês replica assim: "Esta ideia está muito certa na prática, mas sê-lo-á também em teoria?" E mais adiante explica: Por outras palavras, os franceses gostam de elaborar teorias para estudarem os factos, enquanto que os britânicos preferem estudar os factos antes de elaborarem teorias. Mas porquê? Porque pensam os franceses de maneira diferente? Hazareesingh atribui esse fenómeno à iluminação do grande filósofo e matemático do século XVII, René Descartes. Ao concluir que a única certeza é a consciência do indivíduo -- "Eu penso, logo existo" -- Descartes criou uma das correntes da tradição intelectual humanista moderna. A outra é a corrente britânica, dita "empírica", de Thomas Hobbes, John Locke e David Hume. Para os pensadores britânicos, deve começar-se pela observação dos factos, enquanto que, para Descartes, o tato, a vista ou o olfato, não são fiáveis. O filósofo francês só acreditava na nossa capacidade de dedução. Hazareesingh vai buscar Rousseau também, para o colocar, com Descartes, nas origens do pensamento político francês, não só pela influência que teve sobre os ideais da Revolução, as tradições jacobina e bonapartista, mas porque, quer na atual esquerda francesa, quer na direita gaullista, foi permanecendo a ideia de que a mudança política só pode ter sentido na condição de ser total e salvadora... ...a maioria dos grandes debates vai sempre girando, desta ou daquela maneira, à volta da herança revolucionária... E ocorrem-me frases de inúmeros discursos franceses que, é certo, andavam na gíria d´une certaine idée de la France... Achei interessante que The Economist começasse o seu artigo realçando o facto de Sudhir Hazareesingh abrir o seu livro com uma citação de Dominique de Villepin, assim: A 4 de Fevereiro de 2003, quando os Estados Unidos se preparavam para invadir o Iraque de Saddam Hussein, um francês de crina prateada e alta estatura toma a palavra perante o Conselho de Segurança da ONU em New York. A intervenção de Dominique de Villepin marcou os espíritos, não só pela sua resoluta hostilidade à guerra, mas também pela sua forma de expressão: esse discurso enfático foi uma magnífica defesa de valores e de grandes ideais. Com voz grave e suave, Dominique de Villepin falou em nome de "um velho país, que conheceu guerras e barbárie, mas que todavia não deixou de se manter de pé face à História, e diante dos homens". Enquanto "guardiã de um ideal, guardiã de uma consciência", a ONU tinha, tal como a França, "a pesada responsabilidade de dar prioridade ao desarmamento na paz". Para o semanário londrino, o professor de Oxford refere, logo na abertura, aquele discurso por considerar que o mesmo, exemplo perfeito de eloquência e elegância linguística "à francesa", apelava à razão, à abstração, à lógica, e se articulava à volta de oposições binárias: conflito e harmonia, moralidade e poder. Tanto aludia à sageza de antigas civilizações, como à da França, incarnação nacional de uma verdade universal nascida de um traumatismo histórico. Pessoalmente, Princezinha de mim, saboreei com gosto estas observações de uma revista económica liberal anglo-saxónica. Pelos tempos que correm ouve-se demais "it´s the economy, stupid!", e sobram políticos e jornalistas a pretenderem-se pragmáticos e realistas, sem entenderem o que é dimensão humana, sem conhecerem história, nem se referirem aos valores constitutivos da nossa dignidade. Aquela invasão do Iraque, no modo como se fez e com as terríveis consequências que hoje ainda sofremos, poderia ter sido evitada se, antes de se baralharem factos e se passar à prática, se tivesse dado tempo e espaço à consideração dos homens e dos valores.
Beijo-te a mão, Princesa
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira