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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

S. João Apóstolo por El Greco.jpg

Minha Princesa de mim:

Será esta, Princesa, uma carta talvez um pouco mais íntima de mim, pressinto que vou escrevê-la sem cuidados especiais, como se a mim só me dirigisse. Se estou bem lembrado, terá sido numas crónicas que em tempos escrevi, sob o título geral de Credo, que mais me aproximei desta franqueza. Sempre senti a minha fé como procura, ela sempre me interrogou e fez interrogar, nunca descansei nela. O reino de Deus será um tesouro, uma pérola que descobrimos e nos leva a vender tudo o mais que tenhamos, para a adquirir... Mas é também o grão de mostarda, pequenino, que tem de ser lançado à terra e desaparecer, para que dele nasça o arbusto e a árvore que estende os ramos em que se abrigarão todas as aves do céu. Sempre gostei mais desta segunda metáfora.  Deus não é um remédio, nem a fé um auto refúgio. Deus é um desafio, e a nossa fé, no convívio dos homens, deve ser essa misteriosa interpelação estendendo a todos o seu abraço. Assisti, há poucos dias, num círculo privado, à charla descontraída de um bispo acerca das questões que se vão debatendo, no âmbito do sínodo corrente, sobre a chamada "abertura da Igreja ao mundo". Há vários anos que, em privado ou mais publicamente, vou partilhando o meu pensar sentir sobre algumas delas, com o propósito motor de participar numa reflexão desejavelmente fraterna e descontraída. Tenho para mim que, na cabeça de cada um de nós, só os próprios (ou os nossos, por vezes insondáveis, humores) mandam... Teimar ou embirrar de pouco ou nada serve, sei-o bem, mas também reconheço que me irrito, quase solenemente, com gente que sistematicamente opõe às dúvidas, inquirições ou sinceras buscas de outros, uma parede de fórmulas ditas "doutrinárias", tantas vezes muito menos eternas do que julgam... Mas, enfim, de pouco me aliviará essa urticária! O que te venho contar agora, Princesa, é um comentário do tal bispo --   que me conhece relativamente, e mais pelo que disse ou escrevi do que por frequentação:  --  Reparo que, hoje, voltou a insistir no que, para si, é uma relação ontológica do cristianismo com a condição ou imperfeição humana... É verdade, sua reverendíssima percebeu bem. Mas eu não tinha, nessa noite, falado em termos filosóficos, limitara-me a recordar o lugar central do mandamento do amor na perspetiva cristã da vida. De modo leve, aliás, dissertando sobre a palavra amável, por exemplo: o sentido mais corrente é o de uma pessoa que quer ser simpática, agradável; assim concitará a estima de outros, será amável no sentido de alguém de quem se gosta. Amável, já com esforço nosso, também será qualquer pessoa a quem, por razões de ordem familiar ou outra relação, devemos querer bem e ajudar. Finalmente, amável, no sentido cristão do termo, é toda a obra de Deus, aquilo que o Pai criou e nós descobrimos na sua relatividade e imperfeição, ou mesmo na inimizade para connosco ("amai os vossos inimigos"). O mandamento do amor, no cristianismo, é paradoxal: só podemos amar a Deus, que é, ontologicamente, a perfeição, aprendendo a amar o que é imperfeito. Não pelas limitações da imperfeição (o pecado é a paixão dos nossos limites), nem por deleite no mal. Mas pela incessante descoberta do sentido da nossa vida no reconhecimento da realidade do mundo e da nossa condição, do que está por acabar e tem de ser per-feito ou com-vertido. E é este o sentido, por excelência, do amor: transformar, renovar aquilo em que se toca. E lá vou eu, uma vez mais, ao evangelho de S. João. O Verbo que era no princípio estava em Deus, era Deus. A relação do Pai (que envia) com o Filho (que é enviado ao mundo) não é dual: é, ontologicamente, a identidade do amor. O mundo não O reconhece, mas Ele dá-se a conhecer aos seus discípulos, para que, por Ele, eles conheçam o Pai que não vêem e permaneçam no amor. Esta comunhão ontológica (Pai, Filho, humanos) determina uma exigência ética para os que, estando no mundo e nele ficando, não lhe pertencem, antes o devem transformar. Chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou. Se, portanto, vos lavei os pés, eu Mestre e Senhor, também vós vos deveis lavar os pés uns aos outros. Porque foi um exemplo que vos dei, para que façais, vós também, o que vos fiz. Em verdade, em verdade vos digo que o servidor não é maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou (João 13, 13-16). E, no final da última ceia com os seus discípulos, diz-lhes estas palavras de despedida: Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros; como eu vos amei. Nisso reconhecerão que sois meus discípulos: no amor que tiverdes uns pelos outros (Jo. 13, 34-35)... E antes de ser preso, é por esses, que ficam no mundo, que pede ao Pai: Pai justo: o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te, e estes reconheceram que me tinhas enviado. Dei-lhes a conhecer o teu nome, e dá-lo-ei a conhecer, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles (Jo. 17, 25-26). Assim, parece que o amor é um abraço de inclusão. Num mundo imperfeito, entrevado pelo mal, é um toque a reunir e renovar. Digo isto um tanto quanto embaraçado, receio que muitos crentes e alguns incréus não me entendam bem ou me achem um marciano por vir... Mas, na verdade, eu não consigo já ver o mundo e a vida, as relações que, no tempo e nos modos, nos vão tecendo, se não tentar ver que não podem ser absurdas, se não procurar responder a essa misteriosa vocação do amor que nos constrói. Não temos outro caminho possível, nem as revoluções acharam melhor lema do que "liberdade, igualdade, fraternidade". Com frequência ouço gente dizer que não entende como fulano ou beltrano não tem fé; pois, a mim, o que me espanta é a fé fiel, acreditarmos que virá certamente o dia da revelação final das coisas que devemos esperar, a hora do cumprimento de tudo o que só na imperfeição conhecemos. Pessoalmente, como sabes, não tenho propensão alguma a acreditar em aparições e milagres. Na corrente da vida, a minha fé concentra-se na certeza de que o Espírito de verdade vai misteriosamente soprando o andamento do mundo, conforme a promessa de Jesus: Todavia digo-vos a verdade: é de vosso interesse que eu parta; pois, se não partir, o Paráclito não virá a vós; mas se eu partir, enviá-lo-ei. Mas também só sei que o Espírito sopra onde quer, que os desígnios de Deus são insondáveis, que eu não sou nem posso ser juiz, e que a providência divina não tem de me prestar contas. Eu confio nela, não para que me dê regalos, mas apenas aquilo que, simplesmente, pedimos no padre-nosso, a oração que Jesus nos ensinou: que a lembrança da santidade do nome de Deus nos faça caminhar para o seu reino, na aceitação da sua vontade (que nem sempre  --  e para os desvalidos, talvez muito dificilmente  --  entendemos), e do pão da vida que nos for dado, na esperança da misericórdia que, se nos livrarmos do mal e não cairmos na tentação de juízos e castigos injustos, a cada um de nós, também, abraçará… A fé, Princesa de mim, não é negócio, nem superstição, nem "fèzada". É uma entrega, muitas vezes dolorosa, à possível esperança de todos, ao amor que começa aqui e agora e virá a ser o cumprimento das coisas todas que devemos esperar...

 

                                       Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira