Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Château-Margaux-1.jpg

Minha Princesa de mim:

A nossa tia Bertha Eugenia só não cumpre hoje 112 anos porque cumpriu, com a serena nobreza que lhe conhecemos, uma vida inteira de fidelidade. Neste dia, é Nosso Senhor que cumpre, na eternidade, a promessa de acolhimento que lhe fez. Mas teimei em rezar com ela hoje mesmo, em ir almoçar com ela a Gramont onde, apesar dos nossos quarenta anos de diferença, partilhávamos, com igual apetite e proveito, o champanhe e as ostras, o râble de lièvre e o Château Margaux. Descíamos depois ao jardim e ao pomar próximo, e essa senhora tão direita, apoiando-se no meu braço e numa bengala que fora da minha avó e eu herdei, falava-me então da sua mocidade e do nosso avô Camilo, seu pai, esse italo-godo de semblante austero e severidade temida, até que um raio de sol toscano lhe iluminasse os olhos, como a graça de Deus quando converte. Não sei se Berta é nome godo (dado a um canhão é alemão de certeza...), mas Eugénia vinha das nossas avós italianas: o nosso avô Camilo (que me deu o nome) assim o quis depositar na sua filha mais nova. Eugenius, eugenia, eugenium, em latim, é um simples adjetivo, designa quem é de  estirpe nobre. Penso que o nosso avô quis deixar bem claro que, por Berta e nórdica que fosse, a filha teria sobretudo a beleza de Itália, a nobreza do sul. Coisas... Ao cair da tarde, por esta mesma vontade saudosa, transportei-nos até New York, fomos ao Plaza tomar chá e provar uns scones com doces de frutos silvestres, ao som do quarteto de cordas que, no salão daquele hotel americano, decorado com palmeiras em vasos, importava memórias de uma Viena antiga, aquela em que a tia encontrara o seu único amor e marido, na viragem do século e em vésperas de guerras. Bendita mão me deu então, que me senti, mais que sobrinho, quase filho, amigo, marido e pai. Não foi lembrança canónica de laços de sangue e obrigações de família registada. Foi a mesma mão que ela dera a outros  -- pai, marido, filho  -  todos já invisíveis aos nossos olhos, todavia tão presentes nas nossas mãos dadas! Foi sentirmo-nos como com os outros connosco. O humano, sobretudo no que tem de valor divino, tem mais a ver com essa relação do coração de nós ao coração de todos, do que com considerações das ordens, de qualquer ordem. Tive na minha a mão que minha tia dera a meu avô, quando este a levava às óperas que a nossa avó Ana aborrecia... A mesmíssima mão que ela dera ao tio Jorge Florêncio, desde que se casaram até à morte dele, e que acariciara o único filho de ambos, que morreu tão cedo. A mão que apertara a de reis e rainhas e se quedara confiante e amiga nas de enfermos e velhinhos pobres que ela tanto gostava de visitar, e com quem conversava interminavelmente. A mesmíssima mão donde se erguia  -  há quantas décadas?  - um dedo indicativo, vertical e admoestador... a prevenir-me contra ideias novas, amigas demasiado sorridentes, e as minhas leituras de Montaigne, Erasmo e... E... e eu, então, quase lhe tinha raiva, revolta certamente. Mais tarde, já dava graças por tantos cuidados e oposições: na verdade, fui sempre seguindo os meus caminhos, mas levava a mala na mão ou a mochila às costas... Podiam pesar-me um pouco (ou muito!), mas abrandavam-me o passo sôfrego e ensinaram-me a percorrer a vida. Não li as lições todas, e terei esquecido outras. Mas fui aprendendo que um passo em frente é sempre um esforço responsável. Também a tua tia e minha Mãe se ia interrogando e assustando comigo. Mas era um espírito mais aberto, confiava mais na misericórdia de Deus do que nas manias disciplinadoras dos homens. E eu confiava nela, como, Camilo português, no lirismo desprendido do Alberto, meu pai... E ainda hoje, e sempre, viverá nos nossos corações, quiçá até nos que já deixaram de bater, essa confiança, tão intimamente fiel que não há gerações nem mortes que a distingam, e que nunca teve idade, só presença. Nessa conversa, antepassados e netos são iguais, nem eu saberia dizer a que geração pertenço, se sou este Camilo Maria ou os outros. Sou com todos eles, pois que de outro modo não seria. E é neste impulso, que me une e abre, é neste abraço que cabemos e caberemos todos, até aos nomes que nunca pronunciámos e nos irão descobrindo pelas esquinas da vida. Assim nos queima  -  a família  - o peito, como lembrança perene, ou chama ardendo no coração... Nesta noite adiantada, em que tantas aflições me tiram descanso e sono, descobri, num espelho fortuito, o rosto pálido de um velho de olhar baço. Foi então que me ocorreu a recordação de todos nós e se me acendeu uma fogueira íntima, e me brilharam os olhos... Bem hajas por estares presente!

                Camilo Maria 

 
Camilo Martins de Oliveira