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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Acerca de ‘Urbanismo, Espaço e Ambiente’ de Giulio Carlo Argan.

 

‘A cidade não é feita de pedras, mas de homens’,

Marsilio Ficino

 

Em ‘Urbanismo, Espaço e Ambiente’, Giulio Carlo Argan (1969) escreve que a cidade não se funda vai-se formando. O valor de uma cidade é atribuído por todos os que habitam nessa cidade. O objeto urbano é sempre a existência humana.

Assiste-se a uma progressiva unificação urbanística de toda a face do globo terrestre, e por consequência a uma sucessiva eliminação da natureza – entendida aqui além do horizonte dos conhecimentos e das possibilidades do homem. A natureza é a região das potências incontroláveis do mito e do sagrado. Argan explica que, no passado, a natureza era o que se encontrava além dos muros da cidade – espaço não protegido, não organizado, não construído. Ao redor da cidade havia uma zona de fronteira, o campo, habitada por seres cuja natureza parecia incerta e ambígua, entre o humano e o animal. A gente do campo vivia segundo tradições antigas, dedicada a técnicas arcaicas e quase rituais, ligadas aos ritmos sazonais e aos ciclos lunares. A gente da cidade, pelo contrário vivia ligada às técnicas civis, cultas e intelectuais e a partir do final do séc. XVIII considerava a natureza inacessível, inviolável, frequentada naturalmente por Deus e pelos génios do bem, mas também pelos génios do mal. A natureza era o sublime, representava o limite entre o habitado e o inabitável, entre o espaço geométrico ou mensurável e a dimensão ilimitada e incomensurável do ser. A cidade era a dimensão do distinto, do relativo e do consciente. A natureza a dimensão do transcendente e do absoluto.

Segundo Argan, na história da cidade, o tema do sublime está sempre presente nas catedrais góticas, na arquitetura de Michelangelo e de Borromini, no geometrismo de Ledoux, no ascetismo tecnológico de Gaudí, no expressionismo de Mendelsohn e nas fantasias de Bruno Taut. O tema do sublime é uma constante no urbanismo utópico, porém com o acréscimo de que hoje o sublime ou transcendente é subjugado pelo esforço tecnológico do homem. E a cidade, que no passado era, por excelência, o lugar fechado e seguro, torna-se assim o lugar da insegurança, da luta pela sobrevivência, do medo, da angústia e do desespero.

Argan declara que o que de facto aconteceu na cidade moderna foi a redução cada vez maior (até à eliminação) do valor do indivíduo e por consequência deu-se eliminação da natureza. A realidade não era mais dada em escala humana, mas antes na medida em que não podia e não devia ser pensada, apenas dominada e sofrida. Argan afirma que os projetistas da cidade do futuro pareciam ter horror ao plano da terra, da vida: ‘a cidade do futuro precipita-se nas entranhas da terra ou eleva-se a alturas vertiginosas, suspensa no ar.’ O plano e o nível do terreno sempre tiveram uma importância fundamental na conceção humana de espaço – porque é o que distingue e, ao mesmo tempo, põe em relação o que está em cima com o que está em baixo da terra, a vida, o mundo das origens e dos motivos profundos e as raízes do ser. E por isso, se a cidade não tem como limite nem mesmo o plano do terreno e pode desenvolver-se verticalmente, tanto em profundidade como em altura, não poderá ter limite para a sua extensão horizontal.

‘Hoje, a cidade não pode mais ser considerada um espaço delimitado, nem um espaço em expansão; ela não é mais considerada espaço construído e objetivado; mas um sistema de serviços, cuja potencialidade é praticamente ilimitada.’, Giulio Carlo Argan

O urbanismo racionalista de Gropius afirmou a hegemonia da produção industrial – o homem devia aí empenhar toda a sua existência porque era a partir desta produção que a sociedade realizava todo o seu progresso. Critério fundamental para este urbanismo era o espaço, porque era limite dotado de uma dinâmica capaz de transformar, através da liberdade e do progresso, a sociedade. Depois da Segunda Guerra Mundial, verificou-se uma crise ideológica em todas as atividades culturais, nomeadamente no urbanismo. Tomou-se consciência do perigo de que as vanguardas artísticas fossem revoluções impostas sobre os intelectuais de modo a desviá-las do seu terreno concreto de luta – o do capital e do trabalho.

Argan anuncia que a remoção de ideologias da pesquisa urbanística é um trabalho necessário – porque uma revolução social não deve ser determinada por sistemas muito rígidos ou realizada por uma categoria reduzida de especialistas, mas sim concretizada no campo político. Trata-se assim de restituir ao indivíduo a capacidade de interpretar e utilizar o ambiente urbano de maneira diferente das prescrições implícitas no projecto de quem o determinou, dando-lhe a possibilidade de reagir ativamente a esse ambiente. A solução consiste assim em dar à cidade, entendida como sistema de informação, a elasticidade e a possibilidade de flexão de um sistema linguístico. Por isso, deve ser uma sim cidade feita de coisas, mas coisas que vemos e que se oferecem como imagens à perceção do homem que vive na dimensão livre e mutável dessas imagens. A cidade de hoje, deve então ser um acontecimento interpretável por excelência – uma cidade com a duração de um dia, e que dá a imediata impressão de ser feita de imagens, de sensações, de impulsos mentais, e que realmente vemos e que não é dada pelas arquiteturas imóveis, mas pelos automóveis, pelas pessoas e pelas infinitas notícias que invadem todos os meios de comunicação.

 

Ana Ruepp